I
– Apresento-lhe o Tenente-coronel Dinashvili, disse o Coronel Kondakov.
Cumprimentei um homem em trajes civis cinzento. A camisa branca estava aberta no colarinho e não usava gravata, negligência exagerada para um civil, característica do oficial profissional. O rosto era empapado, côr esbranquiçada, sem dúvida há muito desacostumado à luz solar. Os olhos fixos demonstravam indiferença cansada. O apêrto de mão era frouxo.
A pedido do Grupo Central de Operações do M.V.D., o Coronel Kondakov e eu havíamos ido à sede, pois havia certos assuntos, em suas mãos, que se relacionava com material análogo no departamento do Coronel Kondakov, de modo que a A.M.S. fora consultada. O primeiro caso referia-se a um ex-trabalhador científico do laboratório de Peenemunde, a séde das pesquisas alemãs sôbre projéteis-foguetes.
– Um pequeno atraso! disse o tenente-coronel, lançando um olhar para a porta. Dei-lhe ordens para se tornar mais ou menos apresentável.
– Está com êle há muito tempo? perguntou Kondakov.
– Mais ou menos sete mêses, respondeu Dinashvili, em tom sonolento, como se não tivesse dormido um minuto desde o nascimento. Recebemos certas informações de agentes a resolver vigiá-lo.
– Mas por que... em tais circunstâncias? perguntou o coronel.
– Estava vivendo na zona ocidental, mas sua mãe está em Leipzig. Mandâmo-lo escrever-lhe e convidá-lo para uma visita. Agora o temos sob chave até que a questão se esclareça.
– Mas como sua mãe concordou?
– Ameaçámos expropriar a sua quitanda, se não o fizesse. Dissemos-lhe que apenas queríamos ter uma conversa amigável com o filho, explicou Dinashvili, num bocêjo.
Pouco depois, o sargento trouxe o prisioneiro. A brancura de giz do seu rosto e os olhos fundos e febris eram mais eloquentes do que tôdas as tentativas do M.V.D. para torná-lo mais apresentável.
– Bem, você começa a trabalhar nele, enquanto descanso um pouco, falou Dinashvili, bocejando, de novo, e estendendo-se num sofá.
O prisioneiro, engenheiro e especialista em armas de ar tilharia, interessava-nos particularmente porque, segundo as informações dos agentes, havia trabalhado no "terceiro está gio", como se chamava em Peenemunde. O "primeiro estágio" relacionava-se com armas já experimentadas na prática e produzidas em série; o "segundo estágio" lidava com armas que não haviam ultrapassado a fase de experiências dentro das fábricas e o "terceiro estágio" dizia respeito às armas que não haviam sido mais do que planejadas. Sabíamos muito bem dos resultados do trabalho nos primeiros estágios, mas o "terceiro estágio❞ éra-nos um claro, pois quase todos os desenhos, fórmulas, etc., haviam sido destruidos na ocasião da rendição. Nenhum material concreto chegara até nossas mãos e a nossa única fonte de informação era o testemunho oral de certas pessoas.
A julgar pelos relatórios dos interrogatórios já feitos, o prisioneiro apresentado havia trabalhado num grupo de cientistas cuja tarefa era produzir foguetes guiados para defesa anti-aérea. A decisão alemã, de explorar êsse ramo de atividade fôra resultado do fato de o poder ofensivo aéreo dos aliados ter vencido as defesas anti-aéreas da Alemanha. Os foguetes deveriam ser lançados de plataformas especiais, sem cálculo preciso da distância do alvo. A uma certa distância do aviãoalvo, instrumentos ultra-sensíveis, na cabeça do foguete, dirigiam automàticamente os projéteis e os faziam exdir na vizinhança do alvo. Os alemães já haviam explorado o mesmo princípio com as minas e torpedos magnéticos, dessa forma inflingindo grandes perdas às frotas aliadas, nos primeiros dias da guerra. No caso do foguete, o problema era complicado pela velocidade muito maior, quer do projétil, quer do alvo, pelas dimensões menores dêste e pelo fato de que o avião é construido, principalmente, de metal não magnético. Não obstante, possuíamos indicações de que os alemães haviam encontrado dêsses problemas, há pouco tempo. Muitas eram as contradições referentes à maneira como o conseguiram, quer por radar, quer por células foto-elétricas, quer por outro modo.
Os relatórios do interrogatório demonstravam que o prisioneiro recebera ordens para reconstruir todas as fórmulas e planos de construção do foguete V-N, de memória. O Coronel Kondakov deu novo rumo ao interrogatório. Depois de comparar os dados, tentou determinar a posição exata que o prisioneiro ocupava no complicado sistema do pessoal científico de Preenemunde. Evidentemente percebeu que um só homem não poderia, possivelmente, conhecer todos os aspctos do trabalho sobre o projeto, como queria o M.V.D.
– Está disposto a prosseguir o seu trabalho num instituto de pesquisas soviéticas? perguntou ao prisioneiro.
– Já pedi mais de uma vez que me dessem oportunidade para provar a veracidade das minhas declarações, respondeu o prisioneiro. Aqui pouco posso provar. Isso é compreensível.
A forma cinzenta, deitada de costas para nós, no sofá, abruptamente animou-se. O tenente-coronel pulou de pé.
– Quer a liberdade? Então por que fugiu para o Oci dente? gritou ao prisioneiro, que encolheu os ombros, desesperançadamente.
– Proponho colocá-lo à disposição do General... disse Kondakov, voltando-se para Dinashvili, mencionando o nome do general que estava encarregado do pôsto de pesquisas em Peenemunde. Lá tiraremos dêle tudo que sabe.
– Mas suponhamos que êle fuja? perguntou o tenente-coronel, olhando o homem, com desconfiança.
– Camarada Tenente-Coronel, sorriu Kondakov, friamente, para nós, a questão decisiva é conseguir as maiores vantagens possíveis de cada caso individual. Dirigir-me-ei às autoridades superiores para que êle seja transferido para Peenemunde.
Nossa atenção concentrou-se no próximo caso que estava ligado à idéia de uma invenção realmente fantástica. Os planos não haviam ido além do estágio dos cálculos e esboços do próprio inventor e nunca haviam sido experimentados por qualquer organização oficial alemã. O homem estivera na zona francêsa e oferecera o projeto a consideração das autoridades francêsas. Os serviços interessados soviéticos haviam sabido dos planos por meio do Partido Comunista Francês e haviam entregue o caso nas mãos do M.V.D. Como o inventor alemão fora trazido à zona soviética não mencionava o relatório; sabia-se, apenas, que passara dez mêses nos porões do Grupo de Operações de Potsdam, onde fôra encorajado a continuar o trabalho, na invenção, com todos os meios disponíveis.
Surgiu-nos um jovem louro, engenheiro elétricista, que se especializara em problemas de baixa tensão. Durante a guerra trabalhara nos laboratórios de pesquisas de várias importantes firmas técnicas em eletricidade relacionadas com a televisão e outros aparelhos. Trabalhara na invenção, por vários anos, mas os planos haviam começado a ser postos em prática no final da guerra quando as autoridades militares alemãs já não mais se interessavam por essas coisas.
Começou a explicar a sua invenção, referindo-se ao trabalho de importantes cientistas alemães no campo da ótica, que consistia de dois instrumentos – um transmissor e um receptor. O transmissor, aparelho relativamente pequeno, era destinado a ser lançado a alguns quilômetros da retaguarda das linhas inimigas; quando em funcionamento, o receptor, situado no outro lado da frente de combate, mostraria numa tela tudo que se passava entre os dois instrumentos; em outras palavras, tôdas as posições e recursos técnicos do inimigo. O emprêgo de uma série de transmissores e receptores forneceria uma visão nítida de qualquer setor da frente de batalha.
