Gregory Klimov «A máquina do terror»

Capítulo 17. UM MEMBRO DO POLITBURO

I

Diante de mim estava a fôlha amarelecida de papel ordinário, que parecia ter sido arrancada de um dos meus antigos cadernos de exercício escolares. As letras eram grandes, como as de criança, escritas com tinta apagada, à qual fôra adicionada água mais de uma vez. Com dificuldade consegui ler as letras, cuidadosamente desenhadas, com uma pena enferrujada:

"Querido neto... Estou sentado à luz de uma torcida de parafina, como em 1921, para escrever-lhe. A eletricidade é desligada somente duas horas por dia, e isso nem todos os dias. Empurrei a mesa mais perto do fogão, onde é um pouco mais quente. Da janela vern uma corrente muito forte, embora eu tenha tapado tôdas com lã..."

Sem eletricidade e sem carvão! E isso dois anos depois do final vitorioso da guerra, bem no coração da Bacia do Donietz, nas minas de carvão mais ricas da Europa!

Essa falta de coisas continuou durante os anos todos antes da guerra. Esse era o sistema. O povo simplesmente se acostumava com isso e nem mesmo mais notava.

Agora, depois da guerra, os alemães morriam de frio nas casas sem aquecimento. Naturalmente amaldiçioavam os oficiais soviéticos, que não precisavam contar todos os brinquetes, mas não lhes ocorriam que, na Rússia, as famílias dêsses oficiais morriam congeladas mais depressa do que os alemães.

"...mas vou passando. Estou de pé, o dia inteiro, fazendo o trabalho caseiro. É uma pena que não tenha mais força e os ossos doam. Só posso tomar chá doce, com biscoito molhado, às vêzes. Tenho só dois dentes e não posso mastigar nada.

Sua mãe sai para o trabalho, de manhã, às sete horas. Ao anoitecer mal pode arrastar-se para casa, apoiada numa bengala, usando a cerca como arrimo. Não é tanto o trabalho, mas os nervos que a irritam. Tôda gente está irritada, praguejando ao menor motivo, não escutando a gente. Agora ela fem mêdo de ir até o correio retirar suas encomendas. Há ladrões à espreita das pessoas que recebem coisas da Alemanha; entram nas casas, à noite, matando os habitantes. Durante o dia, meninos, "artífices", ficam pelas proximidades do correio, tirando da gente os pacotes, em plena luz do sol".

A menção dos "artífices" fêz-me recordar a fábrica de automóvel Molotov, na cidade de Gorky. No começo da guerra, trabalhei ali, e vi os chamados "artífices", os jovens recrutas do proletariado soviético. A indústria soviética começava a experimentar dificuldades em conseguir mão de obra, porque a juventude soviética não estava preparada a ser trabalhadores comuns, de modo que o Presidium do Conselho Supremo, baixou um decreto: "Sobre a mobilização para as indústrias e para as escolas industriais". Nessas escolas foram matriculados milhões de adolescentes entre a idade de quatorze e dezessete anos.

Em Gorky, êsses "artífices", que frequentavam a escola, industrial, da fábrica, comiam na cantina. A comida era pobre, mas melhor do que a destinada aos adultos, pois, afinal das contas, os adolescentes não têm tanta consciência de classe como os adultos e não podem ser alimentados com propaganda. Além disso, muitos dos "artífices" recebiam alimentação das vidas de onde a maioria havia sido recrutada, de modo que, algumas vêzes, deixavam as rações e, como crianças, chegavam mesmo a encher a mesa de comida não ingerível.

Logo que os "artífices" saiam do refeitório, os operários entravam para a refeição. Alguns corriam para a fila da comida; outros sentavam-se à mesa, pois não conseguiriam lugar até que os proletários mais fortes tivessem comido e, outros ainda, iam até as mesas para, disfarçadamente, comer os restos que os moços haviam deixado.

