Gregory Klimov «A máquina do terror»

Capítulo 11. O REI ÁTOMO

I

– Siemens em Arnstad está sob seu contrôle, não é?

– Sim.

– Leia isso.

O chefe da Administração da Indústria entregou-me um telegrama codificado, riscado, diagonalmente em vermelho, para indicar que era secreto, que dizia: "Instrumentos de medição eletrônica descobertos. Finalidades do uso desconhecida. Suspeita de pesquisa atômica. Aguardo instruções. Vassiliev".

O Coronel Vassiliev era o plenipotenciário da A.M.S. na Siemens de Arnstadt, assim como diretor do instituto de pesquisas científicas de televisão, funcionando na fábrica. Era homem experimentado e de confiança. Se mencionara "pesquisas atômicas", tinha razão para isso. Fiquei com o telegrama na mão, a espera que Alexandrov me dissesse mais alguma coisa.

– Precisamos mandar alguém lá. Como a fábrica está sob seu contrôle, seria melhor que você fôsse, disse.

– Seria bom levar comigo alguém do Departamento Científico, Major Popov, e eu deixávamos Karlshorst, rumo a Thuringia. Chegámos a Arnstadt pouco antes da meia noite e fomos diretamente a casa do Coronel Vassiliev, bem em frente da fábrica. Ele fôra avisado, por telefone, da nossa vinda, de modo que êle e seu assistente, estavam a nossa espera.

– Que descobriu, Camarada Coronel? perguntou o Major Popov.

– Vamos imediatamente à fábrica e vocês mesmos verão, disse Vassiliev.

Acompanhados pelo comandante da guarda da fábrica, seguimos pela escuridão, até o depósito de matérias primas e produção acabada. Um guarda deteve-nos fora e, dentro, diante de uma porta lacraua, encontramos um segundo guarda armado. Quando o lacre foi removido, entramos no depósito, cheio de equipamento elétrico semi-reunido: produção de guerra não acabada – cena comum em tôdas as fábricas alemãs imediatamente após a guerra. Vassiliev parou ao lado de vários caixões de madeira, grandes e compridos, que continham enormes utensílios de vidro, com esferas no meio, acondicionados com grande cuidado e seguras por grampos especiais. O equipamento era semelhante às válvulas cátodo comuns, usadas em oscilógrafos, mas era muito maior. Era fácil deduzir que estava ligado à medição elétrica e o tipo de isolamento demonstrava ser destinado à elevada corrente de enorme voltagem, como a empregada nos ciclotrons das experiências da divisão do átomo. Uma das peças tinham dispositivos para fotogramas do processo. A juigar pela construção não era destinado à medição de carga contínua, mas sim uma única, enorme aplicação de corrente.

Os caixões estavam marcados: "Muito cuidado – vidro". Em vão procuramos qualquer indicação de onde tinham vindo ou para quem eram destinados. Havia apenas fileiras de números e letras indecifráveis.

– Como vieram para aqui? perguntei a Vassiliev. Não podem ter sido produzidos nesta fábrica.

Êle apenas encolheu os ombros.

Resolvemos mandar um telegrama a Karlshorst, pedindo o auxílio dos técnicos do Grupo Especial. O Grupo Especial é a mais alta organização soviética de pesquisas científicas, na Alemanha, e está adida ao Departamento Científico e Técnico do M.V.D., em Potsdam, tendo plenos poderes para entrar em contacto direto, imediatamente, se necessário, com tôdas as organizações de pesquisas da União Soviética.

Não nos surpreendeu encontrar os aparelhos misteriosos do depósito da Siemens em Arnstadt. Nos últimos anos da guerra, tôdas as grandes indústrias alemãs transferiram as maquinárias e depósitos nas áreas menos sujeitas aos ataques aéreos. Além disso, pouco antes da rendição, as instalações e estoques de matérias primas mais valiosas foram removidas e secretamente guardadas em várias partes do país. Com frequência encontrávamos material muito interessante nos lugares onde menos se poderia esperar.