Não havia nenhuma indicação, nos relatórios, do motivo pelo qual o M.V.D. mantivera o homem preso durante dez mêses. Com a desconfiança característica, os oficiais supunham que êle estava tentando ocultar pormenores e tentaram todos os meios de obrigá-lo a dizer mais do que realmente sabia.
Nêste caso, o Coronel Kondakov tentou uma tática diferente da empregada com o especialista de foguetes; tentou descobrir até onde o inventor conseguira por em prática o que planejara. Estava interessado não somente na teoria mas na possibilidade de aplicação. Crivou o homem de perguntas especializadas no campo da telegrafia sem fio e da televisão e êle passou nos exames, com honra, demonstrando, entretanto, uma obstinação raramente encontrada por detrás das paredes do M.V.D., exitando dizer os pormenores principais de sua invenção. Possivelmente tinha receio que o M.V.D. o matasse, por ser testemunha desnecessária e inconveniente, depois de tudo contado.
– Está disposto a demonstrar que o seu plano é tecnicamente plausível, no interior dos muros de um instituto soviético de pesquisas? indagou Kondakov.
– Herr Coronel, isso é a única coisa que tenho pedido, respondeu o homem, em voz trêmula.
– Esse porco está mentindo! gritou de novo Dinashvili, do sofá, pulando de novo, de pé. Está apenas procurando uma oportunidade para fugir. Por que ofereceu a invenção aos franceses?
– Proponho colocá-lo à disposição do Coronel Vassiliev, em Arnstadt, disse Kondakov ao oficial do M.V.D. Se Vassiliev não aceitar as suas propostas, tê-lo-á de novo, podendo resolver o assunto como quiser.
– Desse modo vai deixar que todos os prisioneiros fujam, disse Dinashvili, furioso.
Passámos o resto do dia examinando vários documentos, notadamente de relatórios de agentes sôbre cientistas e técnicos alemães nas zonas ocidentais. Tínhamos que decidir até onde essa gente seria de interêsse prático à União Soviética. Em caso airmativo, o M.V.D. se encarregaria de "providenciar a oportunidade".
Ao entardecer a missão estava finda. Olhando o relógio, resolvi telefonar a Andrei Kovtun. Quando lhe disse que estava em Potsdam, convidou-me a visitá-lo, no seu gabinete.
Muitos mêses haviam passado dêsde nosso primeiro encontro em Karlshorst, mas, nêsse meio tempo, visitava-me quase que semanalmente. As vêzes, aparecia no meio da noite; às vêzes, de madrugada. Se eu lhe oferecia um pouco de comida ou de café, apenas acenava a mão, cansado e dizia:
– Vim apenas dar um pulinho. Vou tirar uma soneca no sofá.
A princípio eu me espantava com essas visitas irregulares e sem objetivo, pois êle sentia um prazer mórbido em falar dos dias escolares e da nossa escola. Voltava sempre aos menores detalhes das nossas experiências juvenis, sempre terminando com a exclamação:
– Ah! Que dias grandiosos!
Às vezes me parecia que êle vinha conversar apenas para fugir das circunstâncias atuais.
Pedi ao Coronel Kondakov que me deixasse no exterior do edifício da administração central do M.V.D., onde Andrei trabalhava. Na sala de informações uma autorização já me aguardava. Na penumbra da noite de estio atravessei o jardim e subi ao segundo andar, onde ficava o gabinete de Andrei.
– Bem, arrume-se, disse eu, entrando. Vamos para Berlim.
– Você já terminou o serviço, hoje, mas eu estou apenas começando, retorquiu êle.
– Então para que me convidou a vir aqui? perguntei, zangado, pois, após passar um dia na companhia do Tenente-Coronel Dinashvili, sentia um desejo urgente de respirar ar fresco.
– Não se exalte, Grisha! Quantas vêzes já não estive no seu quarto e você nunca veio aqui antes.
– Passei o dia inteiro num buraco como êste, repliquei, sem me preocupar em ocultar o aborrecimento. Não desejo ficar aqui. Se quiser, vamos ver uma revista em Berlim. Se não...
– Gostaria de ver um espetáculo? interrompeu êle. Pode ver um bom espetáculo aqui. Coisas que nunca viu num teatro.
– Não tenho a mínima vontade, insisti.
– Escute, Grisha! disse êle, mudando de tom, a voz fazendo-me recordar quando ficava sentado de atravessado, na cadeira. Há muito tempo que estou interessado num certo problema. Para fazer-me compreensível terei que recordar certos fatos. Eu e você nada temos que ocultar um do outro. Ninguém no mundo me conhece melhor do que você.
Por alguns instantes êle calou-se, para acrescentar:
– Mas até hoje não o conheço..
– Que é que quer saber, então? perguntei.
Êle foi até a porta e girou a chave. Em seguida retirou os fios que iam da mesa até as tomadas da parede.
– Lembra-se da nossa infância? disse, enquanto recostava as costas no espaldar da cadeira. Você era um fedelho como eu e deve ter tido a mesma espécie de reação que eu sentia. Mas você nunca falou nada. Naqueles dias, eu ficava maluco com você, por causa disso. Mas agora devo considerar isso como algo digno de louvor. Sabe por que?
Não respondi e, depois de alguns momentos, êle prosseguiu, olhos fitos em baixo da escrevaninha.
– É uma velha história. Eu tinha quatorze anos quando aconteceu. Na véspera das festas de Outubro, fui chamado ao gabinete do diretor da escola. Com êle estava outro homem. Breve e simplesmente o homem levou-me a G.P.U. onde fui acusado de ter grudado tocos de cigarros no retrato de Stálin e outros crimes contra-revolucionários. Claro que tudo era mentira deslavada. Então me disseram que eu era tão jovem que estavam dispostos a perdoar-me se quisesse trabalhar para êles. Que podia fazer? Fui obrigado a assinar um documento condenando-me a colaboração e ao silêncio. E assim tornei-me espião da N.K.V.D. Eu odiava Stálin de todo coração, decorava as paredes dos banheiros com frases anti-soviéticas e, contudo, era um espião da N.K.V.D. Não se exalte! Nunca denunciei alguém. Quando me amolavam demasiadamente, fazia acusações a outros espiões. Como estava em contacto com a G.P.U. conhecia todo o pessoal. Isso não lhes trazia complicações.
Agitando-se, inquieto, na cadeira, continuou, sem erguer os olhos:
– Naquele tempo eu andava maluco com você porque não compartilhava seus pensamentos comigo, com franqueza. Estava convencido que você pensava como eu. Quando éramos estudantes... lembra-se de Volodia?
O nome mencionado era o de um amigo comum, que terminara a Academia Naval pouco antes de a guerra explodir.
– Ele costumava conversar francamente comigo. Mas você estava sempre calado. E o tempo todo foi assim. Eu entrei para a Juventude Comunista. Você não entrou. Agora estou no Partido. Você não está. Sou major do Serviço de Segurança do Estado, e, ao mesmo tempo, sou o maior inimigo do sistema do que todos os meus prisioneiros reunidos. Mas você ainda é um cidadão soviético convicto? Por que está assim tão calado?
– Que deseja de mim? perguntei com uma indiferença estranha. Uma confissão de sentimentos contra-revolucionários ou reiterações de devoção a Stálin?
