I
Um dia, ao pegar o telefone, para responder a um chamado, ouvi uma voz desconhecida:
– É o corpo da Administração Militar Soviética?
– Sim.
– Major Klimov?
– Ele mesmo.
– Bom dia, Klimov, continuou a voz, fazendo uma breve pausa. Aqui é a Administração Central da M.V.D. em Potsdam.
– Oh! sim. Com quem deseja falar?
– Com o senhor.
– Um major da Segurança do Estado quer falar com o senhor.
– Perfeitamente. Sôbre que?
– Um assunto eminentemente pessoal, continuou a voz, com um pouco de ironia e exagerada cortesia. Quando posso falar com o senhor?
– A qualquer momento.
– Gostaríamos de fazer-ihe uma visita, mas fora do expediente. Esteja em casa à noite. Qual é o seu enderêço? Não tem importância, têmo-lo aqui. Até de noite.
– Até logo.
Francamente, pensei que era apenas um conhecido meu tentando pregar-me uma pilhéria estúpida. Uma brincadeira tôla, especialmente por telefone. Ao chegar em casa, aquela noite, deitei-me no sofa, lendo os jornais, esquecendo-me, completamente, da visita. Não me lembrei disso senão quando a campainha soou. Abri a porta. No vestíbulo estava um oficial. A luz iluminou um quépi azul, de faixa côr de framboeza e insignias bordejadas de azul. Não havia dúvidas: uniforme do M.V.D. Era a primeira vez que eu via a faixa côr de framboeza, desde o final da guerra, pois os oficiais do M.V.D., na Alemanha, geralmente usavam uniforme militar comum ou roupas civis. Mas agora visitavam-me no meu próprio apartamento! Senti um vazio desagradável no fundo do estômago. Em seguida, veio-me o pensamento que êle estava sòzinho. Portanto a coisa não era tão má assim. Não é costume mandarem um só para fazer-se uma prisão.
– Permite-me entrar? perguntou o visitante, passando por mim, em passo confiante.
Não olhei o seu rosto. Surpreso com a visita inesperada, tentava imaginar a sua finalidade. Sem esperar o meu convite, o oficial tirou o capote e o quépi, voltou-se para mim, dizendo:
– Bem, meu velho! Se nos encontrássemos na rua também não o teria reconhecido. Mas agora dê boas vindas ao seu hóspede.
Fitei, mudo, o rosto do oficial. Sem dúvida êle estava satisfeito com a impressão que causara. Reconheci então o meu antigo companheiro de escola e amigo, Andrei Kovtun, quem, há muito, pensava estar morto.
II
Num quente dia de julho de 1941, eu e Andrei estávamos na rua, vendo passar marchando uma coluna de infantaria. Ontem ainda eram cidadãos pacíficos. Hoie haviam sido levados ao banho russo, raspado a cabeca, metidos em uniforme e, agora, a coluna silenciosa e abatida estava a caminho do desconhecido. Não cantavam e os rostos expressavam sòmente resignação pelo destino. Vestiam uniformes velhos, completamente desbotados, herança das gerações anteriores de soldados.
– Que acha? vai terminar isso tudo? perguntou-me Andrei.
– Aguentaremos, respondi, mais para dizer alguma coisa.
– Acho que os alemães logo estarão aqui, falou-me, em tom enigmático, lançando-me um olhar inquiridor.
Andrei era um camarada esquisito, externa e internamente não muito simpático, mas bem formado, alto, braços muito longos para o corpo. A cabeça parecia ser lisa, aos lados, e presa a um pescoço absurdamente comprido. Tinha grande orgulho do cabelo espesso e duro, que deixava crescer de modo a parecer um cossaco czarista. Suas proporções eram disformes e a aparência, selvagem. Os olhos eram muito escuros, a pele muito tisnada e muito sardenta para um adulto. Frequentemente eu costumava brincar com êle, dizendo:
– Andrei, se, por acaso, algum cientista encontrar o seu esqueleto, um dia, num futuro remoto, sem dúvida ficará deleitado por que pensará ter descoberto um espécime do homem da caverna.
Naqueles dias êle resplandecia de energia juvenil e parecia exudar o cheiro da terra preta e os ventos das planícies.
Sua principal característica era uma auto-estima fora do comum. Quando estávamos na escola, frequentemente íamos até os lagos, cêrca de quinze quilômetros da cidade. Andrei levava vara e redes e eu, uma velha espingarda de caça. A caminho, sempre apostávamos para ver quem andava mais depressa. Ele determinava as condições até os últimos detalhes e partia a grandes passadas, olhando para trás, de vez em quando, para ver se eu o alcançava ou, possivelmente, resolvia desistir. Depois de uma hora, quase sem fôlego, dizia, condescendentemente:
– Sim, você já descobriu como se caminha. Vamos fazer um alto, pois temo que tenha um ataque.
Êle deitava-se na relva, à beira da estrada e dizia, com dificuldade:
– Claro, a sua espingarda é mais leve do que a minha vara... Senão eu o venceria. Vamos trocar, agora.
