Gregory Klimov «A máquina do terror»

Capítulo 9. O SUPREMO QUARTEL-GENERAL SOVIETICO

I

Depois de alguns mêses em Karishorst, eu estava bastante conhecedor da estrutura e das funções do Supremo Comando da Administração Militar Soviética. Meu trabalho, em íntima associação com os oficiais superiores da A.M.S. permitiam-me ver por detrás dos cenários da maquinária do Supremo Comando.

O chefe da A.M.S., Marechal Zhukov, também era o comandante supremo das fôrças de ocupação soviética. Dessa forma, em Potsdam, possuia um segundo Quartel General, o Comando Supremo daquelas fôrças.

Merecidamente o Marechal Zhukov gozava de grande autoridade e o seu pôsto de governador militar da zona soviética era resultado dos grandes serviços como brilhante comandante de campanha que teve papel decisivo na guerra. Além disso, era bastante popular, o que demonstram as histórias que se contam a seu respeito e suas relações com os seus homens. Eis aqui uma:

Uma ocasião, durante a ofensiva, o marechal resolveu investigar o estado de coisas nas estradas que iam ter à frente de batalha. Vestiu um capote militar velho sôbre o uniforme de marechal, um gorro protetor de orelhas na cabeça, atirou uma mochila estragada às costas e se foi pela estrada que ia dar diretamente na frente. À margem da estrada ficou parado, sòzinho, apoiado num bastão, como se fosse um soldado ferido. Quando um carro, cheio de oficiais passava, êle tentava detê-lo, mas os seus pedidos de auxílio eram ignorados. Os carros não paravam, mas, no próximo pôsto de contrôle, as viaturas eram detidas. Os oficiais amaldiçoavam a demora inesperada, mas não podiam descobrir quem dera essa ordem. Pouco depois o próprio Zhukov surgiu com o seu capote velho.

– Quem foi o idiota que deu ordens para deter-nos aqui? estava gritando um dos oficiais ao guarda inflexível.

– Fui eu, respondeu o general, calmamente.

– E quem é você? voltaram-se todos os oficiais, irados.

– Quem sou eu? Um soldado russo, explicou Zhukov, com a mesma calma ameaçadora e, displicentemente desfazendo as dobras do capote. Tirem-lhe os documentos e enviem o caso ao conselho de guerra, ordenou a seu ajudante, que acabara de chegar.

Nas suas memórias, o General Eisenhower frequentemente expressou sua surpresa pela desconcertante falta de independência do Marechal Zhukov; quando trabalhavam juntos, Zhukov nunca ousou tomar uma decisão por si mesmo. Segundo o modo de ver americano, tal homem seria forçado a demitir-se pelo fato de não corresponder à responsabilidade de seus trabalhos. Mas, segundo as concepções soviéticas, o Marechal Zhukov era muito independente, motivo pelo qual foi chamado cedo, abandonando o pôsto de comandante supremo da A.M.S.

Realmente, o Marechal Zhukov nunca tomou decisão sem consulta preliminar a Moscou. O seu êrro, de fato, foi de quando executava as instruções do Cremlin, exatamente tinha a audacia de exprimir a sua própria opinião. Muito frequentemente, tentava rever as instruções, quando as considerava prematuras ou inexperientes. Aos olhos do Cremlin isso era razão suficiente para suspeitá-lo de tendências revoltosas.

Sua chamada a Moscou, em março de 1946 e designação como comandante de um distrito militar nas províncias russas foi um outro exemplo dos métodos ditatoriais do Cremlin. Zhukov gozava de grande autoridade e popularidade na União Soviética, depois da guerra, e sòmente isso já teria sido razão suficiente para que perdesse o seu pôsto importante, o herói guerreiro. O Cremlin tinha receio da grande concentração de poder nas mãos de um homem que não pertencia ao grupo.