– Não precisa dizer-me isso, disse êle, meneando a cabeça, zangado. Eu apenas o considero meu melhor amigo, de modo que gostaria de saber o que você é, de fato.
– Então, que devo dizer-lhe?
– Por que não entra para o Partido?
Seu olhar vigilante não me abandonou enquanto não respondi.
– Não me é difícil responder a essa pergunta, falei. Muito mais difícil é você responder à pergunta "Por que entrou para o Partido?"
– Contornando, de novo! gritou êle, cego de fúria, deixando escapar uma terrível praga, para, logo em seguida, desculpar-se perdoe-me, deixei escapar.
– É porque sua vida desmente cabalmente as suas convicções, Andrei, expliquei. Mas eu apenas...
– Ah! Então é por isso que não entra para o Partido! exclamou com malevolência manifesta.
– Não é bem isso, protestei. Quando voei de Moscou para cá, tinha a intenção de inscrever-me no Partido, ao voltar.
– Tinha? perguntou êle, acentuando a palavra, com ironia.
– Não adianta discutir sôbre termos gramaticais, Camarada Oficial Inquisidor.
Tentei transformar a conversa em brincadeira, pois eu tinha a idéia singular que o major do Serviço da Segurança do Estado, sentado em frente, suspeitava-me de alimentar simpatias pelo comunismo e estava tentando convencer-me desse fato.
– Grisha, deixando as brincadeiras de lado, disse êle, fitando-me nos fundos dos olhos, diga-me, você é ou não é um canalha?
– E você? retorqui.
– Eu?... Sou uma vítima... respondeu, baixando os olhos. Nao posso escolher. Mas você está livre.
Fez-se um silêncio mortal. Então, de novo, veio aquela torrente histérica, sem variações:
– Diga-me, você é ou nao é um canalha?
– Faço o que posso para ser um bom comunista, respondi, pensativamente, tentando falar honestamente, mas as palavras soando falsa e hipòcritamente.
Durante certo tempo êle continuou sentado, sem falar, como que procurando um sentido oculto nas minhas palavras. Em seguida, calma e friamente, disse:
– Acho que está falando a verdade e creio que posso auxiliá-lo... Quer aprender a amar o regime soviético, não é?
Como não respondesse, prosseguiu:
– Conheci um homem. Hoje êle é um chefão em Moscou. Agiu desta forma: prendeu um homem e acusou-o de tentar ou planejar uma tentativa contra a vida de Stálin, um golpe contra o Cremlin, envenenamento dos reservatórios de água de Moscou e outros crimes semelhantes. Em seguida, entregou-lhe uma declaração já feita e disse: "Se ama Stálin, assine isso".
Andrei forçou um sorriso e acrescentou:
– E eu posso auxiliá-lo a amar Stálin. Concorda? Arranjarei uma pequena experiência para você. Tenho a certeza de que ela ajudará a fazê-lo ser um bom comunista.
– Que devo fazer? indaguei, profundamente aborrecido, pois a conversa começava a enervar-me principalmente porque se desenrolava na séde do M.V.D. Não tenho a menor intenção de assinar qualquer declaração. E, certamente, não voltarei aqui para vê-lo.
– Uma visita bastará, respondeu êle, sorrindo sardônicamente e olhando para o relógio. O espetáculo vai começar logo. Mas agora, nenhuma palavra.
Assim dizendo, recolocou os fios do telefone nas tomadas. Abriu uma gaveta e retirou vários documentos e, depois de examiná-los, ligou o aparelho. Pela conversa pude compreender que os oficiais subordinados a Andrei estavam no outro lado da Linha. Afinal, êle meneou a cabeça, com satisfação e pousou o receptor.
– Ato um, cena primeira. Pode imaginar o seu título, mais tarde, falou baixinho, enquanto ligava um ditafone em frente, na mesa.
Duas vozes soaram na calma da sala espaçosa: uma voz feminina, agradável, em alemão puro e uma voz masculina, falando alemão com sotaque acentuadamente russo.
– Se não se incomodar, Herr Tenente, gostaria de saber algo sobre meu marido, disse a mulher.
– A única coisa certa que posso dizer é que o seu destino depende inteiramente do seu trabalho para nós.
– Herr Tenente, faz exatamente um ano que você me prometeu que, se eu concordasse em fazer certas coisas, meu marido seria libertado, sem demora.
– O material que nos trouxe, ultimamente, não foi nada satisfatório. Ser-me-ia muito desagradável se fôsse obrigado a tomar certas medidas. Pode acontecer que encontre seu marido num lugar onde não desejaria.
A mulher deixou escapar um gemido abafado. Andrei desligou o ditafone, tirou uma fôlha de papel de uma pasta e entregou-ma. Era a decisão de um tribunal militar do M.V.D. condenando um homem a vinte e cinco anos de trabalhos forçados por "atividades terroristas contra as fôrças de ocupação do Exército Soviético".
– Foi comunista desde 1928, explicou Andrei. Passou oito anos num campo de concentração nazista. Um mês depois do comêco da ocupação, demitiu-se do Partido Comunista. Falava demais. Veja o resultado. Sua mulher trabalha como tradutora para os ingleses. Goza de confiança porque é casada com um homem perseguido pelo regime hitlerista. Desde que aprisionamos seu marido, a confiança aumentou mais ainda. Até pouco tempo era um agente de grande valor para nós.
Acenando com a cabeça, em minha direção, ligou, de novo, o ditafone. Esta vez dois homens conversavam, também em alemão.
– Você saiu-se bem das provas, recentemente. Agora queremos dar-lhe uma tarefa de maior responsabilidade, disse a voz, que falava com sotaque russo. Já foi membro ativo do Partido Nacional Socialista. Demos-lhe a oportunidade de entrar para o S.E.D. Agora esperamos que justifique a confiança que lhe depositamos.
– Herr Capitão, mesmo quando era membro do N.S.D. A.P. – e fui membro somente por causa das circunstâncias sempre tive simpatias com os ideais do comunismo e alimentava esperanças no Oriente, disse uma voz em alemão puro.
– Hoje o S.E.D. possui grande número de membros que antes simpatizavam com as idéias do nacional- socialismo, replicou a primeira voz. Estamos particularmente interessados nessas tendências nacionalistas entre a restauração do facismo e são os maiores inimigos da nova Alemanha democrática. Como antigo nacional-socialista merecerá a confiança dessa gente mais do que ninguém. No futuro, sua tarefa será não sòmbente registrar tais expressões de opinião, mas até sondar as tendências e atitudes dos companheiros. Deve prestar muita atenção nas seguintes pessoas.
A voz leu uma lista de nomes.
Andrei desligou o ditafone e olhou para um documento:
"Espião da Gestapo desde 1934. Tem trabalhado para nós desde maio de 1945. Até então, com base em suas informações, foram feitas 129 prisões. Foi aceito no S.E.D. por nossa indicação".
– Ah! Eis aqui um caso de amor a serviço do Estado, observou, ao abrir outra pasta. Baronesa von... Desde 1923 vem dirigindo uma agência de casamentos para a alta sociedade, ao mesmo tempo que possui lupanares. Agência da Gestapo desde 1936. Registrada em nosso serviço desde julho de 1945. Tem dois filhos prisioneiros de guerra na U.R.S.S. O chefe do campo de prisioneiros de guerra recebeu ordens para não soltá-lo sem instruções especiais do M.V.D. Está interessado em moças bonitas? Veja!
