Atualmente muito sabemos das brutalidades que o governo da União Soviética inflinge àqueles que incorrem no seu desprazer. Os testemunhos insuspeitos dos sobreviventes corroboram a terrível acusação circunstancial, de modo que se pode afirmar que só negará essa prova aquêle que negaria qualquer coisa – ou então aquele que, a fim de preservar a ilusão, feche os ouvidos aos gritos dos moribun dos e dos condenados.
Entretanto, pouca informação possuimos do efeito do regime na grande massa dos cidadãos soviéticos que conseguiram escapar de sérios perigos. Não basta dizerem os refugiados soviéticos como é a Rússia através das lentes adquiridas em Paris, Londres ou Nova Iorque. Queremos saber como era quando ainda se encontravam ainda em Moscou, Odessa ou Novosibirsk, antes de se porem a sonhar com a fuga para o Ocidente, ou pelo menos, antes que conhecessem o suficiente sobre o Ocidente para fazerem comparações. Não é por mera curiosidade: é o único modo de se obter a mais leve idéia de como o regime parece aos que ainda nele precisam viver.
O livro do Major Klimov é de grande auxilio nêsse aspecto. E uma narração sóbria, mas real, da vida dentro da burocracia sovié tica vista, até onde pode julgar um espectador afastado, o tanto quanto possível como parecera ao narrador, antes de resolver a fugir como deveria parecer, portanto, aos inúmeros russos inteligentes, preocupados, nêste instante, em fazer funcionar a máquina. Esta his tória ainda tem mais um valor, porque nestas páginas a máquina é vista funcionando não no misterioso interior da União Soviética, onde tudo pode acontecer e onde os acontecimentos não podem vir à baila, como sabemos, mas no seio da Europa Ocidental, no solo familiar da Alemanha ocupada. O Major Klimov e os seus companheiros do Quar tel-General do Exército Soviético em Berlim, lidavam não com russos, mas com alemães.
Não pretendemos, com isso, sugerir que o Major Klimov seja, de fato um dos seus compatriotas típicos. Sem dúvida, não o é, pois, do contrário, não teria escrito êste livro notável. É possuidor de inteli gência, despreendimento e talvez mente honesta acima da média, mas, embora enxergasse mais clara e livremente as hipocrisias do Stalinismo do que a maioria dos companheiros, suas reações emo cionais básicas e os processos mentais não parecem distingui-lo muito dentre os demais. Com uma importante diferença, aceitou o que êles aceitaram, rejeitou o que foi rejeitado pelos outros e, du rante longo tempo, esteve preparado a servir o governo como um ci dadão patriota, quer no campo de batalha, quer no Quartel-General.
A diferença importante foi a de muito relutar em associar-se, por motivo de conveniência, ao Partido Comunista que êle, como a maioria dos membros afiliados, desprezava. Estava preparado para servir ao regime, mas, se pudesse, evitá-lo, a entregar-se-lhe de corpo e alma. Esta atitude é mais característica dos cidadãos soviéticos do que alguns de nós pensam. Talvez seja verdade que a maioria dêles aceita o regime e dêle tenta tirar o melhor partido, não tanto porque não haja uma escolha, mas sim porque nunca the acorreu que, de fato, pudesse escolher. Não perdem noites de insônia pensando nas iniquidades do M.V.D.; como todos os seres humanos, em tôda parte, encaram a vida como é, gozam-na quando podem, ocultando os seus segredos. Klimov diferiu da maioria porque não estava disposto a guardar os seus segredos. Seu fracasso em pertencer ao Partido so mente podia ser interpretado como uma espécie de demonstração e foi em virtude disso mesmo que se viu obrigado, afinal, a tomar o passo decisivo e abandonar a pátria. A ser exato, naquele tempo, havia apenas cerca de seis milhões de associados no Partido, mas entre êles estavam os mais promissores engenheiros que desejavam fazer carreira. Pertencer ao Partido era interpretado como ato de submissão total.
Nossa própria atitude para com o regime soviético (refiro-me às pessoas que se preocuparam em ler e pesar as provas) é matizada, acima de tudo, pelo horror e desgôsto pelas brutalidades físicas, como sejam nas violências policiais, confissões forçadas, condenações arbi trárias e trabalho forçado em condições deficientissimas. O leitor observará, com interêsse, que o Major Klimov apresenta os aspectos físicos do terror: a degradação do prisioneiro desempenha parte menos importante na sua imagem da União Soviética do que na nossa. Nisto êle demonstra, penso, uma das características da maioria dos russos, que se preocupam menos com os pormenores do que a polícia de segurança faz às suas vítimas do que com o simples fato da sua ubiquidade e poder. O que o Major Klimov focaliza com ex trema agudeza é algo muito menos descrito do que as torturas e a escravidão: refiro-me à terrível e constante pressão nos cérebros e espiritos dos homens que são tècnicamente, livres. Não podemos es quecer que essa pressão tem o seu fulcro no mêdo fisico, mas somos convidados a contemplar não as atuais manifestações familiares dessa pressão, mas o seu efeito naqueles cujas vidas se consomem na tenta tiva de evitar a prisão noturna e os campos de trabalhos forçados no Extremo Norte. O preço que pagam pela liberdade técnica é a cor rupção das mentes e a atrofia das suas vontades.
Diferentes leitores encontrarão diferentes centros de interesse na narrativa do Major Klimov. Por exemplo, ela pode ser lida como uma eletrizante narrativa do trabalho, nos bastidores, de um Quartel-Ge neral do Exército Soviético, ou como a revelação dos processos so viéticos nos territórios de ocupação. Para mim, contudo, a principal fascinação repousa no lento descrever do que o regime soviético está fazendo das mentes e do caráter dos seus súditos. Sem excessos, sem generalizações, apenas contando sua própria experiência pessoal, sob o jugo de Stálin, o Major Klimov mostra-nos um sistema que está podre no âmago. Se apenas isso nos fosse mostrado, seria uma sim ples história a história de um sistema que teme tôda independên cia da mente e do espírito e que, ao matá-la, abre o seu próprio tú mulo. Mas não é uma simples história. A verdade sobre a União Soviética é tão complicada e tão inatingível como a verdade sobre a natureza humana. Porque, como o Major Klimov também mostra, talvez inconscientemente, o espírito humano é tão elástico que, em bora áreas inteiras possam estar efetivamente paralizadas numa multidão de individuos, a vida ainda persiste, encontrando a sua realização numa tarefa bem feita, ou na luta heróica de uma guerra patriótica. Isto é uma boa notícia sobre a natureza humana. Mas, no contexto da União Soviética ela tem um conceito irônico, pois é esta centelha indomita da vida espiritual, sobrevivendo a despeito de todos os esforços da autoridade em extingui-la, que salva o regime do colapso sob o seu próprio pêso morto. Nela podemos delinear a es perança futura, mas também nela devemos ver uma parte da atual força do Cremlin.