O sucessor do Marechal Zhukov, o General Sokolovsky, que logo depois da designação foi levado ao pôsto de marechal, não perturbava tanto a paz de espírito do Cremlin. Fra um administrador prendado, mas nunca fôra mais do que o executor das decisões de outros. O Cremlin julgava êsse comandante mais adequado às condições alteradas do período de após-guerra, quando, depois de atravessar um período crítico, o Politburo novamente estava firmemente com as rédeas às mãos.

Lado a lado com a organização do comandante supremo, há o escritório do Conselheiro Político, que é o verdadeiro representante da política do Partido Soviético, na Alemanha; sua tarefa excede em muito a de um conselheiro comum. É responsável pela execução da linha política do Cremlin e, como comissário político oficioso, simultâneamente tem a inspecção de todas as decisões do comandante supremo. Quando Molotov vinha a Berlim, a caminho da Conferência de Londres ou para as subsequentes Conferências dos Ministros do Exterior, naquela cidade, sempre avistava o Conselheiro Político antes do comandante supremo. Enquanto o comandante era o representante do Govêrno Soviético, o Conselheiro Político era o representante do Partido. Suas relações mútuas correspondiam-se o primeiro executava a vontade do segundo.

A Administração Política da A.M.S. tem o mesmo nome que a do Conselheiro Político, mas é uma organização independente. A Administração do Conselheiro Político forma o élo entre a A. M.S. e Moscou, enquanto que a Administração Política da A.M.S. é o élo inferior; em outras palavras, controla as atividades políticas nos gabinetes da A.M.S. em tôda a zona soviética e dirige tôda a vida política daquela zona. Baixa instruções e recebe informações dos organizadores do Partido que funcionam como comissários políticos, na chefia de cada gabinete, departamento e ramo da A.M.S. Embora o cargo de comissário político tenha sido abolido oficialmente, mais de uma vez, ainda continua a existir, oficiosamente, no exército, sob a designação: "Deputado do Comandante para os Negócios Políticos" e, nas repartições civis como "Organizador do Partido".

A Administração Política inspecciona as atividades dos partidos políticos da zona soviética. É dêste departamento que os líderes comunistas alemães Pieck, Grotewohl e Ulbricht recebem as instruções. Entre outras tarefas da Administração está a propagação e disseminação da ideologia soviética. Um departamento relaciona-se com a instrução e trabalho político entre a juventude alemã. Todos os planos educionais e livros para escolas alemãs são organizados conforme as diretrizes do Departamento de Educação da A.M.S., mas antes devem ser examinados e aprovados pela Administração Política.

Sem a aprovação da Administração ninguém pode participar da vida pública da zona soviética. Até onde o simulacro de democracia é mantido – nas eleições de representantes dos partidos alemães e dos sindicatos, por exemplo – a Administração Política determina a realização e resultado das eleições, que são realizadas por vários métodos, preferentemente por meio de uma conversa na A.M.S., em que os representantes "democráticos" são tratados com pouca cerìmônia, fazendo-se simplesmente a exigência: "dêem-nos a lista dos candidatos para confirmação".

Além da Administração Política, a A.M.S. também possui uma Administração dos Negócios Interiores, que se subdivide em Administração da Segurança do Estado. É difícil dizer qual o objetivo dessa divisão. Na União Soviética existem, oficialmente, dois ministérios da polícia, separados, o Ministério dos Negócios do Interior (M.V.D.) e o Ministério da Segurança do Estado (M.G.B.). A polícia criminal e a administrativa, as brigadas de fogo e o cartório de registro (Z.A.G.S.) são ligados ao M.V.D., que tem um orçamento que monta a nada mais do que circo por cento do outro ministério, o M.G.B. Resumindo, o M.G.B. é a polícia secreta. Na realidade, os dois ministérios são idênticos, mas o M.G.B. é também remanescente da Cheka – G.P.U. – Narcomvnudel, vestido na pele do Ministério dos Negócios do Interior. Afinal de contas, todos os países democráticos têm um Ministério do Interior, ou equivalente.