Era de grande importância descobrir quem havia ordenado a construção do aparelho e a quem era destinado. A fim de conseguir isso, primeiro precisavamos assegurar-nos de onde fôra produzido. Apenas poucas fábricas alemãs poderiam tê-lo feito, sendo a mais importante delas, em Siemenstadt, no setor britânico de Berlim, o que estava fora de alcance da nossa autoridade, pelos menos oficialmente. De outro lado, a fábrica Telefunken estava em Erfurt e se especializava na produção de enormes válvulas transmissoras para estações de rádio. A Telefunken-Erfurt podia perfeitamente aceitar aquêle contrato. Além disso, os diretores técnicos, em Erfurt, estavam em constante contacto comercial com Siemenstad, sabendo muito bem do que se passava nas outras fábricas Telefunken. Lá descobriríamos os fios que estavam ligados ao misterioso aparelho em Arnstadt.

Resolvemos que o Coronel Vassiley esperasse a chegada dos especialistas do Grupo Especial, enquanto eu e o Major Popov visitaríamos as fábricas da Telefunken, em Erfurt.

Avisámos os oficiais de contrôle, da A.M.S., o Tenente-Coronel Yevtikov e o Tenente Novikov, que nos dirigíamos a Erfurt, de modo que, ao chegarmos, já nos esperavam no gabinete do antigo diretor. Quando explicámos o motivo da nossa visita, respiraram aliviados; sem dúvida estavam esperando um dos inquéritos regulares em virtude do fracasso no cumprimento dos planos de produção e das entregas de indenização. Interrogámos todos os engenheiros, que trabalhavam no de partamento de produção de válvulas de transmissão, descobrindo algumas pistas essenciais. Pouco antes da rendição, haviam executado algumas ordens especiais para a fabricação de gigantescos eletrodos e outras peças para um novo tipo de aparelho, completamente desconhecido. Os planos haviam sido enviados de Berlim e as peças, depois de prontas, deviam ser enviadas para lá, presumivelmente para a montagem. O trabalho era estritamente secreto. Quando insistimos em saber a origem da comissão e dos planos de construção, o chefe técnico do departamento de válvulas transmissoras, respondeu, com incerteza:

– Acho que... Berlim-Dahlen....

Já era o suficiente. Durante a guerra, Berlim-Dahlen fôra o Q.G. dos laboratórios secretos de física atômica, dedicados a experiências da divisão do átomo.

Nêste ponto, o Coronel Vassiliev telefonou de Arnstadt para informar que o Grupo Especial havia chegado. Eu sabia que o Tenente-coronel Ievtikov era um indivíduo indolente, de modo que pedi ao Tenente Novikov que reunisse alguns homens de confiança e iniciasse uma busca completa de tudo que tivesse ligação com a ordem misteriosa, colocasse tudo debaixo de chave e guardado severamente. O Tenente Novikov era uma pessoa enérgica e muito capaz, engenheiro de profissão, que, mais tarde, quando a Telefunken-Erfurt foi transformada numa companhia A.G. Soviética, foi nomeado engenheiro chefe da fábrica. Enquanto êle atacava seu trabalho, eu e o Major Popov voltámos a Arnstadt.

No gabinete de Vassiliev encontrámos um grupo de pessoas que, sem dúvida, eram cientistas e completamente à vontade nos laboratórios e instituições de pesquisas. Juntamente com êles havia vários homens taciturnos, em roupas civis, que não entravam nas discussões dos assuntos técnicos e se mantinham quase sempre reservados. Entretanto, podia-se perceber que eram os verdadeiros patrões: era as sombras do M.V.D.

Os técnicos já haviam examinado o aparelho misterioso e, sem perguntar-lhes nada, sentimos que as nossas suposições estavam confirmadas. O Major Popov informou da nossa visita a Telefunken-Erfurt. Agora tínhamos a sensação desagradável de que nossa informação estava adquirindo o aspecto de um interrogatório judicial; era como que as sombras do M.V.D. suspeitassem de estarmos ocultando alguma coisa. Mesmo ao tratar com oficiais soviéticos, aquela instituição aplica os seus métodos bem distintos.

Durante o dia todo continuou-se a exame dos empregados técnicos da Arnstadt. Cada pessoa tinha que comprometer-se, escrevendo no mais severo segredo. Já pela noitinha o aparelho foi levado para Berlim, debaixo de escolta reforçada e com as maiores precauções.

Acompanhado pelo Major Popov e por mim, o Grupo Especial dirigiu-se a Erfurt. Yevtikov já recebera ordens para não deixar ninguém sair da fábrica, pudesse ser chamado a interrogatório.