Mais tarde, quando se tornou estudante, encontrou nova saída para a sua auto-estima: estudava, ardentemente, a vida dos grandes. Fazia isso simplesmente percorrendo os catálagos de bibliotecas a procura de livros cujos títulos começavam pela palavra "grande". Nunca desistia, nem mesmo ao enfrentar a obra em três volumes, como "Grandes Cortesãs da História Mundial".
Sempre que me visitava em casa, afastava a cadeira, tamborilando com os dedos, na mesa, sem dizer uma palavra. Em seguida, voltava o rosto em minha direção e perguntava num tom de inquisidor:
– Acho que ouviu falar em Cleopatra. Mas quem foi Messalina?
Quando eu não podia responder a questão, ficava absurdamente satisfeito. Geralmente, eu não caía na armadilha, mas recorria a contra-perguntas. Se me perguntava que pedra Nero usava nos seus espetáculos eu dizia, com desprezo:
– Isso é tolice! Mas diga-me a diferença entre uma côrte e uma falange. Isso é uma pergunta de homem!
Deve-se ter em mente que, na União Soviética, o ensino da história começa com a Comuna de Paris. Segundo os pedagogos soviéticos, tudo que aconteceu antes dêsse fato, deve estar relacionado com a teoria de Dawin, isto é, a evolução do macaco até o homem. O homem, realmente, surgiu pela primeira vez em 1871. Pela lei da ação e da reação, nós sentíamos uma antipatia invencível pelos "realejos", como denominávamos os professores de história e preferíamos ir jogar futebol. O resultado era ser fora do comum um estudante ter qualquer conhecimento da antiguidade e da idade média. Para adquirir êsse conhecimento era preciso estudar essas coisas, por si mesmo, sendo muito difícil conseguir-se os livros necessários. Pela primeira vez li livros da história da antiguidade quando era estudante universitário, como distração do estudo de cálculo diferencial e integral. Não sei porque Andrei veio interessar-se pelas cinzas de Alexandre, o Grande. Provàvelmente era consequência da sua auto-estima. Ele supunha ser o único estudante que podia ter essa idéia e ficou grandemente surpreso ao descobrir que eu podia responder às suas perguntas impertinentes.
Outro aspecto interessante do seu caráter era o profundo e instintivo ódio ao regime soviético. Odiava-se como um cão odeia um gato. Eu achava essa atitude incompreensível e, muitas vêzes, desagradável, pois eu era mais liberal nas opiniões. O pai de Andrei era um sapateiro independente, de modo que, segundo as idéias soviéticas, pertencia à classe de proprietários que estava condenada a ser extinta, embora a única propriedade que possuia era um par de mãos calosas e costas arcadas com tanto trabalho. Acho que Andrei ouviu muita praga em Stálin e ao "bando de ladrões comunistas", desde o bêrço. Não podia eu encontrar outra explicação de sua conduta, quando me levava a um canto, na escola e murmurava versos anti-soviéticos ao meu ouvido: aquelas coisas que se vêem nas paredes das privadas. Geralmente eu recusava deixar-me levar por discussões. Ambos tínhamos dezesseis anos, mas lembrava-me que numa escola local, três alunos haviam sido presos, há pouco tempo, por "atividades anti-soviéticas".
Nos nossos dias de estudantes, frequentemente vinha êle visitar-me. Não éramos exatamente amigos inseparáveis, pois minha impressão é que êle não tinha nenhum amigo íntimo. Sua amizade baseava-se, principalmente, na atitude unilateral contra qualquer possível discussão. Sentia êle constante desejo de passar-me, nos exames, e no conhecimento geral de humanidades. Eu me divertia com os seus modos extraordinários, tentava trazê-lo das nuvens à terra e fazê-lo compreender que até êle estava longe da perfeição. Meu sentimento, por êle, não era tanto de amizade como de interêsse, porque era um camarada fora do comum. Embora nunca me fizesse nada, sempre o mantinha à distância, mas êle honrava-me, condescendentemente, com a sua amizade, ou melhor, rivalidade, explicando que, pelo menos, eu conhecia um pouco "as coisas mais elevadas".
Êle se considerava único, insuperável, o que, entre estudantes, era motivo de brincadeiras e comentários. Uma coisa havia a seu favor a despeito da auto-estima, nunca ofendia. 1 Afastava-se, por certo tempo, e, quando voltava, era como se nada tivesse acontecido.
Uma ocasião, quando estudávamos no Instituto Industrial, no comêço do ano escolar, veio até mim e sentou-se, como de costume, atravessado na cadeira. Eu estava curvado sôbre a mesa, ocupado com um plano, e não lhe dei atenção. Mas, essa vez, êle tinha notícias muito importantes. A princípio manteve um silêncio misterioso a fim de provocar minha curiosidade. Percebi que estava ardendo para surpreender-me com as novidades, mas fingi não ter notado.
– Ainda não soube? perguntou êle, sem poder conter-se mais.
