Gregory Klimov «A máquina do terror»

Capítulo 13. ENTRE DOIS MUNDOS

I

Antes da guerra fiquei conhecendo um livro de Paul de Cruis "Vale a pena viver?", verdadeiro achado para a Companhia de Publicações do Estado Soviético, pois estava em completo acordo com a orientação do Politburo, naquele tempo, com os seus ataques às "democracias apodrecidas". Em virtude dêsse fato, o livro foi traduzido e editado em grande quantidade. A edição russa tinha um prefácio do autor, tão espantoso que o li, em voz alta a um amigo:

"Não posso passar por um proletário; antes sou um burguês entre os burgueses, enervado e corrupto pelas facilidades do meu estado social. Com uma asa de perdiz na mão e um copo de Borgonha, na outra, encontro dificuldade em refletir nas úlceras sociais e nos dolorosos problemas da sciedade moderna. Não obstante, sinto grande entusiasmo pela experiência soviética, ergo o punho direito (segurando a asa de perdiz ou o Borgonha?) e grito "Frente Vermelha".

Nêsse ponto meu amigo já estava saturado e, praguejando violentamente, atirou longe o livro. Nós ambos sentíamos amargamaente, não termos, no quarto, aquêle francês simplório. Pode ser que haja pessoas que se divirtam vendo um coelho dissecado, mas o próprio coelho não compartilha do prazer.

Depois da guerra lembrei-me do livro de Paul de Cruis e, especialmente, da sua pergunta "Vale a pena viver?", pois agora, alguns de nós tiveram a oportunidade de ver as crianças do mundo democrático, e isso na Alemanha dominada, em condições que eram, de modo geral, piores do que as dos países democráticos. Agora tínhamos a oportunidade de fazer comparações.

Na Alemanha, a diferença entre as crianças dos dois sistemas era dolorosamente clara. A princípio, notámos apenas as diferenças superficais, mas, quando permanecemos em Berlim, depois de certo tempo, percebemos uma diferença muito mais profunda. As crianças soviéticas parecem autômatos sem alma, com tôda a alegria e desembaraço suprimidos, resultado de muitos anos da substituição da família pelo Estado. As crianças soviéticas crescem numa atmosfera de desconfiança, suspeição e segregação. Em Berlim achávamos muito mais difícil iniciar uma conversa com o filho de um oficial soviético, que nos era conhecido, do que com qualquer garoto de rua.

As crianças alemãs, nascidas na época de Hitler e as que nasceram nos anos seguintes ao da rendição, dificilmente poderiam ser consideradas como exemplo, de modo que achávamos ainda mais deprimente notar essas vastas diferenças internas e externas entre as crianças dos dois sistemas.

Eis aqui um pormenor significativo. Os alemães não têm o hábito de trazer a sogra para morar na casa dos recén-casados, pois isso é considerado um desastre familiar. As sogras alemãs tomam a atitude de quem, após livrar-se das filhas, pode "gozar a vida", andando de bicicleta, visitando exposições de quadros e vivendo a própria vida. Numa família soviética dá-se o oposto. Para a mulher é sorte e ainda mais para os filhos, a sogra morar junto. Geralmente as crianças soviéticas são educadas pela avó. Enquanto a mulher alemã de quarenta anos ou mais, frequentemente começa uma "segunda juventude", quando a filha se casa, a mulher russa de mais de quarenta anos não tem mais vida particular, devotando-se inteira e totalmente à segunda família, aos netos. Somente assim poderá haver certeza de que as crianças serão educadas de modo normal.

Generalizando-se a diferença, pode-se dizer que a mulher alemã pertence à família, enquanto que a mulher soviética pertence ao Estado. A mulher soviética pode ser maquinista, mineira ou pedreira e, além disso, possui o honroso direito de votar em Stálin e de ser refén do marido se o M.V.D. nêle estiver interessado. Apenas um pequenino direito lhe é negado: o de ser mãe feliz.

Em 1943 um decreto estatal criou as Escolas de Cadete de Suvorov e Nakhimov. A tarefa dessas escolas – agora há cêrca de quarenta – era preparar as crianças de oito anos para cima para a carreira militar, através de um estilo de educação e treinamento de caserna.