No começo da primavera de 1945, formei-me no Colégio Militar e, como estava livre de certas matérias, fiz o exame oficial ràpidamente, conseguindo uma semana de licença, passando-a em casa, sob o pretexto de realizar missão oficial no distrito. Fui até a estação de Kazan, em Moscou, e, com a mochila as costas fiquei, andando de um lado para outro, tentando um jeito de conseguir um banco num trem, o que era quase inútil, pois, às vêzes, pessoas tentavam, durante semanas inteiras, para depois desistir. Comecei a estudar o plano da estação para ver se conseguiu um lugar, por meio de uma trica qualquer. Minha única vantagem era não ter bagagem pesada, mas abundância de energia juvenil e tôda a experiência de um cidadão soviético, nêsse assunto.

– Irmão, se não me engano, você tem uma T-T, ouvi dizer uma voz rouca, às minhas costas, enquanto uma poderosa mão batia-me no ombro.

Olhei em tôrno e vi um marinheiro moreno, metido na conhecida blusa escura, o gorro caído sôbre a nuca. A despeito do frio, a camisa estava bem aberta ao peito, mostrando a pele tôda tatuada, até o queixo. Era um dêsses "que não se incomodam com nada" e sempre caem de pé. Sorrido-me como se fôssem velhos conhecidos, apontou para o meu coldre.

– Sim, é uma T-T. Mas que tem isso? perguntei.

– Qual o trem que vai tomar? O das 11:20? perguntou e, quando disse que sim, deu-me um sorriso ainda mais largo. Bem, então tudo está O.K. Vamos!

– Vamos aonde?

– Quando digo "vamos", vamos! Siga-me. Veio da lua, irmão? indagou o novo conhecido.

Para os marinheiros todos os homens são irmãos.

Saímos da estação, atravessámos a escuridão passando por mais de duas casas e mesmo por algumas cêrcas. Afinal chegámos à extremidade da estação e nos trilhos. Nas plataformas, guardas patrulhavam atentamente. Como ladrões, subimos num trem parado numa das linhas. Todos os vagões estavam trancados.

– Agora, dê-me sua T-T, irmão, ordenou o marujo.

– Você não vai atirar?

– Claro que não! Pode ficar com o pente de balas. E agora olhe; eis aqui o seu bilhete deviagem para o mundo inteiro.

Êle armou o revólver, travando o cão do gatilho. Em seguida, meteu o cano no orifício da fechadura do vagão e, à primeira volta, já estávamos dentro.

– Já usei êsse estrategema mais de uma vez, explicou, orgulhosamente o "meu irmão", devolvendo-me a pistola.

Depois disso, eu, também, tivera mais de uma ocasião para utilizar êsse meio fora de comum de abrir portas de vagões.

Sempre que os russos ouvem falar nas palavras "empréstimo e arrendamento", pensam em montanhas de latas empilhadas. Essas latas eram encontradas nas partes mais solitárias e selvagens das famosas florestas de Bryansk, nos pântanos de Leningrado, em todo o lugar por onde passou o exército soviético.

Sem dúvida, a Rússia é um riquíssimo país agricola, com inexauríveis fontes naturais, contudo, de 1942 até 1945, a nação viveu e lutou exclusivamente alimentada por comida americana. Nós, oficiais, estávamos profundamente convencidos de que poderíamos aguentar sem os tanks e aviões americanos, mas teríamos morrido de fome sem alimentação americana. Noventa por cento da carne, gorduras e açúcar consumidos pelo exército soviético era de origem americana e quase o mesmo se pode dizer da vida na retaguarda. Até o feijão e a farinha de trigo eram americanos. O único artigo de origem soviética era o pão preto – aparte, naturalmente, da água.

Falando em água, o povo de Moscou acreditava, sèriamente, que a embaixada americana recebia água até em latas dos Estados Unidos, provavelmente devido à quantidade de "grapefruit" e outros sucos que os americanos bebiam nas latas. Depois da guerra dizia-se que o Cremlin havia feito provisões de alimentos americanos, adiantadamente, para muitos planos quinquenais.

Ocasião houve, em princípios de 1943, que todos os armazéns, nas maiores cidades soviéticas tinham provisões de grão de café, até encher oteto. Antes da guerra, café em grão fôra artigo de luxo na União Soviética, mas agora, tôdas as prateleiras vazias dos armazéns estavam repletas de sacos com inscrições estrangeiras em tinta vermelha. Café racionado custava 500 rublos o quilo! Naquele tempo, o pão custava 150 rublos o quilo, no mercado livre.