Entregou-me um portfolio e um índice através da mesa. Na capa da carteira havia uma série de números e pseudônimos que correspondiam a referências similares no índice de cartão, o qual continha pormenores pessoais. Na parte superior da carteira havia a fotografia de uma mulher grisalha, bem ereta, de gola bordada.
Abri a carteira que continha um número de folhas, presas às quais estavam retratos de belas jovens. Eram as protegidas da baronesa e, com aquela beleza fora do comum eram um crédito para as suas instituições filântrópicas. Além dos detalhes pessoais comuns, cada folha tinha um cabeçalho "Pormenores comprometedores". Abaixo do retrato de uma jovem loura, sorridente e feliz havia o assentamento: "Noivo serviu na Waffen-S.S. Em mãos soviéticas desde 1944, 1946, sifilis". A fotografia seguinte era a de uma moça de olhos de corca, com a notação: "Pai, membro do N.S.D.A.P. Internado na U.R.S.S. 1944, filho ilegítimo". Depois vinha uma morena e o assentamento: "Registrada na polícia como prostituta. 1946: filho legítimo com um negro. Tôdas as observações eram completadas com datas e material comprovante.
– A casa da baronesa está na zona americana, explicou Andrei e a sua esfera de atividades a ela correspondente.
Tirou das minhas mãos o retrato da jovem de olhos de corça, verificou o número do código, procurou uma pasta com o mesmo número, na gaveta e disse:
– Olhe!
Continha os relatórios da jovem, como agente. Retratos de soldados americanos. Números, datas; cartas de amor, para verificação das assinaturas, detalhes de lugares de serviço, maneira pessoal de vida; atitude política, endereços nos Estados Unidos.
– Para que servem os endereços nos Estados Unidos? perguntei.
– Se tivermos necessidade, sempre poderemos entrar em contacto com a pessoa interessada. E-nos mais fácil fazer isso lá, do que aqui, replicou Andrei.
Em seguida, êle indicou uma separação especial na pasta, contendo fotografia da jovem em companhia de um tenente americano. Em primeiro lugar vinham instantâneos amadores de uma Leica, refletindo todas as fases da intimidade progressiva. Depois, numa fôlha especial, numerados e datados, havia retratos de outra espécie. O acabamento técnico indicava o trabalho de uma máquina automática de micro-filme. Fotografias sem dúvida obscenas, perpetuando o amor não sòmente na sua nudez, mas nas formas pervertidas. Em todos os retratos o tenente americano era reconhecível claramente.
– Esse jovem também trabalha para nós, agora, explicou Andrei, sorrindo. Nos Estados Unidos, estava noivo de uma rica. Quando teve que enfrentar a escolha entre comprometer-se a seus olhos, com tudo que disso poderia advir, ou auxiliar-nos, silenciosamente, preferiu auxiliar-nos. Agora nos envia material de bastante valor.
Isso apenas uma amostra do trabalho da baronesa, continuou. Temos outras assim, tôdas explorando prostitutas em tôdas as quatro zonas da Alemanha. É um empreendimento bem vasto como vê.
– Mas compensa? interroguei.
– Mais do que pensa. A prostituição e a espionagem sempre estiveram de mãos dadas. Apenas demos a essas atividades uma nova base ideológica. Atacamos cada caso individualmente. E além disso, quase todas essas mulheres têm um parente em nossas mãos. Nosso sitema é o mais barato do mundo.
– Você deve ter visto homens condenados à morte, observei. Diga-me, já viu homens que morreram acreditando na verdade daquilo pelo que morriam?
– No início da guerra, frequentemente vi homens da S.S., ao serem fuzilados, falou pensativamente, esfregando as sombrancelhas. Costumavam gritar "Heil Hitlehr! Quando eu estava com os guerrilheiros, às vêzes tinha que presenciar alemães enforcando russos. E, quando êstes estavam com a corda no pescoço, amaldiçoavam os alemães e gritavam "Viva Stálin!" Conheci alguns dêles, pessoalmente e sabia que nunca haviam pronunciado palavras semelhantes, anteriormente. Entretanto, enquanto esperavam a morte, gritaram "Viva Stálin!". Não acho que fosse porque nelas acreditassem; acho que era assunto de coragem pessoal. Apenas queriam expressor o desprêzo pela morte e pelo inimigo.
– E agora você se ocupa em destruir os inimigos do Estado, continuei. Segundo a 'História do C.P.S.U.' os capitalistas e os proprietários de terras, há muito foram exterminados. Portanto, aquêles que você tem que combater, hoje, são filhos da nossa nova sociedade. Se são inimigos, como devem ser classificados? São inimigos ideológicos ou são apenas pessoas que, por fôrça das circunstâncias, fizeram algo criminoso segundo o código do M.V.D.?
– Por que pergunta isso? quis êle saber, com desconfiança.
– Essa pergunta me interessa há muito tempo, e quem melhor poderia respondê-la do que um major do M.V.D.?
– Maldito seja, Grisha! exclamou êle, suspirando. Pensei que o vexaria com isso, dessa forma aliviando meus sentimentos, mas eis que você aí está sentado, como um poste, e começa a esmiuçar minha alma. Você provocou um problema que me perturba há muito tempo.
Mais vagarosamente, agora, êle prosseguiu:
– Se é uma questão de inimigos ideológicos, então hoje a nação inteira é nosso inimigo ideológico. Os que caem nas mãos do M.V. são apenas vítima de uma loteria. Noventa e nove por cento das acusacões chegadas a nós são puras invenções. Agimos sob o princípio de que todo homem é nosso inimigo. Para apanhar um inimigo, basta dar-lhe a oportunidade de cometer um ato hostil. Se esperamos, pode ser muito tarde. pois o seu nome é milhão. Portanto pegamos o primeiro que se entrega e o acusamos do que queremos. Assim exterminamos uma certa porção do inimigo potencial e, ao mesmo tempo, paralizamos a vontade dos outros. Esse é o nosso método profilático. A própria história obrigou-nos a recorrer a êle. Mas êsse sistema também tem certos aspectos positivos...
– Você ainda não me respondeu à pergunta, disse eu. Já encontrou um verdadeiro inimigo? Um homem que o fitasse de frente e dissesse: "sim, sou contra vocês!"?
O major contemplou-me, baixando os sobrolhos.
– Por que você não vem trabalhar para o M.V.? Seria um ótimo oficial inquisidor, resmungou. Deliberadamente estou evitando a pergunta, pois, verá que tenho uma resposta viva a sua pergunta... Apenas não tencionava trazê-la ao seu conhecimento. Receio que possa ter péssimo efeito na nossa amizade.
Terminando, êle olhou-me, hesitando. Quando ergui a cabeça, vi que o relógio marcava mais de meia-noite. O edifício vivia a sua própria vida. Do corredor vinham sons compreensíveis sòmente às pessoas ligadas ao trabalho do M.V.D. De tempo em tempo havia uma batida cautelosa na porta e Andrei saía da sala, cerrando a porta por detrás. Inúmeras vêzes nossa conversa foi interrompida por chamados telefônicos.
– Ótimo! exclamou êle, vendo que não respondia. Mas peço-lhe que não tire qualquer conclusão a meu respeito, em virtude do que vir.
Apanhando o telefone, falou:
– Camarada Capitão, que há de novo com o 51-W? Mesma coisa? Ótimo! Traga-o para interrogatório. Irei assistor com outro oficial.