Uma ocasião tive a oportunidade de visitar a Escola de Cadetes de Surov, em Kalinin. Não estava situada muito longe de Moscou e, consequentemente, era a mais privilegiada de todas as escolas, pois em Moscou não havia nenhuma escola Surov. Em Kalinin encontrei certo número de rapazes, netos membros do Politburo. Petka Ordjonokidze, neto de Sergo Ordjonokidze, na ocasião Comissário do Povo da Indústria Pesada, estava sentado de cuecas, na cama, pois as calças do uniforme estavam sendo remendadas e o regulamento prescrevia apenas um uniforme por criança. Sob êsse aspecto, ter um avô de grande influência e fama não adiantava muito. O professor, um capitão, queixou-se da sua delicada posição com relação ao rebanho mais jovem de Mikoyan, que fornecia cigarros ao estabelecimento inteiro, por meio de contrabando. Não podia êle ser punido com prisão, pois avô ainda estava vivo e tinha excelente situação no Politburo. Alguns dos rapazes de doze ou treze anos ostentavam condecorações de serviços prestados quando guerrilheiros. Olhando de perto, tudo isso não parece assim tão mau, pois as escolas de Survov são instituições privilegiadas onde as crianças são vestidas, alimentadas e educadas às expensas do Estado. Os candidatos são em número superior ao de vagas, de modo que não é fácil uma criança comum entrar nessas escolas. Na de Kalinin, cêrca da metade dos alunos era aparentada com generais ou outros membros da Aristocracia soviética.

Ao terminar o curso, os alunos não podem entrar em outro estabelecimento senão na escola preparatória de oficiais. Seu destino, sua futura carreira, são decididos quando têm oito anos de idade. A sociedade sem classes divide seus filhos, muito cedo, em castas rigidamente delimitadas: a casta privilegiada dos militares e a dos proletários, cuja função é o trabalho produtivo, multiplicação até os limites aprovados e morrer pela glória do chefe.

Em 1946, realizou-se uma conferência urgente, pelo chefe da Administração Política da A.M.S. a fim de discutir-se a melhora do trabalho educacional na escola russa de Karlshorst. Certas formas pouco sadias haviam sido observadas entre os alunos dos últimos anos. Há um mês, ou menos, um aluno do nono ano havia matado o pai e a jovem amante dêste. O pai era membro do Partido, um tenente-general, fun cionário do departamento jurídico da A.M.S. Aparentemente êle se acostumara aos hábitos do tempo de guerra e não se preocupara com a circunstância de estar morando com a amante, debaixo dos olhos do filho e da filha, cuja mãe ficara na Rússia.

Depois de conversas infrutíferas e discussões com o pai, o filho, um rapaz de dezessete anos, membro da Liga da Juventude Comunista, resolvera apelar para o conselho e assistência da organização do Partido, tendo feito acusação formal ao chefe do Departamento Político. Quando um membro do Partido é acusado de conduta imoral ou criminosa, os órgãos do Partido geralmente agem segundo o princípio de não lavar roupas sujas em público, de modo que o caso foi abafado, tendo sido êle levado 20 conhecimento do pai. O resultado poderia ter sido antecipado. Furioso, êste tomou algumas medidas contra o filho, o que terminou com o rapaz ter tirado sua pistola e o matado.

Nem bem havia morrido êsse caso, quando o comandante de Karlrshorst, Coronel Maximov, foi obrigado a confiar uma tarefa bastante fora do comum a uma companhia de guardas do comando. Um bando misterioso de ladrões estava operando nas dunas e descampados dos arredores de Karlshorst, enchendo as ruas do distrito de alarme e terror. A companhia enviada recebeu ordens especiais para não atirar sem autorização especial do oficial em comando, e de trazer os ladrões com vida, que eram alunos dos últimos anos da escola de Karlshorst e chefiados pelo filho de um dos generais da A.M.S. Todos estavam bem armados com as pistolas dos pais, e alguns, até com pistolas-metralhadoras.

O distrito foi varejado inteiramente, a séde dos ladrões encontrada no porão de uma casa em ruinas e, formalmente, cercado. Somente depois de longas negociações, através de emissários, o chefe do bando se declarou disposto a capitular. É notável o fato de que a primeira condição imposta foi a de não serem repatriados à União Soviética, para punição. O oficial ocmandante da companhia teve que enviar um mensa geiro a A.M.S. a fim de obter a anuência necessária. A estipulação causou grande abalo no Departamento Político da A.M.S.

Descobriu-se que os resultados obtidos nos últimos anos da escola de Karlshorst não eram os mesmos obtidos na U.R.S.S. e, ao contrário, havia considerável aumento na vadiagem. O único progresso verificado foi com relação à conversação em alemão, o que não agradou de modo algum as autoridades escolares, pois demonstrava que os alunos estavam em contacto com o mundo alemão ao derredor. Isso poderia trazer consequências desagradáveis para o corpo da escola.