A Administração dos Negócios Interiores, ligado a A.M.S. é o ponto central da organização, largamente ramificada na Alemanha, do M.V.D. Seus órgãos executivos são chamados Grupos de Operação e cada um cobre, aproximadamente, uma província.

Bem indicativo do seu trabalho é o fato de que, uma ocasião, fêz ativa busca de antigos funcionários da Gestapo e compilaram-se índices compreensivos de antigos agentes da Gestapo, mas não com o propósito de administrar o castigo merecido aos relacionados. A maioria dos que foram apanhados e submetidos a uma prova completa e "reeducação" política e moral e, em seguida, conforme a prática usual soviética, foram alistados, como "voluntários" na rede de agentes do M.V.D.

Dessa forma, graças aos labores incessantes do M.V.D., lançou-se a base de fiscalização completa do povo alemão. Um dos principais agentes da Gestapo, Lange, hoje está encarregado de uma escola preparatória do M.V.D., que tem uma secção ocidental e uma oriental, correspondente ao campo de ação futuro dos alunos.

A Administração do M.V.D. na A.M.S. possui um subdepartamento encarregado da fiscalização e contrôle de todo o pessoal militar e civil soviético na Alemanha. Serviço semelhante é realizado pelo departamento de contra-reconhecimento do exército, conhecido por "Smerhs", criado durante a guerra. Smersh é a abreviação de duas palavras "smert Shpionam" (Morte aos espiões). O papel do Smersh no M.D.V. é o mesmo do conselho de guerra num exército.

Dentro da organização do M.V.D., para cada oficial estabelecido há pelo menos dez colaboradores não estabelecidos – em outras palavras, agentes secretos e espiões – que são obrigados a apresentar um relatório semanal escrito de tudo que ouviram e viram. Se o número total de funcionários, em Karlshorst fôr dividido pelo número de "colaboradores efetivos" do Departamento de Negócios Interiores de Karlshorst, ficará evidente que, aproximadamente um dentre cinco homens do pessoal da A.M.S. trabalha para o M.V.D. Na gíria do M.V.D. isto se chama "coeficiente de saturação". A proporção flutua conforme a importância do departamento: na Administração Política é maior e no Departamento de Administração e no de Economia é mais baixo.

O Departamento de Repatriamento de Cidadãos Soviéticos trabalha de mãos dadas com o Smersh. Sem exceção, todos os funcionários dêste departamento são oficiais-chaves do M.V.D. ou Smersh. O honrado trabalho de enviar de volta os cidadãos soviéticos transviados ao seio da pátria está em mãos de confiança. Os funcionários das missões de repatriamento, que trabalham nos territórios dos aliados ocidentais, simultâneamente exercem funções de uma natureza mais delicada, tal como espiões residentes, postos de correio e mensageiros da rede de espionagem.

O próximo departamento a ser considerado é o Departamento Jurídico da A.M.S. que funciona baseado no princípio suscintamente formulado pelo então procurador-geral da U.R.S.S.., Vyhinsky: "O direito e a lei derivam da linha geral do partido e servem os interêsses do Estado Soviético". Uma das tarefas do Departamento Jurídico era rever as leis alemãs e elaborar outras novas. Para o espanto dos legisladores dêsse Departamento, muitas leis baixadas pelo regime hitlerista demonstraram ser úteis e puderam ser empregadas, inalteradas, pela nova "democracia". Por outro lado, parecia que bom número de leis datando do império e do segundo Reich eram de certo modo inconvenientes. Um dos inconvenientes sobrevividos, por exemplo, é o código de trabalho alemão, pelo qual os Democratas Sociais Alemães lutaram nos dias de Bismarck. Por conferir muitos direitos aos trabalhadores, impedia o desenvolvimento da nova democracia e restringia as reparações.

Os ramos puramente militares da A.M.S., divididos em departamentos do exército, da aeronáutica e da marinha, estão ocupados no estudo e valorização da experiência militar da Verhrmacht alemã e especialmente da técnica de guerra dos alemães. Grande número de institutos de pesquisas militares e científicas e estações experimentais tomadas da antiga Wehrmacht são usados para esse fim.