Calmamente continuei o desenho.
– Claro que não! continuou, baixando a voz num murmúrio. Há algumas moças simplesmente maravilhosas no primeiro ano. Estive no internato da Faculdade de Química, ontem. São deslumbrantes! Uma das que vi é uma princesa verdadeira. Consegui descobrir o seu nome é Heliana. Esbocei um plano e quero discuti-lo com você. Oh! pare com êsse desenho! Preparei as coisas com esperteza diabólica. Primeiro, descobri o quarto de Halina. Depois, descobri quem está com ela são quatro. Depois, procurei a mais feia de tôdas e encantei-a a noite tôda como Mefistófeles. Agora aquêle sapo pensa que estou apaixonado por ela e até me convidou a ir vê-la. Compreendeu? E no seu quarto verei... Halina!
Andrei girou em tôrno, alegremente, deixando escapar resmungos e grunidos indefinidos de prazer pela sua esperteza.
– Portanto, metade já está arranjado. Apenas não posso ir sozinho. Preciso de um companheiro. E você vai comigo! De qualquer forma, você não é um rival perigoso, terminou, plenamente conscio da própria superioridade.
Fiquei bastante surpreso. Todos o consideravam um caçador de mulheres. Sua aparência causava tão má impressão que nunca obtinha sucesso com as colegas. Tinha êle o hábito de dizer:
– As mulheres não compreendem nada. Vêem só o exterior, sem se interessarem pela alma. Além disso, todos os grandes homens ficaram solteiros, apressava a acrescentar.
Portanto, algo fora do comum deveria ter acontecido para torná-lo tão entusiasmado com os encantos femininos.
Pouco mais tarde, encontrei-me com a princeza por quem estava encantado. É preciso apenas acrescentar que nossa amizade e rivalidade aumentaram ao incluir Halina.
Ambos recebemos diplomas de engenheiro, ao sermos aprovados pela Comissão Estatal de Exames, na primavera de 1941. Agora o mundo jazia aos nossos pés. A despeito das suas atrações, a vida estudantil não nos fôra fácil. Mais da metade dos diplomados por nosso curso tiveram que pagar altos preços pelos estudos: tuberculose, perturbações gástricas, neurastenia. Mas havíamos lutado pelo futuro e êle, agora, jazia a nossa frente com tôda a sua atração. Possuíamos profissão definida, que nos prometia melhorar as condições materiais de vida e a possibilidade de realização de planos há muito nutridos.
Então veio o dia 21 de junho de 1941.
Muitos haverá que nunca se esquecerão dessa data. A guerra veio como um raio do céu, destruindo nossos planos, de um só golpe. Tivemos que renunciar tôda a nossa vida pessoal e privada durante muitos anos. Entretanto, aceitámos a guerra com grande calma. A Alemanha era-nos um símbolo da Europa, mas, para a maioria dos jovens pensantes da Rússia, a Europa era um paraiso proibido. A interdição total do contacto com o mundo exterior teve os seus aspectos negativos muitos jovens exageravam, grandemente, a realidade e pensavam que a Europa fôsse a encarnacão de tudo por que lutavam material e intelectualmente. Durante os primeiros dias, muitos de nós pensavam que a guerra era o sinal da revolução comunista mundial, que era uma manobra calculada pelo Comintern, preparada por Stálin, e aquêles que assim pensavam, alarmaram-se. Mas, quando começaram a chegar as primeiras informacões dos incríveis sucessos dos alemães e das catastróficas derrotas do Exército Vermelho, acalmaram-se. Muitas pessoas realmente alegraram-se com a guerra, principalmente essa guerra! Secretamente pensavam que fôsse uma cruzada. principalmente essa guerra! Secretamente pensavam que fosse uma cruzada européia contra o bolchevismo. Isso é um paradoxo e pouquíssimas pessoas, na Europa, suspeitam da sua existência. O povo russo, agora, prefere não ser lembrado disso: a desilusão foi bastante amarga.
Hitler jogou o seu maior trunfo, a confiança do povo, nas mãos de Stálin. Antes da guerra, a maioria dos jovens pensadores soviéticos não possuiam nenhuma fé na propaganda soviética, ou, pelo menos, a tratavam com ceticismo. A guerra ensinou-lhes uma lição sangrenta de que nunca mais se esquecerão.
Naqueles dias, se Andrei me via, em qualquer parte, não importava onde, excitadamente puxava-me de lado e contava-me as últimas notícias da frente de batalha. As notícias alemãs, naturalmente. Jurava que Kiev havia caido muito antes que as tropas alemãs se aproximassem dela. Recebia cada derrota soviética, se não exultante, pelo menos com verdadeira malignidade bestial. Ele já tinha visões suas, chefiando um bando terrorista e, mentalmente, contava os comunistas que enforcaria com as próprias mãos.