O inquérito prosseguiu a noite tôda: os homens taciturnos, de rosto pálido, pareciam não diferenciar a noite do dia. O interrogatório foi feito no gabinete de Ievtikov, mas êle, o Major Popov e eu, passámos a noite na sala adjacente, de onde eu ou qualquer um de nós era chamado para esclarecer certo fato ou dar informações, já que estávamos bem a par das atividades da fábrica Telefunken. O Grupo Especial obteve não somente grande quantidade de material fresco, mas também uma lista de cientistas e engenheiros alemães que haviam estado, diretamente, ligados à execução da ordem secreta. Mas uma vez os fios ligavam-se ao Instituto Kaiser-Wilhelm e os laboratórios secretos de pesquisas físicas em Berlim-Dahlen.

Um dos físicos atômicos mais importantes era o Dr. Otto Hahn, discípulo de Max Planck. Um certo número de cientistas alemães, que haviam trabalhado no seu laboratório, caíu nas mãos das autoridades soviéticas, depois da rendição, e foi levado para a União Soviética, onde tiveram tôdas as possibilidades de continuar suas pesquisas. Cientistas famosos como o Professor Herz e o Dr. Arden estão, agora, trabalhando nos institutos de Pesquisas Soviéticas, relacionados com pesquisas atômicas, sob a direção geral do Professor Kapitza, que também é o chefe da Administração Suprema das organizações de pesquisas científicas adidas ao Ministério de Armas Especiais.

Nos últimos mêses de guerra, os alemães tinham ciclotrons para a explosão atômica, a sua disposição, mas a situação catastrófica das frentes de batalha e a destruição da fábrica alemã de água pesada, na Noruega, pela R.A.F., obrigaram-nos a suspender as tentativas para resolver o problema dos átomos. Antes da rendição final, espalharam todo o equipamento atômico em lugares onde seria difícil descobrir. As autoridades soviéticas organizaram unidades especiais com o fim exclusivo de procurar as armas secretas em que Hitler depositara tantas esperanças.

Nos mêses que seguiram nossos achados em Arnstadt, todos os que tinham algo que ver com êles, foram, imediatamente, chamados a Potsdam-Babelsberg, ao Q.G. do Grupo Especial, que, de um modo ou outro, havia conseguido pistas vallosas, de cientistas alemães, trabalhando na União Soviética, e de muitos outros, que viviam nas zonas ocidentais da Alemanha. Às vezes, não se pode deixar de sentir admiração pela precisão e rapidez com que o M.V.D. age. É com muita razão que êste campo de alta responsabilidade lhe foi confiada.

Enquanto o Grupo Especial estava resolvendo o problema do equipamento de Arnstadt, a A.M.S. fêz outra importante descoberta. De Suslov, o representante do Departamento Técnico e Científico da Turíngia, o chefe do departamento, o Coronel Kondakov, recebeu um telegrama anunciando que o "Grupo Levkovich encontrou um depósito secreto de equipamentos cuja finalidade é desconhecida". O Coronel Levkovich era chefe do Grupo de Demolição que operava na Turíngia. Essas descobertas não eram, de modo algum, raras; os grupos de demolição, mais de uma vez, haviam descoberto paredes falsas, com instalações ou maquinárias nelas escondidas. Em virtude disso, baixou-se uma circular recomendando que tôdas as paredes das fábricas desmontadas deviam ser examinadas. Os demolidores também procuravam, sistemàticamente, a maquinária removida das fábricas e indústrias imediatamente antes da rendição.

É preciso salientar a grande diferença entre a imprensa soviética e a estrangeira, no tocante às questões atômicas. Nós, oficiais da Rússia Soviética, que estávamos nos limites entre dois mundos, víamos a diferença mais claramente do que qualquer outro. Enquanto, geralmente, a imprensa soviética se mantinha num silêncio evasivo, a imprensa estrangeira vociferava e fazia lembrar uma mulher presa de histerismo à vista de um camondongo. O barulho feito sobre a bomba atômica é indicativo de mêdo e demonstra falta de senso da realidade. Em última análise, sòmente a bomba atômica não pode decidir o destino do mundo. O homem já produziu a bomba atômica e sempre será mais poderoso do que o átomo.

– É divertido notar como se faz tanto barulho por causa da bomba atômica, comentou um dia, o Coronel Kondakov.

– Sim, e as informações sempre vêm de "fontes fidedignas", acrescentou o seu assistente, o Major Popov. As vêzes, de círculos chegados a Karlshorst; outras vêzes, "diretamente de Moscou".