Além disso há os Departamentos de Saúde, do Trânsito, da Educação e outras repartições menores. A Administração da Economia já foi discutida.

Há departamentos provinciais da A.M.S. em todas as cidades principais das cinco províncias da zona soviética e a sua estrutura e organização correspondem, exatamente, às do Supremo Quartel-General Soviético. Juntamente com os P.C. locais, que existem nas grandes cidades, formam o élo com a periferia.

O setor soviético de Berlim é uma unidade administrativa separada e, oficialmente, é classificada como uma sexta província. Os serviços da administração provinvial da A.M.S. em Berlim são, em grande parte, executados pelo P.C. central soviético em Luisenstrasse.

Quase todas as administrações e departamentos do Supremo Quartel-General da A.M.S. possuem comissões para trabalho com a Comissão de Contrôle, que funcionam como representantes soviéticos na diretoria da Comissão de Contrôle Aliada.

O Grupo das Fôrças Soviéticas de Ocupação da Alemanha – G.S.O.V. – é uma unidade completamente independente, com o Q.G. em Potsdam; sua única ligação com a A.M.S. é o fato de que o comandante supremo da A.M.S. também é o comandante supremo do G.S.O.V. O G.S.O.V. mantém o seu próprio contrôle das entregas especiais da indústria alemã, sendo elas supervisionadas pelos próprios oficiais fiscalizadores nos respectivos serviços.

As condições na A.M.S. e no G.S.O.V. diferem em muitos aspectos. Os oficiais da A.M.S. gozam de maior liberdade e privilégios, sendo melhor cuidados quanto à alimentação e roupas. A designação para um pôsto na A.M.S. equivale a uma designação para o exterior, de modo que os oficiais da A.M.S. recebe duplo pagamento, um em "moeda corrente" e o outro em rublos, equipamento especial estrangeiro de boa qualidade bem como equipamento comum do exército, mais rações e outras concessões. Os oficiais das fôrças de ocupação queixam-se aos camaradas da A.M.S. das condições incomparàvelmente mais duras do serviço e da vida privada.

Os comandos soviéticos locais desempenham parte intermediária entre a A.M.S. eo G.S.O.V. São pequenas unidades armadas, necessárias para a manutenção da ordem garantida pela potência de ocupação, mas também possuem departamentos econômicos e executam funções administrativas subsidiárias. Em virtude da grande variedade de tarefas e das condições especiais surgidas com a divisão da cidade em setores, o comando soviético de Berlim ocupa uma posição especial.

Eis aí, em rápido esboço, a estrutura organizacional do Cremlin de Berlim.

II

Em dezembro de 1945, o General Shabalin adoeceu repentinamente. Explicou-se que havia estado a trabalhar em excesso e precisava ficar de cama por certo tempo. Enquanto isso, corriam boatos persistentes de que a Administração da Economia ia ser reorganizada. Pouco depois, vi uma ordem codificada, de Moscou, instruindo o General Shabalin a entregar o pôsto imediatamente e retornar a Moscou, colocando-se à disposição do Departamento do Pessoal da Comissão Central do Partido. Não se declarava o motivo do chamado.

Quando visitei o general, no seu apartamento, parecia não tanto doente como embaraçado e deprimido. O misterioso chamado a Moscou fornecia uma explicação adequada da sua doença. Ao contrário da prática dos países democráticos, onde os funcionários altamente colocados são honradamente aposentados quando não mais justificam o pôsto ocupado, os líderes soviéticos ou sobem vertiginosamente ou desaparecem sem vestígios. Portanto, o general tinha tôda a razão para sentir-se agitado com a ordem recebida.

Alguns dias mais tarde, estava de volta a Moscou, com Kuznetsov a acompanhá-lo. No último encontro, o então ditador econômico da Alemanha causou uma impressão miserável: mais parecia um homem à espera de sentença punitiva e severa do que um general que deixava, honradamente, o pôsto em que servira com mérito. Estava possuido da sensação de impotência, de completa dependência da vontade do seu senhor e ansiedade pelo destino futuro, que é comum a todos os líderes soviéticos da nova "classe".