O povo começou comprar sacos de café, não porque os russos tivessem adquirido gôsto estrangeiro, absolutamente! Cozinhavam os grãos, jogavam fora o licor e, depois secavam os grãos, moendo-os num pilão ou máquina de moer, para fazer pão da farinha. Pão de café! Antes haviam feito a mesma coisa com pó de mostarda! Pão de mostarda!

Durante a guerra, todos os utensílios de metal, na U.R.S.S. eram feitos de latas americanas. Muitos anos passarão antes que os russos se esqueçam dessas latas de conservas com o rótulo "carne de porco".

Na tentativa de diminuír o efeito dessa propaganda pelas latas de conserva, os fabricantes de boatos da N.K.V.D. espalhavam histórias de que os americanos estavam enlatando carne de macacos sul americanos para enviar à União Soviética.

II

1921. Nêsse tempo eu era ainda criança. Talvez a única lembrança que tenho é das gralhas. Gralhas arrastando-se pelo soalho, à luz da lâmpada de parafina, uma delas arrastando a asa, desajeitadamente, deixando um rastro de sangue. A lâmpada trem.a, os cantos escuros eram muito misteriosos e as graihas arrastavam-se pelo chão.

1930. Eu estava na escola. O nome desta era mudado de três em três mêses, da mesma forma que o currículo. Isso não me interessava muito e nem tinha motivos, pois a maior parte do dia eu passava nas filas do pão, que prolongavam dia e noite. Seiscentos, setecentos... frequentemente o número escrito na minha mão, em tinta indelével, era superior a mil.

Os meninos achavam nisso uma espécie de jogo. Quando a carroça chegava e os pães eram descarregados, havia uma espécie de escaramuça. As mulheres gritavam como se estivessem esmagadas, ouvindo-se pragas, gemidos e lágrimas. Enquanto isso nós, meninos, tentávamos descobrir um modo de entrar no armazém por uma janela ou qualquer outra abertura. Nos outros países as crianças brincavam de "peles vermelhas", mas nós lutávamos para conseguir pão. Foi assim que foram educados os jovens construtores do socialismo, foi dessa forma que o aço foi temperado.

Íamos à escola em dois têrmos, que era um edifício tão frio dentro como a temperatura no exterior. Era muito mais agradável ficar na rua, onde se podia correr e aquecer-se um pouco. Que importava que o professor nos contasse histórias sôbre a Comuna de Paris? Nós não derrubávamos a Bastilha, mas invadíamos as padarias.

1932. Coletivização geral. O povo morria de fome e os cadáveres jaziam nas ruas. Os vivos tinham dificuldade em andar, pois as pernas estavam inchadas com a deficiência de alimentação.

Meu irmão mais velho, que era da Juventude Comunista, foi convocado para cumprir missões especiais. Ele e os seus companheiros receberam armas e montavam guarda, a noite inteira, na igreja que estava sendo usada como campo de trânsito dos prisioneiros. Não havia muitas prisões, nem guardas. Uma noite, centenas de camponeses e camponesas andrajosas, presos como kulaks foram levados à igreja. As mães carregavam os filhinhos nos braços. Muitos dêles nem mesmo podiam manter-se de pé. Os jovens, que haviam recebido armas dirigiram-se famintos à igreja a fim de montar guarda a pessoas igualmente famintas.

De manhã os andrajosos inimigos de classe eram levados para o norte e muitos corpos ficavam inertes nas pedras da igreja, de modo que, no que lhes tocava, o problema da liquidação dos kulaks, como classe já havia sido resolvido.

O inverno passou e a primavera chegou, começando a campanha para arrecadação de trigo para o Estado. Os camponeses estavam fazendo pão de casca de árvores, mas homens armados de pistolas exigiam que deviam entregar trigo para o plantio da primavera. Durante o inverno os camponeses haviam comido casca de árvore, gatos, cachorros e até estêrco de cavalo. Não eram estranhos casos de canibalismo. Ninguém pode dizer quantos milhões de pessoas morreram de fome em 1933, possívelmente um têrço ou um quarto da população agrícola do sul da Rússia.

Durante o verão, os pouquíssimos cães sobreviventes perambulavam pelas vilas desertas, devorando carne humana. Primeiro, o homem comia cachorro; agora êste devorava o homem. Muitos campos estavam abandonados e ninguém havia para colher o que fôra plantado.