Descemos andar abaixo, onde não havia tapêtes no corredor e as paredes estavam pintadas de tinta óleo cinza. Entrámos numa sala. A mesa, em frente à porta, estava sentado um capitão de infantaria. Andrei respondeu seu cumprimento com um aceno de cabeça, dirigiu-se ao sofá, ao longo da parede e enterrou-se no meio de relatórios de informações. Eu sentei-me na outra extremidade do sofá.
Ouviu-se uma batida na porta e um sargento, de quépi verde, apresentou:
– Prisioneiro n.º51-W a sua disposição, Capitão.
Seguiu-lhe uma figura escura, com as mãos cruzadas às costas. Um segundo guarda fechou a porta.
– Bem, como vão as coisas, Kaliuzhny? perguntou-lhe o capitão, em tom amistoso.
– Faz tanto tempo que você me viu, seu cachorro.
As palavras explodiam da bôca do prisioneiro num grito de ódio ilimitado e de desprêzo, ódio mortal e dor reprimida. Avançou, vacilando, em direção à mesa e ali se postou, as pernas entreabertas. Vi que os pulsos estavam algemados, o que indicava, segundo as regras do M.V.D., que estava destinado à morte ou então era particularmente perigoso.
– Bem, como está a situação? Já se lembrou de tudo? indagou o capitão, sem levantar a cabeça dos papéis sôbre a mesa.
A resposta veio numa torrente de impropérios incompreensíveis dirigidos ao capitão, ao M.V.D., ao governo soviético e, afinal, ao homem cujo retrato estava na parede, atrás da mesa. O prisioneiro inclinou-se para a frente e era impossível dizer-se se estava no ponto de cair de cansaço ou de preparar-se para agredir o seu atormentador. Os guardas, um de cada lado, pegaram-no pelos ombros e forçaram-no a sentar-se num banco.
– Agora vamos conversar calmamente, disse o capitão. Quer fumar?
Os guardas, a um aceno seu, removeram as algemas. Fêz-se longo silêncio enquanto o homem tragava, gulosamente, o cigarro. Do peito vinha um som confuso e rouco e êle tossiu dolorosamente, cuspindo na mão.
– Veja, goze com isso, Capitão! falou, estendendo a mão, sôbre a mesa, mostrando coágulos negros de sangue à luz clara da lâmpada do quebraluz. Estragaram meus pulmões, êsses cachorros! continuou, enquanto enxugava o sangue na extremidade da mesa.
– Escute, Kaliuzhny, disse o capitão, em tom complacente. Sinto muito que você seja tão teimoso. Você era um cidadão exemplar da União Soviética, filho de um trabalhador e você msemo um trabalhador. Herói da guerra patriótica. E você me faz um êrro...
– Não foi êrro! gritou êle, as palavras saindo roucas do peito.
– Reconhecemos os seus serviços passados, continuou o capitão. Confesse a culpa e o seu país o perdoará. Apenas quero tornar as coisas mais fáceis para você. Diga-nos quem eram os outros. Dou-lhe minha palavra de comunista...
– Sua palavra de comunista! interrompeu o prisioneiro, em tom de ódio irreprimível. Víbora, quantos já enganou com a sua palavra de honra?
– Minha palavra é a palavra do Partido. Confesse e será livre.
A êsse ponto o capitão dificilmente se controlava.
– Liberdade? falou a máscara sangrenta que fôra um rosto. Conheço a sua liberdade! Encontrei a sua liberdade no céu...
– Assine o documento! ordenou o capitão, entregan do-lhe uma fôlha de papel.
– Assine você, que escreveu! foi a resposta.
– Assine, ordenou o oficial, em voz ameaçadora, e, esquecendo-se da presença dos dois homens que estavam sentados, silenciosos, no sofá, praguejou violentamente, empunhando a pistola pousada sôbre a mesa.
– Dê-me aqui. Assinarei, coachou o prisioneiro.
Pegando a folha de papel, cuspiu, deixando manchas de sangue espalhadas nêle.
– Eis aqui... com o verdadeiro sêlo comunista! falou, a voz erguendo-se num triunfo maligno.
Em seguida, erguendo-se da cadeira, inclinou-se vagarosamente sobre a mesa e enfrentou a pistola.
– Atire! Agora atire, seu carrasco!. Dê-me a liberdade!
Preso de impotente fúria, o capitão baixou a arma e fêz sinal para os guardas, um dos quais arremessou o prisioneiro ao soalho com um golpe do cabo da pistola. As algemas de aço tiniram.
– Você não escapará assim tão fàcilmente! falou o capitão, irado. Você implorará pela morte como que estivesse chamado sua mãe, antes de termos ajustado contas.
Os guardas ergueram o prisioneiro e puseram-no de pé.
– Metam-no na "stoika", ordenou o capitão (Tortura pela qual a pessoa fica sempre de pé).
Com inesperado e desesperado movimento, o homem livrou-se dos guardas e, com um veemente pontapé, virou a mesa. O capitão foi atirado longe e, depois, rugindo de raiva, atirou-se sobre o prisioneiro. Com um golpe bateu com a coronha da pistola, pesadamente, na cabeça do homem e uma mancha púrpura surgiu por entre a camada de sangue coagulado.
– Camarada Capitão! fêz-se ouvir dura a voz de Andrei Kovtun.
Enquanto o homem era arrastado fora da sala, o capitão falou, entrecortadamente:
– Camarada Major, peço permissão para encerrar o processo de inquirição e transferir o caso para o tribunal.
– Siga as instruções que lhe dei, replicou friamente Andrei, dirigindo-se à porta.
Caminhámos, silenciosamente, pelo corredor.
– Bem, você mesmo quis ver, falou Andrei, enquanto fechava a porta da sua sala.
Sua voz saía apressada, como se estivesse ansioso por jus tificar-se, por advinhar o que eu estava prestes a dizer.
– Por que foi êle preso? perguntei.
– Pela pergunta em que você estava interessado, respondeu Andrei, caindo pesadamente numa cadeira. Era um homem que declarou abertamente "Sim, sou contra vocês"! Durante a guerra esteve conosco, desde o primeiro até o último dia. Várias vêzes foi ferido e várias vêzes, condecorado. Devia ser desmobilizado depois da guerra, mas, voluntàriamente, apresentou-se para serviço mais longo. E depois, há um mês, foi preso por propaganda anti-soviética no exército. Sua prisão foi a última palha. Rasgou a camisa ao peito e gritou: "Sim, sou contra vocês!".
– Como explica essa transformação?
– Não faz muito tempo, teve licença para ir à Rússia. Foi para casa e viu o lugar abandonado. Sua velha mãe fôra enviada à Sibéria por colaboração com os alemães. A fim de não morrer de fome, durante a guerra, ela levava para êles. E em 1942 mandaram seu irmão mais moço trabalhar na Alemanha; depois da sua repatriação, foi condenado a dez anos nas minas. Além disso nosso prisioneiro viu o que se passava na pátria. Quando voltou ao serviço, começou a contar aos outros o que vira e ouvira. O resto você já sabe.
– Por que o capitão se referiu a "outros"?
– Oh! é a velha história, respondeu Andrei, encolhendo os ombros. Através de um homem temos que desmascarar um movimento contra-revolucionário. Aqui você tem a prova clara que todo homem é um inimigo. Extremamente, êle era um homem soviético exemplar. Dessa espécie que, durante a guerra, morria com o grito "Viva Stálin!" nos lábios. Mas quando a gente se aprofunda...
– Então você o considera um inimigo ideológico? perguntei.
– Êle ainda não tem nenhuma idéia, respondeu o Major Kovtun. Mas já chegou ao ponto de dizer "não" ao regime existente. É perigoso principalmente porque é um dentre milhões. Lance uma idéia incendiária nêsse barril de pólvora e tudo explodirá!