De volta a Moscou, despiu o uniforme e foi designado para um alto pôsto da liderança do Partido, como secretário de um Comitê Regional em algum lugar do Volga. Portanto os seus receios haviam sido injustificados. Embora os seus serviços na A.M.S. não eram muito apreciados e alguns colegas seus até o consideravam tolo, nunca se poderia censurá-lo, diretamente. Trabalhava com afinco e devotava-se ao Partido, que era a coisa principal.

Após a abolição da Administração da Economia, todos os seus departamentos tornaram-se administrações separadas, subordinadas ao representante do comandante supremo. De Moscou veio o Camarada Koval assumir êsse pôsto; antes fôra êle membro do Conselho dos Comissários do Povo.

Alguns dos oficiais do pessoal do General Shabalin foram aproveitados por Koval; outros não deixaram escapar a oportunidade dada pela reorganização e procuraram novos trabalhos nos outros departamentos.

A fim de evitar complicações com o Coronel Uakin, resolvi não esperar o chamado do Departamento do Pessoal, mas conversar com Alexandrov, chefe da Administração da Indústria. Alexandrov conhecera-me bastante durante meu serviço junto de Shabalin. Depois de examinar meus papéis, disse estar disposto a fazer pedido de transferência minha para o seu departamento.

Tudo correu bem. Naqueles dias havia maior necessidade de especialistas na indústria do que militares. Dias depois fui designado, oficialmente, engenheiro diretor na Administração da Indústria. Isto queria dizer que me haviam confiado a tarefa de direção, isto, de contrôle de um ramo definido da indústria alemã. Portanto eu havia me afastado da estrada principal. Mas para onde ia?

III

Em essência, a Administração da Indústria da A.M.S. realizava as funções de um ministério da indústria na zona soviética. Em primeiro lugar, entre as suas finalidades, sua função principal era assegurar entregas de reparações, que envolviam íntima cooperação com a Administração das Entregas e Reparações da A.M.S.; em segundo lugar, assegurar as entregas para a Fôrça Soviética de Ocupação da Alemanha; e, em terceiro lugar, assegurar a produção para as necessidades da população alemã. Esta última função era, habitualmente, exercida no papel, especialmente quando podia ser explorada para iniciar nova empresa. Logo que a indústria começava a produzir, o estoque ia para as entregas por reparação.

Pouco tempo depois da rendição, a A.M.S. organizou certo número de administrações centrais alemãs correspondentes à sua: uma Administração Alemã da Agricultura, uma da Indústria, etc. Tôdas essas administrações foram instaladas no edifício do então Ministério da Aeronáutica de Goering e eram instrumentos obedientes nas mãos da A.M.S. Posteriormente, de novo por ordens de Karlshorst, a Comissão de Economia Alemã, D.W.K. foi organizada, na base dessas administrações alemãs, com o objetivo de dirigir a economia alemã segundo os princípios da A.M.S., mas através de instrumentos alemães.

As relações entre a A.M.S. e as administrações centrais alemãs podem ser demonstradas, quando se consideram as interconexões entre a Administração da Indústria da A.M.S. e a Administração Central Alemã da Indústria, uma vez que cada uma delas era órgão bastante importante na sua esfera respectiva. Os serviços dos dois corpos podem ser definidos em têrmos muito simples: o primeiro ordenava e dirigia e o segundo obedecia implicitamente e ouvia pragas.

Alexandrov, o chefe da Indústria da A.M.S. tinha uma aparência exterior decepcionante. De tamanho médiano, rosto imprescrutável, sempre falava em tom monótono e desapaixonado. Possuia, entretanto, grande experiência no campo industrial e era respeitado pelos assistentes. Até ser designado para a Alemanha, havia sido assistente de ministro da indústria de máquinas médias na U.R.S. Era muito fatigante participar de conferências na sala de Alexandrov, pois um dos seus olhos fixava, continuadamente, a janela e o outro, o teto. Quando falava, era impossível dizer para onde olhava e a quem se dirigia.