II

– Então, gostou?

– Sim. Belo trabalho.

– Sem dúvida. Verdadeira obra de mestre.

A compacta corrente de seres humanos carregou-nos da escuridão do cinema do clube dos oficiais em Karlshorst. A multidão exprimia suas opiniões sobre o filme, enquanto saía.

Aquela manhã, Nadia, secretária do Organizador do Partido da Administração da Indústria, espantara-nos com sua conduta amável, indo de sala em sala, entregando a cada um um ingresso de cinema, perguntando quantos queríamos. Normalmente isso não era fácil e, quando a gente queria ir, tinha que pedir a Nadia, com muita antecedência.

– Ah! querida Nadia! Que vão passar hoje? perguntei, um pouco comovido com a amabilidade.

– Bom filme, Gregório Petrovich. "A Promessa". Quantos ingressos quer?

– Ah! "A Promessa", murmurei, respeitosamente. Nêsse caso, dois.

A imprensa soviética havia dedicado grande espaço a êsse filme, exaltando-o até as nuvens como sendo nova obra prima da arte cinematográfica. Embora, de modo geral, fôsse muito cético com relação às proclamadas obras de arte, resolvi ir. Havia tido tanta publicidade que teria sido muito perigoso não ir.

Cinco minutos depois do início, o Capitão Bagdassarian e eu estávamos olhando o relógio e não a tela. Teria sido um ato de loucura sair, mas ficar sentado e ver aquêle filme...

– Finjamos que nos dirigimos a toilete e depois escaparemos, propôs Bagdassarian, num sussurro.

– É melhor ficar sentado e assistir ao filme, por interêsse científico, aconselhei-o.

Já nos filmes de antes da guerra Stálin havia começado a adquirir uma estatura igual a de Lenine, mas em "A Promessa", Lenine servia apenas como um motivo decorativo. Ao saberem que Lenine estava seriamente doente, os camponeses do distrito vizinho vieram em peregrinação à vila de Gorky, apenas para pedir, com lágrimas nos olhos, que Stálin fôsse o seu líder. Durante centenas de metros juraram fidelidade e lealdade.

Eu também jurei. Jurei que nunca em minha vida, nem mesmo nos dias de ante-guerra havia eu visto um remendo tão tolo, desenvergonhado e vulgar. Não era de admirar que o clube de oficiais havia deixado de exibir filmes estrangeiros já há alguns mêses.

– Mande um filme dêsses para o exterior, disse Bagdassarian, quando íamos para casa, e pensarão que todos os russos são um bando de idiotas.

Nós, russos, frequentemente tínhamos discussões interessantes sobre os filmes e peças alemãs. O epectador soviético fica impressionado com atenção fora do comum concentrada nos pormenores, nos fatos e nos próprios atores. Esses filmes proporcionavam abundante assunto para discussão. 'A Promessa' não provocou nenhuma discussão.

– Sua arte é passiva, a nossa é ativa. Sua arte exibe, a nossa ordena, observou Bagdassarian. Já viu o 'Julgamento das Nações'?

– Sim. É uma poderosa obra prima.

– Vi-o, ainda há pouco tempo, no setor americano. Deram-lhe uma montagem diferente e chamaram-no de 'Nuremberg'. É o mesmo tema, mas não causa impressão.

Chegámos ao apartamento de Bagdassarian. Ainda sob a influência do filme que haviámos acabado de ver, sentamos discutindo as possibilidades da propaganda através da arte.

– Os americanos levarão outro século para aprender a fazer branco-preto, disse êle, ao tirar o capote.

– Se tiverem, logo aprenderão, respondi.

– Não pode ser feito num dia. As massas têm que ser educadas através dos anos.

– Por que está assim tão interessados nos americanos? perguntei.

– Estou apenas pelo aspecto da justiça absoluta.

– Quem está interessado na justiça? A justiça e a força. A justiça é um conto de fadas para os tolos.

– Concedo-lhe grau dez em Materialismo Dialético, observou, sarcàsticamente o capitão. Mas, antes da guerra as coisas eram grandiosas. Lembra-se dos filmes que os americanos nos mandavam?

– Sim, eram ótimos. Entretanto, era divertido ver como nos conheciam pouco. Em 'Estrela Polar' os fazendeiros tinham mais comida e melhor do que a de Sokolovsky.