Fiquei calado. Como que advinhando meus pensamentos, Andrei murmurou, desesperançado:
– Mas que posso fazer? Por que quis ver isso? Eu já lhe disse... continuou êle, com súbita veemência.
Na penumbra da sala, seu rosto estava transformado, cheio de cansaço, os olhos sombrios e sem expressão. Os dedos movimentavam-se, inquieta e nervosamente por entre os papéis na mesa.
– Andrei, exclamei eu, virando o quebraluz de modo que a luz batesse em cheio no seu rosto.
Êle ajeitou-se, ergueu a cabeça e fitou-me fixamente. Examinei os seus olhos que estavam imóveis e dilatados; as pupilas não reagiram ao efeito da luz forte.
– Você sabe o que é a reação da luz, não é? perguntei-lhe da maneira mais gentil que pude.
– Sei, foi a resposta em voz baixa, enquanto a cabeça caía sôbre o peito.
– Quer dizer que você ao fim da corda, disse eu. Dentro de um ou dois anos nada mais restará de você do que um cadáver ambulante.
– Também sei disso, murmurou êle, mais calmamente ainda.
– Não pode descobrir outra saída a não ser a morfina? perguntei, colocando a mão no seu ombro.
– Não acho outra saída, Grisha... Não acho, murmuraram os seus lábios. Você bem sabe que sou perseguido pelas desilusões. Sempre e em tôda a parte sou seguido pelo odor de sangue. Não apenas sangue, mas sangue fresco. E por isso que às vezes o procuro, inesperadamente. É que tento escapar dêsse odor.
– Arrume-se, Andrei! disse eu, erguendo-me da cadeira e pegando o quépi do cabide, após consultar o relógio. Já são seis horas. Vamos dar um passeio.
Êle abriu um armário e êle retirou um terno, apressando-se a explicar, quando olhei-o, interrogativamente:
– Cada um de nós deve ter traje civil. Hoje em dia uso-o para escapar dêsse fedor amaldiçoado.
Antes de deixarmos a sala, tirou um livro da gaveta e entregou-mo, dizendo:
– Leve para ler. Raramente leio coisas para que possa comprá-lo.
Li o nome do livro: "Abandone a Esperança" e o nome do autor; Irene Kordes.
– Não tenho muito tempo para ler, respondi já que um rápido olhar pelas páginas mostrara-me que o livro era sôbre a União Soviética. E já li muito sôbre essa estúpida qualidade de literatura. Veja a data da publicação: 1942!
– É por isso que quero que você leia, disse êle. É o único livro alemão sobre a União Soviética que todo alemão deve ler. Pessoalmente acho-o interessante porque ela passou quatro anos na prisão, pois foi detida para inquérito, pelo M.V.D.
Posteriormente, li o livro. A escritôra, Irene Kordes morava com o marido, em Moscou, antes da guerra. No período da 'Yezhovshchina'*, ambos foram presos tão somente por estarem falando em alemão, na rua. Isso foi o suficiente para que fossem acusados de espionagem pelo M.V.D. Seguiram-se quatro anos de miséria e tormento, quatro anos de interrogatórios nas celas da famosa Lubianka e outras prisões soviéticas. Depois que a União Soviética assinou o pacto de amizade com a Alemanha hitlerista, em 1939, foi libertada e repatriada. O marido desapareceu dentro das paredes da N.K.V.D.
* Período de grandes expurgos de 1936-1938, dos quais a maioria dos emigrados políticos, que moravam União Soviética, foram vítimas. na Yezhov era o chefe da N.K.V.D., nessa ocasião; em 1939 êle próprio foi demitido e fuzilado.
A circunstância mais interessante foi a do livro ter sido publicado em 1942. Essa mulher alemã demonstrou verdadeira grandeza de espírito. Depois de viver quatro anos em condições que fariam qualquer pessoa amaldiçoar o regime e o país e até o povo, que, voluntària ou involuntàriamente era responsável e culpado pelo sistema soviético, Irene Kordes não teve uma única palavra de censura ou acusação contra o povo russo. Passou quatro anos no inferno, juntamente com centenas de milhares de russos, compartilhando o mesmo fado e, durante êsse tempo, veio a conhecer os russos como poucos estrangeiros conseguiram.
Os primeiros raios do sol levante tingiam as coroas das árvores, quando eu e Andrei saímos do edifício. Ele dirigia o carro, pela auto-estrada, silencioso, traços cerosos, abatidos à luz cinzenta. Dirigia de modo espasmódico e inquieto. Ao aproximarmos do Wannsee, retirou o pé do acelerador e olhou o relógio, dizendo:
– Você não precisa estar no departamento antes das dez. Vamos até o lago e descansemos uma hora, na areia.
– Ótimo!
Ondas gentis encrespavam a superfície do lago. Gaivotas sobrevoavam alto, ou baixavam rasteira, a ponto de fazer salpicar as asas na água. A brisa fresca e matinal afastou o cansaço pesado d noite de insônia. Despímo-nos e atirámo-nos àà água. Quanto mais nos afastávamos da praia, maior era a consciência da liberdade e da extensão, de desejo inexplicável de continuar nadando, indefinidamente. Sentia uma espécie de alívio interior, como se as ondas nos lavasse o sangue da noite anterior.
Depois do banho, deitámo-nos na areia. Andrei pôs-se a observar os poucos banhistas madrugadores, enquanto eu pus-me a contemplar o céu, as nuvens brancas e em flocos.
– Bem, ajudei-o na tentativa de se tornar um verdadeiro comunista? perguntou-me secamente, tentando sorrir.
– Você não me mostrou nada de novo, respondi. Muitas coisas nêste mundo parecem desagradáveis quando vistas de perto.
– Então desculpa tôdas essas coisas?
– É preciso tentar compreender não apenas uma parte, mas o todo. Não os meios, mas os fins.
– Então os fins justificam os meios? disse amargamente. Você será um bolchevique melhor do que eu.
– Sou filho da época stalinista, repliquei.
– Então, segundo sua opinião, tudo será para melhor.
– Gostaria de acreditar que...
– Então, o que impede?
– Receio faltar-me uma visão mais ampla, disse vagarosamente. Quando resolver o problema da utilidade ou inutilidade do objetivo final, será fácil... De qualquer modo será fácil... Essa é a resposta final, Andrei. Até então é melhor não tocarmos mais no assunto. Enquanto isso, acho que devia tirar férias e descansar bastante.
– Isso não adiantará, replicou êle, suspirando. Preciso de alguma coisa a mais.
– Você precisa descobrir uma fé que justifique sua ati vidade atual, ou...
Não soube como prosseguir.
– É um pouco tarde para descobrí-la, Grisha, falou Andrei, meneando a cabeça e fitando a areia. Minhas asas estão queimadas; agora preciso rastejar.
II
A pequenina Lisa era uma criança encantadora. Quando saía a passeio, com a velha governanta, pelo bulevar Gogolevsky, em Moscou, as pessoas sentadas nos bancos costumavam dizer, censurando, aos seus filhos.
– Vejam essa linda menininha. Como se comporta bem!
Ouvindo êsses comentários, Lisa ficava zangada e, com deliberação, se dirigia à velha governanta alemã, em voz mais alta ainda, de modo que todos murmurassem:
– Devem ser estrangeiros.