Smirnov, o assistente da Administração, era um homem de rosto pálido e cansado, lábios finos e incolores, olhos penetrantes. Mais me parecia um dos típicos oficiais inquisidores do M.D.V. e essa semelhança não era de todo decepcionante, uma vez que chegara a essa posição mais ou menos para essa função. Embora não houvesse prejudicado ninguém na Administração, a maioria dos oficiais preferia entrar em contacto com Alexandrov.

A Administração incluia uma Comissão Industrial, cuja tarefa era coordenar o trabalho da Administração da Indústria da A.M.S. com a Diretoria Industrial da Comissão de Contrôle. O seu chefe era um homem taciturno e extremamente insocial, Kozlov.

Na Administração da Indústria a atmosfera era muito diversa da que prevalecia no gabinete do Conselheiro Político, na Administração Política ou nas administrações puramente militares. Embora a maioria do pessoal usasse uniforme, sentiam-se todos como engenheiros ou outros especialistas técnicos, como se fôssem civis. Ali a primeira exigência era ser especialista, ao contrário das outras administrações onde valia a inscrição no Partido.

Noventa e cinco por cento dos engenheiros da Administração eram membros do Partido, mas isso não impedia que assumissem uma atitude crítica, mais ou menos, e independente com relação ao meio. Embora não expressassem os seus pensamentos, pensavam e agiam de modo diferente dos "homens do Partido, de pura água". Aqui a diferença entre os dois conceitos – intelectualidade soviética e intelectualidade do Partido – demonstrava-se claramente. O primeiro grupo era tão produto da época Stalinista, como o segundo, mas, de modo algum, obedecia tão cegamente à linha partidária. É muito perigoso ser engenheiro sem pertencer ao Partido e, na prática, é impossível manter essa situação por muito tempo. O segundo grupo, a chamada "intelectualidade do Partido", cujo apôio único é a inscrição no Partido, recebia apenas uma estreita preparação partidária especial, de modo que, sem base firme, era obrigado a ser fiel ao Partido, a quem deviam os cargos.

Uma das minhas primeiras tarefas, na Administração da Indústria, foi auxiliar a fixação do potencial pacífico da indústria, na zona soviética. Para se compreender, realmente o que isto significava, é preciso conhecer o estado da indústria de após-guerra, nessa zona. Em breves linhas eis a situação:

Logo após o término da guerra, um número de fôrças demolidoras varreu o país. Na zona soviética trabalharam elas, febrilmente, durante vários mêses sob o estímulo do lema "Tudo sobre rodas". Eram governadas pelo único princípio de despachar a maior quantidade de coisas para a União Soviética, sem levar-se em conta se lá seriam úteis ou não. Não havia planos, nem limitações. A única dificuldade encontrada pelos demolidores, e, na verdade, muito pequena, foi o sequestro de certas indústrias pelas fôrças de ocupação. Se uma fábrica produzia algo necessário ao exército, era requisitada: uma unidade militar, sob o comando de um oficial dirigia-se à indústria e negava acesso aos demolidores, com demonstração de força armada, se preciso. Mas, geralmente, êsse sequestro tinha pouca importância, pois, na maioria da vêzes, atingia os ramos da indústria leve. Depois do ataque à indústria da zona soviética, os remanescentes das turmas de demolidores foram colocados à disposição da A.M.S. O primeiro passo da A.M.S. foi organizar uma Comissão de Liquidação do Potencial de Guerra, que, mui rapidamente realizou o seu encargo: o de fazer voar a indústria de guerra com dinamite. As fábricas que já haviam sido despojadas das maquinárias foram agora arrazadas pelos sapadores. Como a indústria alemã havia sido adaptada para as exigências de guerra, muito antes dela iniciar-se, muitas vezes não era fácil traçar a linha exata entre a indústria de guerra e a pacífica, como, por exemplo, a indústria de produtos químicos. Assim, nessa "liquidação do potencial de guerra", uma parte da indústria básica, se não da indústria pacífica, teve que sofrer. O efeito foi semelhante ao de cortar-se as raízes de uma árvore.