A fome artificial de 1932-1933 foi uma medida política posta em execução pelo Politburo, não sendo um desastre elementar. O povo tinha que saber quem era o senhor. A decisão foi tomada no Cremlin e o resultado foi a perda de milhões de vidas humanas. Desde êsse tempo a fome tornou-se um novo membro do Politburo.

Entretanto, nêsse mesmo período, o governo soviético estava exportando, oferecendo trigo a preços baixíssimos, muito mais baratos do que os preços do mercado mundial. O princípio era simples: o trigo tirado do camponês soviético coletivizado, a 6 kopek o quilo era vendido aos operários russos a 90 kopeks o quilo. Nessas circunstâncias, era bastante fácil exportar barato.

A União Soviética oferecia o trigo a preços reduzidíssimos no mercado mundial. Os capitalistas gananciosos apressavam-se a comprá-lo, mas os fazendeiros canadenses e australianos começaram a queimar o seu trigo, enquanto que o rádio de Moscou anunciava, em êxtase:

"Vejam o que se passa no mundo capitalista sem plani ficação".

Mas, depois de queimar o trigo, os australianos e os canadenses não tinham dinheiro para comprar produtos industrializados britânicos, de modo que as fábricas inglêsas começaram a fechar e o desemprêgo a aumentar. Os operários inglêses não possuiam dinheiro para comprar o trigo russo barato.

Do outro lado do oceano, na maravilhosa terra onde o comunismo estava sendo implantado, não havia desemprego e o pão era tão barato que estava sendo vendido para o exterior por ninharia. Portanto houve uma onda de greves e movimentos revolucionários no Ocidente.

– A revolução continua, camaradas! exclamaram no Cremlin, esfregando as mãos.

Na Dinamarca, os porcos eram alimentados com o açúcar russo barato. Na U.R.S.S. o povo tomava chá, olhando o açúcar na mesa, ou, aos domingos e feriados mascavam uma pedrinha enquanto tomavam o chá. Os operários e camponeses soviéticos continuavam famintos, mas não havia dinheiro suficiente para o financiamento de construção de capital, enquanto se importava máquinas e ferramentas. A indústria pesada aumentava proporcionalmente ao resto da economia do país. Os operários e camponeses eram informados de que a indústria pesada faria máquinas para a indústria leve e esta, por sua vez, fabricaria tecidos e botas. Mas, enquanto isso, tanks e aeroplanos eram a principal produção. Nada se podia fazer pois era consequência do cêrco capitalista.

Setembro de 1939. Assinatura do Pacto de Amizade Hitler-Stálin. Vagões e mais vagões de trigo soviético, manteiga soviética, açúcar soviético foram levados para a Alemanha, ao mesmo tempo que êsses artigos desapareciam das casas comerciais soviéticas, que, de qualquer modo, nunca tiveram grandes estoques dêsses produtos.

A fim de explicar a mudança da política, os fabricantes de boatos da N.K.V.D. espalharam a história de que Ribbentrope trouxera a Moscou uma fotocópia de um documento que fôra assinado por quatorze potências estrangeiras, em que ofereciam a Hitler auxílio se êle atacasse a U.R.S.S. Hitler preferiu a nossa amizade: nós almejávamos a paz. Mas por isso tínhamos que pagar!

1941. Guerra. A fome chegou a sua forma final e perfeita. Sistema de racionamento. Já não havia mais desnutrição, mas a fome permanente. No inverno de 1941-1942, um quilo de batatas custava 60 rublos, no mercado livre, o equivalente ao salário de uma semana. Um quilo de manteiga custava 700 ou 800 rublos: três mêses de salário. O operário recebia uma ração que o mantinha de pé e capaz de trabalhar. Na prática, a única alimentação era o pão – 600 gramas diárias – o mesmo pão que fizera os prisioneiros de guerra alemães sofrer de úlceras e morrer como môscas.

Um dia fui chamado pelo diretor da fábrica de rádio de Lenin, afim de discutir algum assunto. Uma batida na porta interrompeu nossa conversa e a secretária apontou a cabeça, dizendo:

– Serdiukova está aqui. Deve entrar ou esperar?