A guerra separou-me de Andrei. Recebi notícias dêle, em fins de 1941, escritas num pedaço sujo de papel e cada linha expressava uma depressão desesperada. Não era uma carta, mas o grito de um cão ganindo à lua. Ele estava numa unidade especial: quando o curso terminasse, deveriam ser lançados como guerrilheiros, na retaguarda alemã. Ele fôra um engenheiro construtor; agora era oficial do corpo de pioneiros, o que determinava o seu futuro serviço: a organização de atividades sabotadoras na retaguarda do inimigo.
Depois de ler a carta, convenci-me que, no dia em que fôsse lançado, se entregaria aos alemães.
Recebi a segunda carta sua muito mais tarde, depois de doze mêses. O papel estava timbrado com as armas alemãs. que o próprio Andrei riscara. A medida que a lia, não ficava não muito surpreso com a quantidade de hipocrisia que um homem pode ter. Estava escrita num estilo exaltado e consistia únicamente num hino de exaltação da pátria, do Partido e do governo. Dizia êle:
"Apenas aqui, na retaguarda do inimigo vim compreen der o que significa "pátria". Não é mais uma concepção abs trata, mas uma essência viva, um ser querido. Encontrei o que buscava em vão: o sentido da vida. Triunfar, gloriosa mente, ou perecer. Mas, se eu sobreviver terei o peito coberto de condecorações. Agora sou membro do Partido; tenho três ordens e fui recomendado para promoção. Estou no comando de uma força de guerrilheiros que corresponde, mais ou me nos, à força numérica de um regimento, mas o nosso poder combatente é ainda maior. Fui um tolo ao decidir cursar a engenharia. Agora, pela primeira vez, sei o que tenho que fazer: quando terminar a guerra, trabalharei para o N.K.V.D. e mudarei o meu nome para Orlov".
O pequeno Nero já não mais duvidava do resultado da guerra. Queria pertencer a N.K.V.D. porque considerava essa instituição como a quintessência do regime soviético. Sua carta contava, pormenorizadamente, quantas pontes sua unidade destruira, quantos trens havia desencarrilhado e quanto inimigos havia varrido.
Eu não confiava na sua regeneração. Eu apenas supunha que, ao escrever a carta, estava visando o censor militar. As autoridades formam a opinião moral e política de um oficial, principalmente pelo conteúdo das cartas e a promoção depende, portanto, delas, até certo ponto. Eu supunha que a sua auto-estima e desejo de uma carreira brilhante tivesse obliterado quaisquer outros sentimentos nele. Senti-me zangado e respondi:
"Receio que eu e você nos encontremos em lados opostos da mesa, cidadão Orlov".
Era isso uma alusão clara à sua futura carreira como oficial da N.K.V.D.
III
Agora êle estava a minha frente, vivo e intacto, surgido dentre os mortos, um homem na primavera da vida. No peito, havia uma estrêla dourada de cinco pontas, a mais alta distinção soviética por feitos militares, acima de várias fileiras de faixas. Todo o seu ser irradiava a calma de um homem acostumado ao comando; seus traços haviam perdido a angularidade e adquirido uma qualidade distinta, masculina e simpática. Somente o seu caráter não se havia alterado: havia planejado uma surpresa que faria meu coração descer até às botas!
– Faz tempo que não nos vemos, irmão. Prepare uma recepção condigna ao seu convidado, disse êle.
Sua voz estava diferente, estranha; tinha uma certa nota de autoridade como se estivesse habituado a dar ordens.
– Você é mesmo estranho, respondi. Porque não me avisou? Agora não sei como comemorar sua volta dentre os mortos. Por que não escreveu?
– Sabe o que quer dizer a palavra "serviço especial?" Durante dois anos inteiros não pude escrever nem mesmo a minha mãe. Mas você como via? Já se casou, ou ainda está vivendo sòzinho? Conte-me tudo o que aconteceu, desde o começc até o fim. Como atravessou a guerra?
– Como todos, respondi, ainda não muito refeito da surpresa e sentindo-me ainda pouco à vontade.
Êle se transformara tão completamente que eu não sabia como encontrar uma linguagem comum.
– Havia muitas maneiras de combater na guerra, comentou. Você sabe, os espertos ficam com a recompensa, enquanto os tolos lutam. Mas tudo passou agora. Quais são os seus planos?
– Às dez horas da manhã irei à repartição, respondi.
– Muito louvável. Então ainda continua realista?
Nossa conversa era formal e artificial, como se o tempo tivesse apagado a intimidade dos anos da juventude.
– Que tempo maravilhoso o de estudante. Acho que já se passaram milhares de anos, disse pensativamente, como que advinhando meus pensamentos. Diga-me, como terminaram as coisas entre você e Halina? Tinha a certeza de que a havia desposado.
Então êle não havia esquecido a princesa dos nossos dias de estudante. Eu, também, de boa vontade recordava aquêles anos. Ofereci-lhe um cigarro, mas recusou.
– Ainda não fuma? perguntei.
– Tentei, nas florestas, para vencer o aborrecimento. Mas não me acostumei.
Eu sabia que nos velhos tempos êle não suportava bebida. Coloquei um frasco na mesa, a sua frente, e estudou-o como se fôsse remédio.