– Para falar a verdade, a imprensa estrangeira sabe mais do que nós mesmos, suspirou o coronel. Essa procura contínua de sensacional...

Sua observação era típica da atitude dos funcionários soviéticos de responsabilidade. Cada um de nós sabia exatamente o que tinha que saber para executar o seu serviço. A maioria de nós preocupava-se em saber o menos possível. Enquanto o mundo tremia tomado da febre atômica, nossa vida prosseguia no seu curso normal. Lembro-me de um incidente pouco importante, mas, contudo, significativo, que ocorreu na minha vida diária, naquela época.

Pouco depois de voltar da Turíngia, a Administração de Reparações enviou-me uma pasta contendo planos de construção, acompanhados de uma nota: "Mandamos os planos protótipos de uma casa padrão chalé para as colônias de operários, na União Soviética, de acordo com a Ordem de reparações n.º.... Pedimos verificar as instalações elétricas do projeto proposto e confirmá-las. Também pedimos que prepare um plano total de instalações elétricas para um total de 120.000 casas, e informar-nos que fábricas estão em condições de executar esta ordem. Petrov. Chefe do Departamento Eletro-Industrial da Administração de Reparações".

Os planos das instalações elétricas estavam cheios de pontos de interrogação em vermelho. Por exemplo, no dormitório havia pontos de interrogação na tomada da parede, no abaiur e no fio que o permitiria funcionar, da cama. As 120.000 moradas haviam sido remodeladas segundo as exigências soviéticas. Os chalés haviam sido transformados em "cabanas" comuns. Depois dessa "modernização", o projeto foi objeto de escárneo dos engenheiros do nosso departamento e ninguém mais expressava desejo de morar naquelas casas.

Entre um quarto e um têrço do orçamento do atual plano quinquenal para o "reestabelecimento da economia soviética", isto é, cêrca de 60 bilhões de rublos, vai direta ou indiretamente para a pesquisa atômica. Mas se um homem, o mestre da criação e o criador da bomba atômica, necessita realizar suas funções naturais, que corra ao mato mais próximo. O interêsse do Estado assim o exige!

II

Em pleno verão de 1946, numerosas comissões de vários ministérios soviéticos chegaram em Karlshorst para saber das possibilidades de colocação de ordens de reparação e exploração dos produtos acabados nos depósitos das indústrias alemãs. Dois representantes do Ministério Naval Soviético convidaram-me para viajar com êles, pela zona soviética, afim de estudar a situação no local. O Coronel Bykov, o Capitão Fedorov e eu partimos de Karlshorst rumo a Weimar. A caminho, vim conhecer muito bem meus companheiros, que eram extremamente agradáveis, ignorando os regulamentos militares até o ponto de usar o nome de batismo em vez do pôsto ocupado e o sobrenome. Não eram oficiais profissionais, mas sim engenheiros. Além disso, eram da marinha; quem quer que tenha contacto com os marujos conhece a diferença entre a marinha e o exército.

Chegando em Erfurt, dirigimo-nos a Haus Kossenhaschen, que se transformara no Q.B. nas turmas de demolição que operavam na Turíngia. Sentámo-nos na sala estilo antigo, de paredes com painés, conversando, enquanto aguardávamos a hora do almoço. Eu já estivera lá, antes, de modo que a cena já me era familiar, mas meus companheiros haviam saído de Moscou, apenas há alguns dias, e estavam profundamente interessados em tudo que se passava.

– Diga-me, Gregório Petrovich, que se passa por aqui? Estão se preparando para uma expedição ao Polo Norte? perguntou-me, em voz baixa, o Coronel Bykov.

A estranha pergunta fôra feita em virtude de todos os oficiais demolidores estarem andando de um lado para outro, metidos em enormes botas de couro, de rangíferar, embora fôsse um dia quente de verão. E os homens, de botas de couro, carregavam armas de caças, por onde andavam, mesmo quando entravam no refeitório.

– Não, respondi. É que descobriram um depósito de equipamento ártico de aviadores alemães, e, agora, se divertem em experimentá-lo. E estão com armas nas mãos porque vão caçar, imediatamente depois do almoço.

– Que gente divertida! exclamou o coronel, meneando a cabeça. Não tem mais que fazer?

– A situação é um pouco complicada, expliquei. O principal trabalho de desmantelamento terminou há algum tempo e a maioria dêles não tem o que fazer. Mas não passam mal aqui, de modo que primam em tornar patente o que fazem. Como estão sob o contrôle direto de Moscou, a A.M.S. nada pode fazer.