Depois que a primeira onda de demolição e destruição da indústria de guerra chegara ao fim, a A.M.S. atacou a sua tarefa principal no campo econômico: a extração das indenizações. Mas não se deve esquecer que, sob vários aspectos, continuou-se o processo de demolição. Moscou havia estabelecido dezenas de datas para a realização do processo apenas para suspender as datas, cada vez que chegava ao fim.

Embora a A.M.S. tenha uma Administração de Indenizações, especial, com um pessoal maior do que qualquer outro departamento, pode parecer estranho que a Administração da Indústria esteja, na prática, ocupada com a mesma tarefa, isto é, a extração de reparações. Pode-se descrever êsse papel como o deu "apontador".

A essa altura a gente choca-se com a idéia de reparações tiradas da produção do momento. Esta fórmula foi uma pedra tropêço – ainda que apenas formalmente – em tôdas as negociações das várias Conferências de Ministros do Exterior, realizadas pelas potências vitoriosas. Reparações tiradas da produção do momento são indenizações diretas, nuas, que podem ser fiscalizadas e também anotadas. Os diretores das fábricas, na zona soviética, estão familiarizados com as fórmulas especiais enviadas para as ordens de indenizações. A A.M.S. conserva o original, uma cópia vai para a indústria, instruida para executar a ordem e a segunda cópia segue para o prefeito local, que tem que pagar.

Como nós, engenheiros da A.M.S. estávamos em constante contacto com as entregas para reparações, frequentemente pensávamos se o valor das instalações desmanteladas e enviadas à União Soviética seria deduzido dos milhões de dólares que exigíamos como indenização. A questão interessava-nos apenas acadêmicamente, mas os alemães deviam ter um interêsse mais imediato nisso.

O problema da propriedade alemã na Austria também é puramente acadêmica. As autoridades soviéticas da Austria confiscaram grande parte da indústria, sob a base de que é propriedade alemã. Supondo que, de fato, seja propriedade alemã, surge então a questão: a quem deve ser creditada? Numa reunião dos principais oficiais da Administração de Reparações, o representante do comandante-chefe das questões econômicas, perguntou a Koval a êsse respeito. Koval apenas sorriu e respondeu:

– No momento não sei se deve ser creditada essa pro priedade por conta das indenizações alemãs.

As palavras de Koval eram suficientemente autoritárias.

A Conferência de Potsdam conferiu à Comissão Aliada de Contrôle a tarefa de fixar os limites do potencial pacífico da indústria alemã, para, de um lado, excluir qualquer possibilidade do ressurgimento do militarismo e, de outro, assegurar ao povo alemão um nível de vida da Europa Central. Na Conferência de Ministros, a ser realizada em Paris, em princípios do verão de 1946, o problema deveria ser o primeiro ítem da agenda, de modo que a Comissão de Contrôle e as administrações militares das quatro potências aliadas atacaram o problema do potencial de paz. Par êsse fim, os engenheiros dos vários ramos da indústria foram chamados a uma reunião com o chefe da Administração da Indústria.

Alexandre abriu a reunião com as palavras:

– Em futuro imediato, a Comissão de Contrôle fixara os limites definidos do potencial pacífico da indústria alemã, com base nos esquemas fornecidos pelas quatro partes. O comandante supremo ordenou-nos que lhe apresentássemos nossas opiniões e um plano para o potencial de paz na zona soviética, para sua confirmação, que será apresentado comu contribuição soviética para a solução do problema. O comandante supremo chama a atenção para o fato de que êsse plano também será apresentado, diretamente, ao Camarada Molotov.