– É o meu maior defeito: não bebo, falou. Podia escolher entre os melhores vinhos da adega particular de Goering, mas nunca os toquei.
Falava vagarosamente, com uma hesitação quase que imperceptível na voz. A auto-confiança havia desaparecido.
– Então o que é que sente. de fato, agora?
– Nêstes dias eu frequentemente perco essa convicção absoluta, prosseguiu, como se não tivesse escutado a minha pergunta, olhando abstratamente. Matei inúmeros e inúmeros alemães! Veja!
Estendeu as mãos musculosas e tisnadas em minha direção.
– Com estas mãos matei não sei quantos alemães. Apenas varria-os; os guerrilheiros não faziam prisioneiros. Eu matava e sentia prazer em matar, pois estava convencido de que agia certo.
Mas sabe o que estou fazendo agora?
Seu rosto contorceu-se, nervosamente; na voz havia um ressentimento contido, um ressentimento peculiar como se estivesse furioso consigo mesmo.
– Agora estou matando a alma e o cérebro dos alemães Goebbles disse uma vez "Se quiser subjugar um povo, é preciso privá-lo do cérebro". Esse é o meu serviço, agora. A encrenca é que nêste processo o seu próprio cérebro ameaça seguir o mesmo caminho. Estamos interessados na Alemanha apenas no que fôr necessário para assegurar os nossos interêsses! Profundo! Mas as coisas foram mais longe. Entretanto, isso não é de fato, o âmago do assunto. Como posso explicar...
Durante certo tempo, silenciou para depois prosseguir vagarosa e cuidadosamente, escolhendo suas palavras:
– Sou atormentado por pensamentos malditos. Parece-me... que o que estamos tentando matar aqui... é melhor do que temos em casa. Não tenho piedade dos alemães, mas tenho dó de mim mesmo, de nós. Esse é o ponto crucial do problema. Estamos destruindo um sistema cultural bem desenvolvido, reorganizando-o para adaptá-lo ao nosso modêlo e êsse modêlo... que vá para o inferno! Lembra-se como era a nossa vida?
– Diga-me, Major da Fôrça da Segurança do Estado, qual é o serviço que está fazendo, no momento? perguntei. E outra coisa fale mais baixo. As casas alemãs têm paredes finas.
– Que estou fazendo no momento? repetiu êle, para responder, evasivamente: várias coisas. Além das tarefas, geralmente atribuidas ao M.V.D., temos outras que as pessoas de fora não suspeitam. Por exemplo, temos uma cópia exata da sua organização na A.M.S., sòmente que em miniatura. Fiscalizamos o seu trabalho e damos uma mão quando há necessidade de intervenção radical. Moscou tem menos confiança nos relatórios de Sokovsky do que nos nossos.
A democratização da Alemanha... Am!... Todos os pa deiros e salsicheiros são enviados para a Sibéria. Os proprietários devem ser exterminados como classe! Sabe como expurgamos Berlim, depois da rendição? Levou apenas uma noite. Trinta mil pessoas foram retiradas das camas e mandadas diretamente para a Sibéria. Já tínhamos as listas preparadas, quando nossas tropas ainda estavam na outro margem do Oder. Obtínhamos o que queríamos dos comunistas locais.
Parou por um momento, cruzou as pernas e estudou o joelho.
– Dificilmente podemos afastar o restolho servil. Sabe, depois da rendição havia filas de denunciadores e informantes voluntários esperando ser entrevistados por nós. Uma vez ordenei que uma multidão inteira dessas pessoas fôssem tocadas da sala de espera, a coronhadas. Eu simplesmente não podia aguentar mais.
Suas palavras faziam-me a atitude típica dos soldados soviéticos para com os "camaradas políticos" soviéticos. Pouco antes de as fôrças soviéticas e americanas se reunirem, um grupo de soldados russos encontrou um alemão sòzinho. Tinha êle mochila às costas, e dirigia uma bicicleta carregado de tudo que possuia. Ia na direção do oriente. Ao ver os soldados soviéticos, gritou entusiasticamente:
– Stálin, bom... Sou comunista... Camarada...
Tentou explicar que estava a caminho da União Soviética e que pretendia construir o comunismo juntamente com êles. Os soldados entreolharam-se, sem uma palavra, fizeram-no voltar para o ccidente e deram-lhe um empurrão ligeiro. Quando êle resistiu, tentando, de novo, ir para leste, os soldados enfureceram e tiraram-lhe a mochila e a bicicleta. Depois de lhe terem dado um batismo comunista, o homem não podia mover nem uma perna. Quando o coitado levantou-se e voltou as costas, os soldados começaram a gritar:
– Agora o camarada é um verdadeiro comunista. O que é seu é meu. Stálin... bom.
Estavam perfeitamente convencidos que lhe haviam feito o bem, isto é, que lhe haviam salvado a vida.