– Em Berlim, soubemos que muitos guardaram o suficiente para aposentadoria, observou Fedorov.

– Recentemente o Departamento de Instrumentos de Precisão da A.M.S. abriu um caso, disse eu, referente ao diretor das Fábricas do Estado de Relógios, n.º2. Havia sido mandado a Alemanha para desmontar a indústria de relógios, mas, logo após a sua volta a Moscou, a A.M.S. descobriu que havia adquirido muitos milhares de relógios de ouro e várias dezenas de quilos de ouro, ilegalmente.

– Certamente vai pagar prisão perpétua, observou Fe dorov, com convicção na voz. Pelo menos terá alojamento grátis o resto da vida.

– Duvido que pegue isso, comentei.

– Por que? indagou atônito, o capitão.

– Bem, as circunstâncias foram relatadas às autoridades superiores e elas abafaram o caso.

– Mas por que? insistiu Fedorov, ainda sem compreender.

– Não me pergunte! repliquei. Aparentemente preferem não desacreditar essas pessoas. "Não lave roupa suja em público" diz o velho ditado. Não foi o primeiro caso dessa espécie.

– E êle é um diretor soviético! exclamou, indignado, o coronel.

Não pude deixar de sorrir amargamente. Indicando com a cabeça os oficiais demolidores, falei:

– Na União Soviética tôdas essas pessoas são ou altos funcionários ministeriais ou diretores de fábricas. E poucos são muito diferentes do diretor de quem acabei de falar. Pode acreditar no que digo. Na A.M.S. cada vez mais se avolumam os casos dessa espécie.

Fêz-se um silêncio embaraçador, quebrado apenas quando o chefe dos garções nos chamou à mesa.

As pessoas que vivem no Ocidente, nunca poderão imaginar o que mais surpreende os homens soviéticos, especialmente os engenheiros, na primeira visita a uma fábrica alemã. Pode-se pensar que os oficiais soviéticos ficariam boquiabertos, diante dos enormes edifícios, diante das inumeráveis máquinas modernas e outras realizações técnicas. Mas essas coisas há muito que perderam qualquer poder de surpreender-nos. Antes, os ocidentais é que ficariam atônitos com as dimensões das fábricas soviéticas e do escôpo da sua realização técnica. Não é a técnica ocidental, nem a maquinária ocidental que são novas para nós, mas o lugar que o homem ocupa na sociedade e no Estado. Temos que reconhecer o fato de que os homens, no sistema ocidental, de livre desenvolvimento das relações sociais, goza de maiores direitos e liberdades, que, para dizer mais simplesmente, gozam muito mais a vida do que as pessoas do mesmo substrato social da U.R.S.S.

Quando nos dirigíamos ao próximo ponto de visita, aquela noite, não muito longe de Jena, algo aconteceu ao dínamo do carro, que deixou de carregar. A fim de não arruinar a bateria, completamente, apagámos os faróis e dirigimos o carro, vagarosamente, dentro da noite. Num dos lados da estrada estreita, erguia-se um rochedo escarpado, coberto de árvores e, do outro, a rocha abria-se num despenhadeiro negro. No lugar mais êrmo possível, bem no meio da garganta, o carro morreu completamente. Descemos para esticar as pernas, enquanto o motorista examinava o motor, à luz da lanterna.

Uma forma escura, empurrando uma bicicleta, surgiu na negrura.

– Pode dizer-nos onde estamos? perguntei ao alemão.

– Estão no castelo de Goethe, respondeu êle. Está bem acima das suas cabecas.

– Mas há alguma vila por perto?

– Sim. Pouco mais adiante há uma ponte e, passando-a há uma vila.

– Nada posso fazer, Camarada Coronel, informou o motorista, momentos depois. Preciso ir a uma garage.

– Agora, que fazemos? Passamos a noite no carro? perguntaram, zangados meus companheiros.

– Claro que não respondi. Não muito longe há uma vila. Passaremos a noite lá.

– Deus nos perdoe, Gregorio Petrovich! exclamaram os dois marujos, em horror. Não encontraremos um posto de comando ou um hotel para oficiais soviéticos lá.

– É muito bom, também! acrescentei.

– Deixe disso! objetaram. Ainda não estamos cansados da vida.

– Por que dizem isso? indaguei, agora, por minha vez, surpreso.