O pai de Lisa era uma dessas pessoas que possuem o dom de adaptar-se à vida. Inscrevera-se no Partido, na ocasião oportuna, sabia quando dizer a palavra exata, e ainda melhor quando calar a bôca. Dessa forma chegou até a diretoria de um grande monopólio comercial em Moscou. Era bastante esperto para explorar todas as vantagens materiais da sua posição, mas sem se obrigar aos riscos d responsbilidade da emprêsa. Prudentemente educara os filhos no espírito que lhe assegurara tão brilhante carreira, mas pretendia fazer as filhas casar-se com homens que lhes pudessem assegurar não apenas o bem-estar material, mas também brilhante vida social. Lisa era a filha mais jovem, e favorita do pai. Desde a infância fôra objeto de admiração dos seus parentes e conhecidos da família e inveja ingênua dos companheiros infantis. Os anos passaram, ela cresceu e diplomou-se na escola. Quando chegou a ocasião de decidir o que iria fazer, depois de consultar o pai, resolveu entrar no Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou, onde os estudos seriam relativamente fáceis e onde havia possibilidade de uma igualmente posição fácil, quando os terminasse. O Instituto era conhecido como ponto inicial de carreiras no Comissariado dos Negócios do Exterior, Comissariado do Comércio Exterior e outros corpos gvernamentais. As moças de Moscou contavam estranhas notícias a respeito do maciço edifício amarelo na rua Metrostroyevskaya. A Lisa suas portas pareciam abir-se para uma 'terra incognita'.
Um dia de outono, pela manhã, quando estava no segundo ano, ao chegar à porta da sala de conferências, foi chamada ao lado por uma veterana, que murmurou:
– Lisa, você foi chamada ao Departamento Especial. Deve apresentar-se imediatamente.
O Departamento Especial estava situado na porta pró xima ao gabinete do diretor. Nenhum estudante sabia, perfeitamente, qual era a função daquêle departamento; apenas podiam supor. Lisa bateu acanhadamente na porta e entrou. Por detrás de uma mesa estava sentada uma mulher, com a auto-confiança exagerada das mulheres que ocupam cargos de homens. A mulher tirou uma pasta do arquivo, olhou antes à filcha e, em seguida, a Lisa. Os minutos pareciam eternos. Lisa fitou, com preocupação, os telhados das casa vizinhas, através da janela, e pensou:
– É prisão ou expulsão do Instituto.
A mulher entregou-lhe um envelope lacrado e falou:
– Às nove horas da noite você deve ir ao endereço do envelope. Dê o seu nome na sala e informações. Estarão a sua espera.
Lisa olhou o enderêço e as letras começaram a dançar diante dos olhos: Praça Lubianskya, entrada 8, sala 207.
Esse dia ela esteve desusadamente distraída, ouvindo muito pouco do que diziam os professores, enquanto que na cabeça, as palavras martelavam incessantemente: Praça Lubianskaya, nove horas. As nove horas em ponto ela atravessou os portões dos escritórios centrais da N.K.V.D., na Praça Lubianskaya. O tenente de serviço telefonou a alguém e, depois, entregou-he uma autorização. Ela prosseguiu até a sala, do envelope, e bateu, quase que inaudìvelmente, com os nós dos dedos.
– Você é pontual. Bom sinal! disse o jovem, em trajes civis, que veio abrir-lhe a porta, enquanto sorria. Queira entrar!
Delicadamente indicou êle uma cadeira confortável perto da mesa e ela sentou-se, com os pés firmes no soalho.
O jovem sorriu, de novo, agradavelmente.
– Aceita um cigarro? perguntou, estendendo-lhe uma caixa de cigarros caríssimos.
Os dedos da jovem tremiam e foi com dificuldade que conseguiu abrir a caixa e tirar um cigarro. Não sabia o que pensar dessa recepção calorosa.
– Quer um pouco de chá? ou de café? continuou o delicado rapaz, que, sem esperar resposta, apertou um botão na mesa.
Poucos minutos depois chegava uma bandeja com café, bolos e um tablete de chocolate. A fim de ocultar a incerteza e acanhamento, ela pegou um bôlo, mas de qualquer forma, sentia dificuldade em enguli-lo.
– Sabe por que a convidei a vir ver-me? indagou êle, acendendo um cigarro e estudando Lisa, disfarçadamente.
– Não... Não sei, respondeu ela, com voz trêmula.
– Estamos interessados em você, já há algum tempo, começou êle, reclinando-se mais confortàvelmente na cadeira. Você é uma jovem educada e atraente. Posso mesmo dizer, muito atraente. E é de boa família soviética. Seu pai é um velho membro do Partido. Você mesmo tem sido membro ativo da Juventude Comunista do Instituto. Recebemos informações muito favoráveis a seu respeito.
A jovem deteve-se, estudando o efeito das palavras. A expressão de ansiedade e excitamento haviam, gradativamente, desaparecido do rosto de Lisa para ser substituida por tensa expectativa.
– Não punimos apenas os inimigos do regime soviético, continuou êle. Ainda estamos mais interessados em ver que o número de verdadeiros soviéticos aumente. Como possuímos boas referências a seu respeito, consideramos nosso dever interessarmo-nos pela sua futura carreira. (Nova pausa). Diga-me se estamos ou não certos ao considerá-la verdadeira cidadã soviética e ao desejar ajudar a sua carreira.
– Ainda sou muito jovem, disse ela um pouco embaraçada. Até então não tive a oportunidade...
– Oh! Bem compreensível, interrompeu êle. Sempre quis provar sua devoção ao Partido, mas até então não teve a oportunidade, não é isso?
– Eu... Sempre tentei... balbuciou ela.
– Sei disso. Perdi um pouco de tempo para ter informações a seu respeito antes de pedir-lhe que viesse ver-me. Agora pensamos que podemos experimentá-la na ação. Você está estudando no Instituto de Línguas Estrangeiras. Você sabe que depois de diplomar-se, muitos estudantes terão a oportunidade de trabalhar com estrangeiros ou mesmo no exterior. É uma grande honra. Tenho a certeza de que você pertence a êsses poucos eleitos, não é?
– Naturalmente, Camarada, respondeu ela, prontamente, mas acrescentando, com prudência: se fôr do interêsse do Partido e do governo.
Compreendia ela, agora, que aquela visita noturna a N.K.V.D. de modo algum se prendia aos designios desagradáveis que lhe sugerira. Resolveu, pois, explorar todo o seu poder para não deixar escapar a atraente possibilidade que parecia surgir no horizonte.
– Chama-me Constantino Alexievich, disse o homem, de modo amistoso, enquanto lhe oferecia um tablete de chocolate. Vejo que é inteligente. Trabalho com estrangeiros ou mesmo no exterior! Sabe o que isso quer dizer? Quer dizer meias Lyons, perfumes parisienses e os melhores restaurantes do mundo. Quer dizer privilégios especiais e alta sociedade. Vida fácil e bela, cheia de prazeres. Homens a seu pés...
Interrompeu-se, por um instante, lançando-lhe rápido olhar. Ela esta imóvel, como que em transe, os olhos brilhando de excitamento. O chocolate começava a derreter-se nos dedos.
– Mas tudo isso é possível sob uma única condição, falou êle, com um leve aborrecimento na voz. Isto é, deve merecer nossa absoluta confiança. Nem todos a merecem. É preciso conquistá-la.
As últimas palavras soaram fria e duramente. Por alguns segundos ela sentiu-se, novamente, impotente e receiosa, mas logo depois o desejo de uma existência brilhante e olhares admiradores desvaneceram todos os receios e dúvidas.
– Que deverei fazer? perguntou objetivamente.