Serdiukova entrou nervosamente na sala. O rosto estava sujo e era difícil calcular sua idade. Vestia uma jaqueta preta e engordurada, meias de tecido grosso, botas de homens nos pés. Silenciosamente ficou ela parada à porta, esperando, numa expressão de louca, embora indiferente, marcada pela apatia da fadiga infinita.

– Por que não veio trabalhar ontem, Serdiukova? perguntou o diretor. Falta é um crime sério, punida pela legislação. Você sabe qual é a punição para isso.

– Estive doente, Camarada Diretor. Não pude sair da cama, respondeu ela numa voz rouca, apoiando-se ora num, ora noutro pé, enquanto no soalho se formava urna poça d'água, caida das botas.

Ausência do trabalho, sem motivo justo, era punida com trabalho forçado, mesmo em tempo de paz. Em tempo de guerra podia dar origem a dez anos de prisão, sob a acusação de sabotagem da indústria de guerra.

– Trouxe atestado médico? perguntou o diretor.

– Não. Não havia ninguém para chamar o médico. Logo que pude levantar vim trabalhar.

Serdiukova era uma dessas típicas mulheres russas que sofrem, sem queixas, tôdas as dificuldades da vida, que aceitam tudo como inevitável, como enviado de cima. Nesta humildade silenciosa há uma espécie de qualidade religiosa. Não franqueza; é uma fonte da enorme fortaleza espiritual russa.

Enquanto a olhava, lembrei-me de um velho soldado que regressava para a frente, do hospital, depois dos últimos ferimentos de guerra. Quando carregava a metralhadora às costas, muito calmamente expressou o seu desejo secreto:

– Ah! seu tivesse perdido uma perna ou um braço! voltaria para minha aldeia.

Fiquei chocado não tanto com suas palavras mas com a atitude com que as disse, a genuina vontade de perder um braço ou uma perna em troca do retorno ao lar. Entretanto, era um soldado exemplar.

Quando trabalhava na cidade de Gorky, num dia de março, atravessando a Praça Svordlov, onde havia poças de neve e de lama, bem a minha frente, duas mocinhas, provàvelmente estudantes, com pastas sob os braços, patinavam na água. Súbito uma delas deixou cair a pasta que bateu na guia da calçada, abrindo se. Livros e cadernos espalharam-se na lama. A moça deu alguns passos vacilantes, para a frente, em direção da parede da casa mais próxima, mas as pernas cederam e ela, vagarosamente, caiu no solo. O lenço azul escapou e os cachos de cabelo castanho confundiram-se com a neve, que se derretia, e a lama. O rosto estava branco e olheiras surgiram-lhe sob o olhos. Havia desmaiado.

Sua amiga apressou-se a socorrê-la. Outros transeuntes auxiliaram a erguê-la e a levá-la até o portão da casa mais próxima. A multidão excitada perguntava à amiga o que acontecera mas ela respondia com certo embaraço:

– Não é nada. Apenas desmaiou.

Uma senhora idosa, de botas enormes, perguntou-lhe:

– De onde vêm? centro?

Sem esperar resposta começou a lamentar com tôda a comiseração de uma mulher simples:

– Pobres crianças! Estão famintas, nem mesmo se agu entam de pé e dão a última gota de sangue. Não podem continuar assim. Do contrário logo estarão na sepultura.

Grande parte dos doadores de sangue nos centros consistia de estudantes e mães com filhos ainda pequenos. Em troca de 450 centímetros cúbicos de sangue, recebiam 125 rublos, que servia para comprar menos de um quilo de pão preto. Depois de cada transfusão recebiam um cartão de racionamento, extra, concedendo-lhes até 200 gramas adicionais de pão, diàriamente, por um mês. Também recebiam uma ração suplementar de 250 gramas de gordura, 500 gramas de carne e 500 gramas de açúcar. Essas mães e mocinhas conheciam o dever patriótico muito bem, sabendo que o sangue era para seus maridos e irmãos na frente de combate, mas era, principalmente a fome que as movia aos centros. As mães tentavam alimentar seus filhos famintos com o preço do próprio sangue; as estudantes preferiam sacrificar o sangue, em vez dos corpos.