Os funcionários do K.P.D. – S.E.D. decoravam os radiadores dos carros com flâmulas vermelhas e se julgavam os donos da criação, quando dirigiam, como bombeiros, por Berlim, sem respeitar o limite de velocidade. Sempre que um soldado ou um oficial soviético encontrava um homem assim, considerava como ponto de honra realizar a reeducação ideológica do "camarada" maluco. Quanto maior era o pôsto do "camarada" do Partido, maior a honra de esmagá-lo no radiador ou no paralama.
– Assim não terá muita pressa em procurar o comunismo, era o comentário habitual, nêsses casos.
O comandante de Karlshorst, Coronel Maximov, apenas ria ao lhes informarem sôbre êsses incidentes. Não eram êles apenas atos crus de barbarismo. Depois que os soldados soviéticos haviam vivido, um pouco, na Alemanha, falavam com respeito e até com inveja dos alemães. Mas os comunistas alemães eram chamados venais e ladrões. Qualquer cidadão soviético que tenha visto a Europa estará convencido de que apenas os degenerados, sob paga de Moscou, podem ser comunistas.
– Ah! a propósito, que esteve fazendo recentemente em Petersburgerstrasse? perguntou diretamente Andrei.
Fitei-o surpreso. Era verdade que estivera em Petersburgerstrasse, há uma semana. Uma jovem conhecida de Moscou, chamada Irena, havia-me convidado para visitá-la. Era diplomada pelo Instituto de Línguas Estrangeiras, de Moscou, e, agora, trabalhava em Berlim como professôra de alemão A casa que visitara diferia muito pouco das demais na rua; não tinha placa, nem bandeira vermelha que indicasse ser ocupada pelas autoridades soviéticas. Mas, nem bem abri a porta, um homem uniformizado de M.V.D. barrou-me o caminho. Meu uniforme de oficial e meus papéis de identidade não serviram muito. Antes de poder entrar na casa, a própria Irena teve que vir identificar-me.
A casa era usada como escola para os censores do M.V.D., que viviam como se estivessem em acampamento. As condições eram severíssimas, como em todos os estabelecimentos do M.V.D. Embora Irena não pertencesse ao M.V.D., sendo simples empregada, tinha que obter permissão para sair, até aos domingos. Quando saía, era obrigada a declarar a hora em que se retirava, o objeto da saída, num livro de ponto; de volta, tinha que declarar, de novo, a hora e assinar outra vêz. Como ela própria admitiu, todos ali viviam como semi-prisioneiros.
– Como soube que estive em Petersburgertrasse? indaguei.
– Muito simples: examinei, preliminarmente, sua ficha pessoal, não a existente no seu Departamento do Pessoal. Se não me engano, não faz muito tempo viu "Eugene Onegin", no Admiralspalast e também viu o ballet "Petruska", não foi? Até posso dizer com quem foi.
Olhou-me obliquamente a fim de ver a impressão causada. Evidentemente êle apreciava os efeitos baratos.
– Mas isso não é crime, no momento, continuou. O Admiralspalast está no setor soviético. Mas aconselho-o a não visitar os teatros dos outros setores, pois isso lhe será debi tado. Compreendeu? Temos os nossos próprios registros de todos os oficiais da A.M.S., até o Marechal Sokolovsky. No momento, a sua ficha pessoal está em ordem e eu o felicito por isso.
Ah! como estamos falando da Petersburgerstrasse, temos uma ou duas instituiçõse interessantes lá: uma escola especial para instrutores alemães, por exemplo. São êles o arcabouço do futuro. M.V.D. alemão. Há certas coisas que são mais convenientes nas mãos dos alemães. Apenas me surpreendo com o problemas que êles criam. Há ocasiões em que não posso deixar de pensar que alguns, de fato, acreditam estar ajudando a construir uma Alemanha melhor. E êsses tolos nem mesmo ganham rações suplementares, como a Troika Especial. Acho que você sabe o que é a Troika-Especial. Os alemães chamam o triunvirato Grotewohl, Pieck e Ulbricht simples e brevemente G.P.U. E nós, também, por causa da simplicidade, os batizamos de Troika-Especial*.
* Referência aos dias dos Tribunais Extraordinários Revolucionários, que, geralmente, tinham três membros – Tr.
Êle prosseguiu dizendo os escritos que cobrem as paredes dos lavatórios alemães.
– Sabe o quer dizer S.E.D.? indagou. Os alemães dizem: Assim termina a Alemanha (So endet Deutschland). Talvez nem êles mesmos suspeitem como têm razão. Isso se lhes tornará patente quando a Alemanha for denominada a R.S.S. Alemã e, no momento S. E.D. é conhecido por Partido Comunista Alemão. Claro que não é o nome, mas o que está por detrás que importa.
Senti que tinha que fazer algum comentário, por nossa causa mesmo:
– Você está dizendo coisas interessantíssimas. Se fôsse outra pessoa, eu denunciaria às autoridades competentes, sem hesitação. Mas como estão sendo ditas por um major do Serviço de Segurança do Estado, devo aceitá-las como provocação deliberada. Portanto, acho desnecessário agir dessa forma. Prossiga até enjoar.