– Já se esqueceu de onde estamos? Não passa um dia sem que haja um assassínio. Meteram-nos na cabeça que devemos ter o máximo cuidado. Fomos instruidos para não deixar o motorista sòzinho a noite no carro, pois é certo que seria assassinado. Você sabe muito bem como são as coisas.

– E onde lhes disseram tudo isso?

– Em Moscou.

Não pude deixar de rir.

– Bem, se lhes disseram isso em Moscou, deve ser assim. Mas terá outra opinião quando virem as coisas de perto. Estaremos melhor na vila do que em qualquer hotel do P.C. Posso garantir isso. Afinal de contas, todos nós temos pistolas para qualquer emergência.

Depois de longa discussão concordaram em correr o risco de passar a noite numa vila selvagem e estranha. Disseram ao motorista que deveria permanecer no carro e pusémo-nos a caminho.

– Mas onde iremos dormir? perguntou o capitão, ainda duvidoso. Não se pode acordar pessoas no meio da noite e obrigá-las a abrigar-nos.

– Não se impressione, Victor Stepanovich. A primeira casa que encontrarmos será um hotel. Quer apostar?

– Mas como pode ter certeza de que será um hotel? quis saber o Capitão Fedorov. Bem, se tiver razão, abriremos um garrafa de conhaque.

– É muito simples. Estamos caminhando por uma estrada de interior e, na Alemanha, os hotéis sempre estão instalados na rua principal, no comêço e no fim da vila. Eis um meio fácil de ganhar o conhaque!

– De qualquer maneira, não estou gostando, suspirou o capitão.

Cêrca de dez minutos depois, uma ponte surgiu-nos aos olhos. Imediatamente, mais além, vimos luzes brilharem através das frestas das persianas.

– Agora veremos quem tem razão, Victor Stepanovich, disse eu, enquanto iluminava, com a lanterna, uma tabuleta, com uma caneca espumante pintada, acima da porta principal. Eis o hotel.

Minutos depois estávamos sentados a uma mesa, na sala. Meus companheiros lancavam olhares suspeitosos em tôrno do aposento, como se esperassem ser atacados a qualquer momento. A sala estava decorada à maneira da Turíngia, com pesada mobília de carvalho entalhado e troféus de animais em tôdas as paredes. No fundo, brilhavam as torneiras do bar, e duas moças, de avental branco, estavam sorrindo por detrás do balcão.

Depois de termos arranjado acomodação para a noite, pedimos café. Das maletas tirámos pão, salsicha e uma garrafa de conhaque que o capitão trouxera consigo como "remédio para resfriado".

– Ah! Gregório Petrovich, agora podemos beber, mas, depois, seremos esquartejados como perdizes, disse o capitão, suspirando, enquanto tirava a rôlha. Você terá que responder por isso diante de São Pedro.

– Então vou contar-lhe um segredinho meu, respondi. Assim você dormirá mais sossegadamente. Tenho que viajar muito, a serviço oficial, e inúmeras vêzes já atravessei a Turíngia e a Saxônia com caminhão carregado de mercadorias. Nêsses casos, há certo perigo e é preciso estar alerta. E, quando a noite cai e tenho que procurar onde dormir, sabe o que faço?

– Procura uma cidade onde haja um hotel do comando, claro, replicou o capitão, bastante convencido.

– Fiz isso, uma vez; mas sòmente uma vez. Depois dessa primeira experiência, sempre procurei evitar cidades onde haja comando e guarnição soviéticas. Deliberadamente dirijo-me à primeira vila e passo a noite num hotel.

– Mas por que? quis saber o coronel Bykov.

– Por que é mais seguro. Durante doze mêses na Alemanha, tive que sacar da pistola e atirar três vêzes... e, em todos os casos, tive que atirar em homens, de uniforme soviético, prontos para roubar, expliquei, depois de uma pausa.

– Interessante, disse o capitão, por entre os dentes.

– Passei uma noite num hotel de oficiais, em Glachau, prossegui. Para segurança, deixei o caminhão bem debaixo da janela do meu quarto. Nem bem eu me havia deitado, quando percebi que o desmontavam.

– Divertido! comentou o coronel.