Cartas especiais podiam ser obtidas nos centros de transfusão de sangue e muitas moças doadoras costumavam escrever à frente de batalha aos soldados a quem doavam o sangue. Muitas vezes essas cartas marcavam o início de um correspondência e amizade e, depois da guerra, grande foi o número de casos de encontro entre os correspondentes e de casamen to: casamento êsses selado co msangue.

No centro da cidade de Gorky há uma praça "Praça das Vítimas de 1905", um lado da qual é cercada pelas paredes de uma velha prisão onde os heróis da novela de Gorky 'A Mãe' estiveram presos. Do lado oposto está o Teatro Municipal e o Teatro de Ballet. Uma noite, durante o intervalo, fui ao sagão com um grupo de camaradas. Um grupo de pessoas dançavam no vestíbulo, ao som da orquestra. Uma jovem atraente e delgada dançava com um oficial e minha atenção voltou-se para ela. Sua forma delicada era realaçada pelo vestido de sêda cinza e o cabelo estava penteado simples, mas originalmente. A toilette e todos os enfeites indicavam bom gôsto e senso do valor próprio.

– Quem é essa moça? perguntei a um camarada que conhecia muito bem a vida da cidade.

– Estudante. Está no último ano da Faculdade de Medicina, respondeu brevemente.

– Garota interessante, comentei.

– Aconselho-o a não ir atrás dela.

– Por que? Que acontece?

– Apenas o aconselho. Nada mais, terminou êle, não querendo dizer mais nada.

Mas suas palavras haviam-se despertado a curiosidade e fiz a mesma pergunta a outro conhecido.

– A moça de cinza? quis saber, olhando-a ràpidamente. Se está interessado em conhecê-la, por uma noite, é muito simples: uma lata de conserva ou um pão inteiro.

Fitei-o incrédulo. Eu gostava da vida estudantil e ainda me julgava preso a ela. Suas palavras pareceram-me insulto pessoal. Nos dias de antes da guerra, os estudantes consistiam o grupo mais limpo moral e espiritualmente da sociedade. Será que um ano de guerra produzira tal modificação?

– Não diga asneira, repliquei.

– Não é asneira, é a verdade dolorosa. Mora numa pensão, com cinco amigas, num quarto. Tôdas as noites têm do.s ou três visitantes, principalmente oficiais. Quem tem alguma coisa disponível, hoje em dia, a não ser os oficiais?

Antes da guerra pràticamente não havia prostituição na União Soviética. O balancête do homem comum soviético não incluia êsse de despêsa. A prostituição existia sòmente para fins políticos, sob a proteção da N.K.V.D., nas vizinhanças dos hotéis para turistas e restaurantes e onde que se reunissem os estrangeiros. Havia algum comércio de corpos humanos, até certo ponto, nos círculos mais altos da nova classe governante, que possuia meios de comprar êsses artigos.

Mas agora, durante a guerra, a fome estava levando as mulheres às ruas, não por causa de meias, perfumes parisienses ou artigos de luxo, mas por causa de pão ou de conversa. E, pior de tudo, as primeiras vítimas eram os estudantes, que deviam formar as futuras classes profissionais e intelectuais soviéticas. Pagavam um alto preço pela educação superior.

1944. O exército soviético martelava como um aríete os setores mais importantes da frente alemã. O território soviético já estava quase que totalmente livre das tropas alemãs. As unidades de tanks avançavam rumo às fronteiras do Reich. Os soldados dos regimentos de reserva aguardavam, impacientes, o momento de serem enviados para a frente – não por patriotismo, mas movidos pelo fome. Nos regimentos de reserva as rações eram tão pequenas que muitos homens iam remexer as latas de lixo em busca de fôlhas de couve e batatas geladas.

"Os soldados são conquistados pelo estômago" disse Napoleão. Stálin modernizou êsse pensamento, segundo as suas necessidades. No exército soviético havia doze tipos de ração: ração da frente, n.º1, ração da frente, n.º2, ração da reta guarda, n.º2, e assim por diante, até chegar a ração n.º1-a, chamada ração de hospital. Apenas a primeira e a última ração podiam ser consideradas normais; as outras sòmente correspondiam a vários estágios de fome.