Êle fitou-me e riu.
– Você é mesmo um camarada cauteloso! Não faz mal um pouco de cautela. A fim de acalmá-lo, pode aceitar tudo que falei como provocação. Nessas circunstâncias posso falar até com mais franqueza.
Erguendo-se da cadeira, pôs-se a andar pelo quarto. Afinal, deteve-se diante da estante de livros e estudou-os. Ainda de costas para mim, continuou:
– É, realmente, divertido ver como nações inteiras, ràpidamente, metem o pescoço nêste jugo. Veja a Alemanha. Se Stálin tivesse tôda a Alemanha, nas mãos, os alemães dançariam como se fôssem um só homem. Você sabe como êles pensam: ordens são ordens. Claro que, antes, é preciso que se criem as condições: a forma de um Estado Alemão independente, com um "premier" e outros fantoches. É preciso jogar com orgulho nacional alemão. E quando os homens adequados estiverem no poder, os alemães votarão, unânimemente, numa R.S.S. Alemã.
Forma e conteúdo! prosseguiu, pensativamente. Veja o socialismo e o comunismo, por exemplo. Segundo Marx, o socialismo é o primeiro passo para o comunismo. Há tendências socialistas fortíssimas no mundo atual. Naturalmente, a medida que a sociedade moderna progride, exige formas novas. Os Partidos Social-Democráticos, a socialização sob Hitler, a atual tendência socialista na Inglaterra. A gente pode ver isso, a todo instante. Mas então, será que tôdas as estradas levam ao comunismo?
Veja o que temos na Rússia. Chama-se socialismo. Quanto à forma, de fato, parece ser socialismo, pois tudo pertence à sociedade na forma do Estado. Mas o conteúdo? O conteúdo é capitalismo do Estado ou cativeiro socialista. O povo derrama o sangue e sua para produzir o futuro paraíso comunista. Tudo isso faz lembrar o burro com o maço de feno pendurado diante do focinho. O burro esforça-se, mas o feno sempre continua a distância. E os idealistas ingênuos do Ocidente consideram intercomunicáveis os conceitos do socialismo e do comunismo e, voluntàriamente, metem o pescoço no mesmo jugo.
Embora pareça estranho, há sòmente um paralelo histórico à doutrina comunista – a doutrina cristã. Sòmente a doutrina cristã era tão ortodoxa como a doutrina comunista, hoje, e é por isso que se espalhou pelo mundo inteiro. A doutrina cristã dizia à alma humana: "Divida com o vizinho". Mas a história progrediu até a fase materialista. A lei comum do comunismo é: "Tire do vizinho".
Atirando-se à cadeira, esticando as pernas e recostando a cabeça no espaldar, disse:
– Depois da rendição, pensei que apreenderíamos o que a Europa havia feito de melhor – afinal de tudo, éramos vitoriosos – e, em seguida, imporíamos ordem em nossa própria casa. Em vez disso, estamos forçando as gargantas dêste povo e sugando a última gota de sangue do nosso. Revolução permanente! Aqui estou organizando o comunismo, numa escala alemã. Nêsse serviço Wilhelm Pieck é o meu menino de recados. Enquanto isso, que acontece no nosso país?
Nos seus olhos brilhou uma chama diabólica. Pulando, começou a dar longas passadas pela sala, a voz engasgada de fúria:
– Foi para isso que lutei?
– Escute, Andrei disse eu. Supondo, por um momento, que os seus comentários não pretendem ser provocação, mas que, de fato, sente e pensa o que diz, com o seu trabalho no M.V.D.?
Êle fitou-me, por alguns segundos, para, depois, olhar um ponto invisível na sala escurecida.
– Você quer dizer, por que uso êste quépi, com faixa côr de framboeza? perguntou. Por divertimento. Apenas para divertir-me com a visão dos outros afastando-se de mim. É a única coisa com que me divirto, agora, nêste meu serviço. Quando se tem um vácuo interior, inevitavelmente se procura um substituto no mundo exterior.
– Você tinha essas atitudes desde o velho tempo, a Nero! retorqui. Mas um homem não pode continuar com isso.
– Tem razão. Sabe quais são as moléstias dos oficiais do M.V.D.? perguntou-me, rindo maliciosamente. Alcoolismo é a menor delas. A maioria dos homens é viciada em drogas: morfina, cocaina. Já foi provado, por meio de estatística, que três anos de trabalho nos órgãos de operação tornam um homem num neurastênico crônico. Na Crimeia há um sanatório especial do M.V.D. para tratamento dos viciados e impotentes, mas não adianta muito. Não é fácil recuperar um sistema nervoso escangalhado. Homens normais não aguentam o serviço. E a inteligência – é a coisa mais perigosa da nossa profissão. Se quiser fazer carreira no M.V.D. é preciso ser malandro, por vocação. Os idealistas há muito que perderam as cabeças; a velha guarda tornou-se parte da história da C.P.S.U. O que sobrou pode ser dividido em duas categorias principais: os que fazem tudo que lhes é exigido, sem oferecer resistência, já que não se incomodam como ganham o pão, e os que estão dispostos a trair até a própria mãe por causa da carreira. Você conhece o mandamento soviético: externamente, seja escravo do seu superior, mas, internamente, cave-lhe a sepultura para que possa tomar-lhe o lugar. O mesmo se passa no M.D. V., apenas em maior escala. Não é de admirar que todos se voltem para a cocaína e a morfina.