Muitas vêzes ficávamos admirados de ver como o mundo exterior pouco conhecia da verdadeira situação da Rússia Soviética. A atividade de trinta anos da fábrica de mentiras do Estado, e o fechamento hermético à qualquer informação livre, tiveram seus resultados positivos. O mundo é informado, como se fosse uma criancinha, que o sistema capitalista está condenado à destruição. Mas, sôbre essa questão, o povo soviético não tem nenhum ponto de apôio sólido. A história prossegue incessantemente, exigindo novas formas de desenvolvimento, mas mesmo asim, para nós, a inevitabilidade histórica do comunismo, a tese de que "tôdas as estradas levam ao comunismo", é o único fator constante numa equação que tem muitos fatores negativos e desconhecidos. Para nós, povo soviético, esta equação já adquiriu uma qualidade irracional.

Estamos unidos não pela unidade intrínsica de uma concepção de Estado, mas pelas formas extrínsicas da dependencia material, interesses pessoais ou uma carreira. E tudo isso é dominado pelo mêdo. Para alguns, êsse mêdo é direto, físico, perceptivel; para outros, é uma consequência inevitável se se comportarem ou mesmo pensarem de outra maneira diferente do que exige a máquina totalitária.

Mais tarde, no Ocidente, tive a oportunidade de ver o filme americano 'A Cortina de Ferro', relacionado com a descoberta da espionagem atômica soviética no Canadá. Eu já lera váriasa criticas dêsse filme, bem como iradas explosões da imprensa comunista e estava interessado em ver como o americanos haviam tratado êsse tema interessante. Deixou-me êle duas impressões. De um lado, uma sensação de satisfação: os tipos foram bem escolhidos e a vida dos representantes do Partido, no exterior e o papel do Partido Comunista local foram apresentados com muita veracidade. Mais uma vez vi-me dentro da vida levada no Cremlin de Berlim. Nenhum russo teria qualquer crítica a êsse trabalho. Não era surpreendente que os partidos comunistas estrangeiros ficassem zangados com o filme, pois, nêsse setor, desempenham o papel mais sujo. O que para o pessoal do departamento de adidos militares é assunto de serviço, é traição para o país quando realizado pelos comunistas.

De outro lado, o filme deixou-me uma vaga sensação de tristeza. Os americanos não haviam explorados tôdas as possibilidades.

III

Em Berlim, os oficiais soviéticos podiam comparar os dois mundos. Era interessante a impressão causada pela vida real contra as ficções criadas e mantidas pelo Estado Soviético. Os criadores dessa ficção são operários da pena, os "engenheiros da alma humana" como são chamados na União Soviética.

Naturalmente estávamos interessados nos escritores que discutiam o problema da Rússia Soviética. Podem êles ser divididos em três categorias principais: os escritores soviéticos, que são escravos do "comando social"; os escritores estrangeiros que voltaram as costas ao stalinismo e, finalmente, os estrangeiros problemáticos que até hoje ainda estão ansiosos por encontrar pérolas na esterqueira.

Vamos considerá-los como o homem soviético os vê.

Um dia encontrei uma novela francesa na mesa de Belyavsky. Apanhei-a para ler o nome do autor e fiquei surpreso: era Ilia Eherenburg.

– Mas você ainda não a leu em russo? perguntei-lhe.

– Não foi publicada em russo.

– Que quer dizer?

– É muito simples.

Êle tinha razão. Os críticos soviéticos em literatura sustentam que os melhores jornalistas da época são Egon Erwin Kisch, Mikhail Koltsov, e Ilia Ehrenburg. Não se discute que sejam todos escritores brilhantes. A carreira literária de Koltsov interrompeu-se em 1937, em virtude de uma intervenção da N.K.V.D. Diz-se que agora está escrevendo as suas memórias de um campo de concentraação na Sibéria. Durante muitos anos Ehrenburg foi classificado como "viajante". Com um passaporte soviético no bolso, preferiu, sabiamente, viver no exterior, a uma distância respeitável do Cremin, o que lhe assegurava certa independência. Seus livros foram publicados em grandes edições na Rússia Soviética. Não era surpreendente que tivesse encontrado um livro seu, em francês, e desconhecido na U.R.S.S. Sòmente a invasão hitlerista da França fê-lo voltar a sua terra natal.