Dificuldades de tempo de guerra! Mais de uma vez tentei usar essa justificação para tôda a miséria que se podia ver a todo passo. Eu era um oficial soviético e devia saber para que eu mandava homens no combate. Naqueles dias frequentemente eu me perguntava o que aconteceria depois que expulsássemos todos os alemães do nosso solo. Tudo como antes? Não tinha o menor desejo de lembrar "os dais heróicos da construção socialista".

Na União Soviética a fome foi elevada a um sistema. Tornou-se um meio de influenciar as massas; é membro do Politburo, um aliado verdadeiro e fiel de Stálin.

Leningrado. É um nome que produz orgulho. Estive ali logo depois que a cidade se livrou do bloqueio. Ninguém sabe o total exato das vítimas da fome durante o cêrco. Com o avanço alemão, todos os habitantes das vizinhanças correram para a cidade, aumentando a populção até quase oito milhões. Pelo menos três milhões morreram de fome.

Um dia eu e outro oficial passeávamos pela praia de um lago nos arredores de Leningrado. Bem ao lado do lago havia um pequeno cemitério com relva recente a crescer entre os túmulos abandonados. Um bloco de granito vermelho atraíu minha atenção. "Tenente-aviador... morto como herói na batalha pela cidade de Lenine", dizia a inscrição na pedra.

– Rapaz feliz! disse meu companheiro, que tomara parte na defesa da cidade, desde o início. Os que sobreviveram ao bloqueio são apenas sombra de homens, hoje.

– Sou assassino por omissão, disse-me uma vez um habitante da cidade. Vi um homem caido na neve, na rua, fraco demais para efguer-se. Pediu-me que o auxiliasse, pois morreria de frio. Mas eu não pude, pois eu mesmo cairia para não mais levantar, congelando-me a seu lado. Arrastei-me para a frente, deixando-o morrer na neve.

Eu concederia a todo cidadão de Leningrado a mais alta condecoração possível. Desde os dias de Troia, a história não conhece caso semelhante de heroismo cívico da massa. Era apenas uma necessidade estratégica, ou simplesmente questão em que o prestígio de Stálin estava involvido?

"Quando um homem morre, é uma tragédia; quando morrem milhões, é apenas estatística. "Especialmente quando a morte de milhões é contemplada por detrás das marulhas do Cremlin.

Pouco antes do final da guerra. de volta a Moscou, de Leningrado, num trem, vi que em tôdas as estações, sempre que parávamos, multidões de mulheres andrajosas se acercavam com crianças nos braços. Os rostos infantis eram translúcidos, branco azulado, os olhos brilhantes de fome, expressão envelhecida, sem alegria, séria. Outras crianças estendiam as mãos finas e pediam pão, pão.

Os soldados abriam as mochilas e, silenciosamente entregavam as rações de pão preto pelas janelas, cada um oprimido pelo pensamento nas espôsas e nos filhos. Momentâneamente sentiam-se aliviados, por cederem a comida, mas restava sempre uma sensação de vergonha e amargor. Pode-se alimentar uma terra totalmente faminta com pedaços de pão?

Quando os prisioneiros alemães regressarem da Rússia sem dúvida contarão das rações desesperadamente pequenas nos campos de prisioneiros de guerra. Pelo nível europeu as condições dos prisioneiros de guerra eram péssimas, o duro pão preto apenas veneno para o sistema digestivo europeu. Eu mesmo estive em campos deprisioneiros alemães e vi as condições, mas apenas posso perguntar: notaram os prisioneiros alemães que o povo russo, do outro lado da cêrca de arame farpado, recebiam rações menores ainda? Pensaram que as condições russas eram o resultado do sistema soviético e que no devido curso florescerão na Alemanah Oriental?

Moscou. Últimos dias de guerra. Nos mercados da cidade prossegue um ativo comércio. Mulheres pálidas, exaustas encolhidas nos cantos, alguns pedaços de açúcar ou um ou dos arenques nas mãos estendidas, tôdas vendendo a magra ração para comprar leite ou pão para os filhos. Pão, pão! Em todos os olhos notava-se o mesmo grit silencioso.