– Não foi muito divertido ter que entrar em perseguição, pelas ruas, de cuecas e com pistola na mão, repliquei. Cerquei dois tenentes e um sargento soviéticos, chamei a patrulha do comando e mandei-os prender. No dia seguinte, o comandante falou-me: "Acredito em você, Camarada Major, mas, de qualquer modo, tenho que libertar os prisioneiros. Não tenho tempo para assuntos insignificantes. Ouça meu conse lho, para a próxima ocasião. Espere que roubem o carro e então terá as provas necessárias. Então mate-os e chame-nos depois disso. Elaboraremos um relatório do caso e ficaremos muito gratos. Foi uma pena que fosse tão afobado, esta vez.

Nêsse instante, uma jovem bem vestida e um homem, entraram na sala. Sentaram-se a uma mesa a nossa frente e acenderam cigarros.

– Tudo está bem, insistiu o capitão, mas há uma coisa aqui que não me agrada: as pessoas estão muito bem vestidas. Vejam aquêle camarada em frente de nós, com aquela mulher. Não me surpreenderia se fôssem antigos nazistas, que se esconderam nêste lugar solitário. E agora nós chegámos e os movimentámos. E já notaram aquêle grupo de jovens? Entraram e ficam o tempo todo murmurando entre si, para depois desaparecerem, de novo. Parece-me bastante suspeito!

– Bem, acho que a melhor coisa é ir deitar-nos, propus.

– Deitar? Talvez. Mas dormir! resmungou o coronel. Acho que o nosso primeiro dever é verificar para que lado dão as nossas janelas.

Logo que chegámos nos quartos, em cima, o coronel e o capitão examinaram-nos detalhadamente. Abriram e fecharam as janelas e experimentaram as persianas.

– Disseram-nos que atiram granadas de mão pelas janelas, explicou o capitão.

Em seguida, dirigiu-se ao corredor a fim de descobrir se nos quartos adjascentes havia membros da organização Werewolf (organização planejada pelos nazistas para prosseguir nas guerrilhas e atos de terrorismo depois da guerra). Por último, experimentou a fechadura da porta. Meus companheiros ocuparam um quarto, enquanto eu fiquei num outro, pegado. Agora, pela primeira vez depois que chegara à Alemanha sentia um pouco de dúvida. Tranquei a porta e, depois de pensar um pouco, tirei a pistola e coloquei-a debaixo do travesseiro. Despi-me, apaguei a luz e mergulhei no enorme colchão de pena.

No dia seguinte, bati na porta dos meus companheiros a fim de despertá-los. Ouvi vozes sonolentas e, em seguida, a fechadura foi aberta. Os dois estavam fatigados e esgotados. Soube que haviam ficado sentados, até depois da meia-noite, discutindo se deviam deitar-se vestidos ou não. Agora, à luz da manhã, todos os mêdos e ansiedades haviam desaparecido e cada um começou a provocar o outro.

– Conte-nos como foi até à privada, no meio da noite com a pistola engatilhada, Vitor Stepanovich! disse o coronel, piscando-me.

– Sabe quem era aquêle casal bem vestido de ontem à noite? perguntei-lhe. O sapateiro da vila e sua esposa. E éle também é um velho comunista. Perguntei ao senhorio. E vocês o tomaram por chefes nazistas!

Na noite anterior, havíamos pedido ao senhorio que arranjasse um mecânico para ajudar o nosso motorista bem cedinho de modo que ao voltarmos ao carro, encontrâmo-los trabalhando com afinco. A fim de matar o tempo, subimos o caminho da encosta e fomos ao castelo de Goethe que nos foi mostrado pelo guia e guardião. Quando voltámos, o carro estava em ordem e não muito depois já estávamos a caminho.

Durante vários dias, percorremos tôdas as direções da Turíngia e da Saxônia, fiscalizando, requisitando, sequestrando produção do momento, e fazendo encomendas por ordem da Administração de Reparações. Foi durante esta viagem que, pela primeira vez, comecei a sentir uma sensação estranha, pois comecei a compreender que o ano fora da União Soviética não decorrera sem deixar efeitos em mim. Dentro de mim ocorrera alguma mudança, e disso me tornava cônscio enquanto vivera e trabalhara com os meus dois companheiros da marinha. Ambos proporcionavam uma espécie de escala pela qual podia medir o processo que se desenrolava dentro do meu ser. Quando conversava com êles, ficava perturbado com o fato de que meus pensamentos e maneiras haviam sido modificados, em comparação com os do povo soviético. O que eu sentia não era a simples renúncia do que eu acreditara, a favor de algo novo. Era o alargamento de tôdo o meu horizonte.


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