Em primeiro lugar, Ehrenburg é um cosmopolita. Muitas pessoas julgam-no comunista. É verdade que subtil e inteligentemente êle criticou os defeitos da Europa e do mundo democrático, mas não é preciso ser comunista para fazer isso muitos escritores que não são comunistas fazem o mesmo. Depois de abandonar o seu sistema de denúncias rápidas e juvenis dos invasores nazistas, começou a compor artigos melífluos a respeito da bela e violada França, o firme leão britânico e a América democrática. Durante a guerra gostávamos dêsses artigos, mas a sua assinatura em baixo parecia-nos uma pilhéria sem graça. Hoje, obediente aos seus senhores, ataca os "imperialistas" americanos. Ehrenburg que antes gozava de certa independência, agora foi completamente envolvido pelas teias do Cremlin.

Sua carreira e destino são típicos dos escritores soviéticos, em geral. Têm êles apenas duas alternativas: ou escrevem o que o Politburo ordena ou são condenados a extinção literáriaa. Se Leo Tolstoy, Alexandre Poushkin ou Lermontov tivessem vivido na época de Stálin, seus nomes nunca teriam sido acrescentados ao Panteon da cultura humana. Quando eu era estudante, livros como 'Nove Pontos', de Kazakov, 'Divisão de Ferro', de Lebedenko e 'Inspeção Geral', de Soboliev eram passados de mão em mão. Esses nomes geralmente não são conhecidos pelo público, tendo sido impressos em pequenas edições, sendo difícil conseguir um exemplar. É característico que todos êles tratam do período de 1917-21, quando as massas ainda estavam inspiradas de entusiasmo e esperança. A consciência dêsses escritores não permitiu que escrevessem sôbre os tempos posteriores; frente à alternativa de mentir ou calar, preferiram o silêncio.

Não se pode condenar os escritores soviéticos. O homem é feito de carne e sangue e a carne e o sangue são mais fracos do que o chumbo e o arame farpado. Além disso há a grande tentação não somente de evitar a morte física e criativa, mas também de gozar todas as vantagens de uma situação privilegiada. Algumas pessoas acham estranho, mas há milionários na terra do comunismo, milionários verdadeiros, com uma contaa no Banco do Estado e possuindo propriedades no valor de mais de um milhão de rublos. Alexei Tolstoy, autor de 'Pedro I' e cenários para o 'Iva, o Terrível', foi um exemplo do milionário soviético. Quem pode atirar a primeira pedra num homem que enferntou essas alternativas?

É difícil convencer os propagandistas da mentira pura do Cremlin. Há uma arte refinada de mentir, que consiste no exame unilateral de uma questão. Nêste campo os impostores e viajantes comerciais do Cremlin atingiram um alto nível: passam por sôbre um lado da questão, em completo silêncio, ou então a vilependiam, ao mesmo tempo que exaltam o outro aspecto.

Em Berlim, com frequência, encontrávamos livrinhos divertidos, escritos por autores estrangeiros, publicados por editores estrangeiros, exaltando Stálin e o regime. É digno de nota que êsses livros ou não são traduzidos para o russo, ou são editados em pequenas edições, sendo virtualmente impossível obter exemplares. São destinados exclusivamente para o consumo externo. O Cremlin prefere que os russos não vejam êsses livros: as mentiras são muito evidentes.

Não muito longe do Portão de Brandenburg há uma livraria, "Das Internationale Buch". É uma livraria soviética que vende literatura em línguas estrangeiras, destinada a leitores estrangeiros. Nós a visitávamos com frequência. Claro que não comprávamos as obras de Lenine, mas sim discos de vitrolas. Coisas que não podem ser compradas a qualquer preço em Moscou são oferecidas em abundância aos estrangeiros.

Propaganda – apenas um homem soviético sabe o que ela é! Diz-se de uma famosa bebida que duas partes do preço são destinadas à fabricação e três para propaganda e muitos consumidores estão convencidos de que no mundo não há nada mais delicioso, saudável e caro. Tal é o poder da propaganda.

O Cremlin conhece o enorme poder que a propaganda exerce sôbre a alma humana e sabe do perigo que o ameaça se a miragem se desfizer. Durante a guerra, os nazistas proibiram os alemães de ouvirem as irradiações inimigas, mas não foram privados dos receptores. O Cremlin fêz de outra forma: na U.R.S.S. todos os receptores foram confiscados, desde o primeiro dia de guerra. O Cremlin conhecia muito bem o seu ponto fraco. Se os trinta anos de propaganda forem solapados, a efêmera unidade espiritual entre o Cremlin e o povo desaparecerá como uma névoa.

"A Imprensa é a arma mais poderosa do Partido" disse Stálin. Em outras palavras, a arma mais poderosa do Cremlin é a propaganda. A propaganda une as fôrças internas e desintegra as externas. Melhor para Stálin que os seus oponentes não compreendam a acurácia e o significado das suas palavras.


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