O artigo mais vendido era o tabaco russo, chamado "mahorka" – 15 rublos o copo. Os mercados estavam repletos de feridos de glerra, sem pernas, sem braços, vestidos de capotes e túnicas de combate, com as baguetas de sangue no peito. Os milicianos não viam êsses violadores do monopólio comercial do Estado Soviético.

Se algum dêles tentava levar um dos feridos, o ar se enchia de gritos indignados:

– Para que lutou êle? Para que derramou o sangue?

Os companheiros vinham depressa, em seu auxílio, agitando as muletas e bengalas.

Berlim rendeu-se. Dias depois tôda a Alemanha entregou-se incondicionalmente. O povo pensou que, no dia seguinte, as coisas seriam bem melhores. Essa era a esperança do povo que não tinha nada mais do que esperanças.

Agora os dias do primeiro ano depois da guerra já haviam passado, o segundo findava e os membros das fôrças de ocupação soviética, na Alemanha estavam lendo as cartas da pátria. A medida que as lições era como se estivessemos tomando veneno e nosso amargor aumentava pelo que víamos ao redor.

Um dia Andrei Kovtun e eu discutíamos a situação na Alemanha e, gradualmente, a conversa passou-se para comparações entre "aqui" e "lá".

– O metrô de Berlim não vale nada, disse Andrei. Quando o comparo com o de Moscou fico contente. Agora eu ando a procura de coisas da Alemanha que nos sejam favoráveis. É difícil acostumar-se à idéia de que a vida inteira estivemos atrás de sombras.

– Sim, comentei eu, aqui o povo vive no presente, enquanto nós vivemos no futuro, ou melhor, para o futuro. Compreendo muito bem o que sente. É uma violação do equilíbrio interno, como diria um psiquiatra. O único remédio é recobrar a fé no futuro.

– Veja, Gregório! replicou êle. Nós temos esplendidos aeroplanos e tanks, uma poderosa indústria pesada. Deixemos de lado o preço que pagamos por essas coisas, esqueçamos o sangue, o suor, a fome. Acho que já é tempo de explorar essas realizações para nosso próprio benefício. Afinal de contas, ainda não vivemos nada. Nada mais nos tem restado do que fins e ideais: socialismo, comunismo. Mas quando começaremos a viver? Lembra-se do que o Professor Alexandrov disse na Escola Superior do Partido da Comissão Central do Partido? "Se o proletariado dos outros países não atingirem a emancipação, nós estenderemos as mãos em seu auxílio". Sabemos o que significa "estender as mãos". Que adianta tudo se as promessas do tempo da guerra são apenas letras sem fiador? Durante a guerra eu não conhecia o mêdo, mas agora, sim. Sim, agora tenho mêdo.

Êle expressava os mesmos pensamentos e mêdo que domina a maioria dos jovens intelectuais soviéticos e os profissionais. Temos orgulho dos empreendimentos do nosso país, temos orgulho da nossa vitória. Não nos queixamos das dificuldades e privações que experimentámos, o preço que pagámos pela vitória e pela glória do país, mas, nós que vivíamos no Ocidente começávamos a sentir, agudamente, que tôdas as coisas que a propaganda soviética afirma como realização exclusiva do regime soviético são mentiras colossais. Tínhamos nossas dúvidas, mas, agora, as dúvidas se transformavam em certezas e não as podíamos combater.

Havíamos chegado ao ponto da compreensão de que ainda não começáramos a viver e que, continuamente nos havíamos sacrificado pelo futuro. Agora nossa fé no futuro se despedaça. A medida que a situação de após guerra se desenvolve, nós nos enchemos de alarme. Qual o fim de tudo isso?

Passaram-se dois anos, depois do fim da guerra. Nossos piores receios confirmavam-se, agora. Mais uma vez a fome aniquilava o nosso país, pior ainda que a dos tempos de guerra. Mais uma vez o Partido resolvera dominar, firmemente, o povo, decidira fazer o povo esquecer e afastar-se das esperanças ilusórias que o próprio Partido habilmente estimulara e encorajaraa no período crítico da guerra. Mais uma vez êle resolvera mostrar ao povo quem era o verdadeiro senhor e convocara o seu servo mais fiel, a fome, em seu auxílio.

Nos dias passados, a fome fôra uma catástrofe elementar; atualmente é um instrumento manejado, deliberadamente, pelo Cremlin.


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