Suas palavras fizeram-me recordar um homem que encontrara num hospital durante a guerra. Era um soldado raso de uma companhia de punição. Antes da guerra fôra engenheiro aviador. Era membro do Partido e, quando foi convocado, designaram-no numa secção da N.K.V.D. Enviaram-no para o Departamento Secreto do Instituto Central de Aerodinâmica, em Moscou, onde sua tarefa constituia na construção de aviões especiais, de grande altitude, movidos por motores a turbo-compressão.
Ninguém em Moscou suspeitava que durante quase que a guerra tôda, um Henschel alemão voava sôbre a cidade, dia após dia. Voava a tal altura que era invisível aos olhos nus. Apenas os técnicos conheciam o segredo das nuvens de fumaça que se formavam e se dissipavam, vagarosamente, no céu. O aparelho nunca deixava cair bombas, apenas fotografava com o auxílio de filmes infra-vermelhos. Os alemães concediam grande importância às fotografias periódicas das junções de estrada de ferro, em Moscou, por onde passava a maior parte do material militar, rumo ao leste. Os aparelhos alemães sobrevoavam Moscou, noite e dia e, gradativamente, começaram a enervar o Cremlin. Quando os caças soviéticos tentavam subir acima do limite de 30.000 pés, o Henschel calmamente subia mais ainda, para depois descer e atirar os Yaks e os MIGS. Entretanto, nem sempre concediam essa honra aos caças soviéticos, divertindo-se com êles.
O Conselho de Defesa entregou ao Instituto de Aerodi nâmica a tarefa urgente de inventar um meio de combater êsses aeroplanos de reconhecimento, e o então engenheiro de aviação, o novo oficial da N.K.V.D. foi encarregado de controlar o serviço. Segundo plano elaborado pelas autoridades superiores da N.K.V.D., recebeu instruções para enviar-lhes, mensalmente, os nomes de uma porcentagem fixa de espiões, guerrilheiros e comandos. O "plano" era severo: mensalmente uma certa porcentagem de espiões, uma porcentagem de guerrilheiros e "inimigos do povo". Frequentemente, além disso, faziam-lhe a urgente demanda de dez "espiões" dos operários de fábricas, ou cinco "desmanteladores" das fábricas metalúrgicas ou laboratórios, de modo que êsse pedido viesse ao encontro das necessidades especiais da N.K.V.D. para algum projeto urgente próprio.
Depois de alguns mêses, o tenente teve esgotamento nervoso. Não estando muito a par dos processos da N.K.V.D., apresentou pedido de transferência para outro serviço. Dia depois foi rebaixado e enviado a uma companhia de punição. No hospital onde vim conhecê-lo, teve que operar ambas as pernas.
Andrei tinha razão. Não haveria modo de escapar do M.V.D.
– Onde está Halina? perguntou, de repente.
– Em Moscou.
– Tenho apenas uma esperança, falou, sonhadoramente. Talvez se eu a vir, de novo...
A campainha da porta soou. Saí e voltei com um conhecido chamado Mikhail Sykov, que não morava longe de mim. Desculpou-se êle da intrusão com a observação habitual:
– Ia passando e vi luz acesa, de modo que pensei...
Ao enxergar Andrei, interrompeu-se. O rosto de Andrei não era reconhecível na escuridão; meu abajur iluminava apenas suas divisas douradas e azuis e as numerosas condecorações no peito. Sykov cumprimentou Andrei, que apenas se inclinou, sem erguer-se da cadeira. O recém-chegado, sem dúvida, percebeu que chegara num momento delicado. Não é tão fácil conversar com um oficial do M.V.D. como se fosse um mortal comum. Além disso, quem sabe para que estava ali o oficial? Com certeza, oficialmente. Nêsses casos, é melhor a gente desaparecer. De qualquer forma, o taciturno major não demonstrava a menor vontade de conversar, de maneira que Sykov declinou a cadeira, que lhe ofereci, dizendo:
– Voltarei outra ocasião. Acho que vou ver quem anda lá pelo clube.
Desapareceu tão sùbitamente como chegara. No dia seguinte, provavelmente, disse a todos da sua repartição, que eu estava em têrmos amigáveis com o M.V.D., aumentando a história, é claro. Nos círculos oficiais da A.M.S. meu conceito subira relações íntimas com o M.V.D. não eram sem significação.
Andrei permaneceu sentado, um pouco mais, sem falar. Em seguida, ergueu-se, falando:
– Acho que já é tempo de ir. Venha ver-me quando estiver em Potsdam.