– Oh! dar-lhes-emos várias comissões que lhe proporcionarão oportunidades de demonstrar sua devoção ao Partido, explicou êle, em tom descuidado.
Em seguida, como se a jovem já tivesse aceitado, acrescentou, em tom comercial:
– Receberá ensinamentos adicionais. Instruções lhe serão dadas conforme a comissão... bem como os meios necessários para realizar o serviço.
– Mas talvez eu não corresponda às exigências, objetou ela, francamente, pois não esperava que o assunto seguisse essa rápida progressão, instintivamente procurando assegurar um meio de retirada.
– Receberá nosso auxílio. Além disso, pelo conhecimento pessoal que já temos de você, conhecemos muito bem o que pode fazer. Agora, queira assinar êste documento, sim?
Assim dizendo, êle apresentou-lhe uma fórmula e mostrou-lhe onde assinar. Ràpidamente olhou ela o conteúdo: era um compromisso formal de colaborar e não falar; no caso de quebrar o compromisso estava ameaçada com "tôdas as medidas necessárias para refender a segurança do Estado da União Soviética". A radiante visão de um futuro brilhante pareceu escurecer um pouco. Ele entregou-lhe uma caneta e ela assinou.
Dessa forma realizou ela o desejo de uma vida brilhante, e, dessa forma, a N.K.V.D. acrescentou mais uma a lista de seus agentes. Não muito depois, sem interromper os estudos no Instituto, Lisa estava transformada numa sereia modêlo.
Na primavera de 1945, Lisa diplomou-se no Instituto, como uma das melhores alunas. Nêsse período, muitos formados foram enviados trabalhar na A.MúS. em Berlim, e Lisa seguiu com êles. Mais um vez recebeu missão especial, tendo sido designda tradutora junto a um membro da Comissão Especial de Demolição, sob as ordens do Conselho dos Comissários do Povo, a mesmo tempo que agia como fiscal da N.K.V.D. Quando êste general foi chamado a Moscou, ao terminar a missão, ela foi designada para o departamento do pessoal da A.M.S. Sua ficha pessoal continha a observação: "Emprêgo a ser dado de acordo com a Administração da Seguranca do Estado". Dias depois tornou-se intérprete pessoal do General Shabalin, o ditador econômico da zona soviética.
Foi então que a vi pela primeira vez. Logo depois o Major Kuznetsov fêz-me aquela advertência secreta a seu respeito. Saberia o general que espécie de pessoas tinha ao seu redor? Depois de certo tempo cheguei à conclusão de que tinha bons motivos para não confiar em ninguém.
O ordenança, Nikolai, havia servido nas fôrças da N.K.V.D., durante certo tempo e, como é costume na União Soviética, quem quer que já tenha qualquer espécie de relações com a N.K.V.D. – não somente os seus ex-funcionários, – mas também seus ex-prisioneiros – sempre continua em contacto com ela. Claro que o general sabia muito bem disso. Nikolai era ordenança do seu chefe. e, ao mesmo tempo, seu fiscal.
A empregada de Shabalin, Dusia, era uma jovem silenciosa e agradavel. Em fins de 1945, tôdas as mulheres russas que haviam sido trazidas à Alemanha, durante a guerra, e, posteriormente empregadas pelas autoridades soviéticas em posições subordinadas, foram enviadas de volta à Rússia. Para o espanto de todos, Dusia continuou ali, e pensava-se que isso era devido à proteção do general. Mas, quando o general retornou a Moscou, enquanto Dusia ainda continuava em Karlshorst imaginou-se que deveria ter um protetor mais categorizado. Apenas alguns suspeitavam da verdade.
Era uma jovem muito agradável, mas eu sempre pensava que sofria algum desgôsto pessoal e vaga depressão. Sabia do que havia contecido às amigas que haviam sido repatriadas e sabia que, afinal, teria que comprtilhar do mesmo destino. Contudo, era obrigada a trabalhar como instrumento nas mãos dos mesmos homens que, mais cedo ou mais tarde, seriam esus carcereiros.
Assim, o ordenança do general, a empregada, a intérprete particular, todos eram agentes da N.K.V.D. Não acho que o general fôsse tão tôlo a ponto de não compreender isso. Mesmo que nada tivesse observado, deveria ter sabido que assim deveria ser, por experiência. Em consequência, para simplificar o assunto, considerava todos os que trabalhavam em contacto íntimo com êle, informantes da N.K.V.D., inclusive a mim.
Após a advertência de Kuznetsov mais precavido me pus contra Lisa. Descobri mais coisas a seu respeito de ex-amigos seus, que haviam estudado no Instituto e que trabalhavam como tradutores no Supremo Comando. Era não somente desusadamente ambiciosa, mas também falante, de modo que, nessas circunstâncias, a confiança do M.V.D. não podia ser segrêdo por muito tempo. Consegui outros pormenores sôbre ela em várias fontes.
Uma noite, logo depois da chamada do General Shabalin a Moscou, enquanto ela esperava nova designação, veio ver-me a qualquer pretexto. Em Karlshorst todos nós tínhamos o hábito de visitarmo-nos, casualmente, sem esperar convites especiais. Depois de examinar meu apartamento, acomodou-se no divã, dizendo:
– Você não é do tipo que agrada as mulheres, Gregório Petrovich e, para tornar as coisas piores, ainda é miserável.
Enquanto colocava os pés no divã, acrescentou:
– Traga a garrafa de vinho, do armário e fiquemos à vontade.
– Já me sinto à vontade, respondi.
– Não seja tão detestável, murmurou ela, como uma gata. Logo me irei. Embora não possa suportá-lo, gostaria de celebrar a partida.
– O sentimento é recíproco, repliquei. Contudo, sinto a sua partida.
– Então sente mesmo a minha partida? perguntou, olhando-me através dos olhos castanhos escuro. Admite isso?
No que dizia respeito aos seus encantos femininos, o que eu achava mais atraente nela era a polidez adquirida pela residência numa cidade grande, cultura e conhecimento, em combinação com uma vulgaridade superlativa. Essa combinação atrai, involuntàriamente, pela novidade.
– Acho-a tão interessante como o belo couro de uma serpente, confessei.
– Estou gostando de você, hoje, Lisa disse quase que sinceramente. Frequentemente a vida está longe de ser fácil. Frequentemente a gente anda em busca de uma bela história de fadas. Como você disse, histórias de fadas são para os tolos. Mas... lembra-se da história de fcaro – É uma história para os sábios. Ele também desejou ter asas... Sabe como a história terminou?
Ela olhou-me fixamente.
– Aonde quer chegar, Gregório Petrovich? perguntou, incerta.
– Oh! Não é nada! É apenas uma associação mental, repliquei.
Em princípios de 1946, Lisa foi designada tradutôra da delegação soviética para os julgamentos de Nuremberg, em cuja posição ficou até transcorrer um ano. Claro que possuia outras tarefas, suas tarefas verdadeiras, para cumprir, mas ela interessa apenas porque é um brilhante exemplo de um novo tipo de personalidade soviética, alguém que é o produto da educação da época de Stálin, e que explora todos os meios a fim de conseguir uma vida de sucessos nas condições soviéticas. Foram todos educados num meio que exclui a liberdade mental, liberdade de pensamento e sua consciência está automàticamente voltada para o aspecto material da existência. O impulso dominante é o desejo de subir o mais alto possível na escala social. Os meios? Pessoas do tipo de Lisa são treinadas para não pensar nos aspectos morais das suas atividades. A moralidade soviética justifica tudo que sirva ao interêsse do Partido.