Depois de fazer uma pausa significativa, murmurou algo relativo à sabedoria dos líderes, e à grande confiança que haviam demonstrado em colocar em nossas mãos tal tarefa de responsabilidade. Na verdade, bem se poderia acreditar que o destino da Alemanha estava em nossas mãos, nas mãos de um pequeno grupo de engenheiros soviétivos reunidos na sala particular de Alexandrov.

À primeira vista, a tarefa parecia interessante e importante. Fixando o potencial industrial, estaríamos estabelecendo as condições de vida dos alemães. No caso, o potencial industrial era o equivalente do seu nível de existência; significava a quantidade de pão no prato de cada alemão no país.

– Quais são as diretrizes com relação ao método de trabalho sobre o potencial? perguntou um de nós.

– Devemos tomar por base as condições de vida média antes de 1933, respondeu Alexandrov. Devemos calcular o consumo interno médio, por cabeça da população nêsse ano, ou unidades equivalentes. Com esses dados e as características da população atual, na zona soviética, calcularemos o potencial pacífico da indústria da zona soviética.

Êle mencionara apenas o consumo interno, mas todos nós sabíamos muito bem que o orçamento econômico alemão mais devia às exportações do que às demandas internas. Se deixássemos de lado as exportações, ao fazer os cálculos, artificialmente estaríamos reduzindo o volume da produção industrial, de maneira sensível, em comparação com os "30".

– E a produção industrial, anteriormente exportada? – afinal indagou um engenheiro, provocando o problema que nos interessava.

– As exportações não fazem parte dos nossos cálculos, respondeu Alexandrov, monòtonamente. Durante o período de ocupação a quota de exportação será substituida pelas re parações. Se for alterado o regime da ocupação então outra coisa substituirá as reparações diretas.

A tarefa de delinear um plano para o potencial pacífico da Alemanha era um assunto simples, realizada quase que literalmente segundo as instruções de Alexandrov. O consumo interno de tôda a Alemanha, em 1930, serviu de base. A população alemã, contida nas fronteiras de 1930 era de setenta milhões. A população da zona soviética era de cêrca de vinte milhões, de modo que era fácil determinar o potencial de paz pela utilização dos cálculos comparativos mais simples. Assim era na teoria. Na prática, naturalmente, foi muito mais complicado, especialmente porque a Alemanha estava dividida em zonas. Por exemplo, grande parte da indúctria eletrotécnica estava na zona soviética. Nesta esfera, a capacidade atual da indústria era frequentemente mais elevada do que o potencial Proposto. Por outro lado, havia muitos ramos da indústria metalúrgica que apresentava exatamente o quadro oposto. Desde o início uma coisa se tornou patente aos engenheiros diretores: ninguém ia intensificar ou cufocar a produção industrial da zona soviética segundo os dados hipotéticos do potencial de paz. Havia outros fatores mais ponderosos e decisivos. A única solução normal seria considerar a Alemanha como uma unidade, mas Molotov não pedia nosso conselho sôbre êsse ponto. O plano do potencial de paz foi feito e entregue à Comissão de Contrôle. Nós, engenheiros que havíamos participado da sua elaboração, provavelmente fomos os primeiros a compreender, antecipadamente, que era irreal e irrealizável.

O plano foi submetido a muita discussão e revisto mais de uma vez nas conferências da Comissão de Contrôle. Claro que o primeiro requisito para o estabelecimento do potencial de paz era a unidade da Alemanha. A concessão de comércio livre e sem restrições entre as zonas poderia ter servido como solução provisória, se necessário, mas isso dificilmente se ajustaria ao fornecimento de reparações tiradas da produção do momento em virtude do perigo de que parte dessas indenizações pudessem escapar para outros canais.

Na Administração da Indústria, frequentemente eu tinha serviço oriundo da ordem n.°124 do Marechal Zhukov. Eu já possuia experiência dessa ordem anteriormente, quando trabalhava com o General Shabalin. Naquela ocasião, dia após dia, a chancelaria prticular do marechal nos enviava maços de cartas e petições, nas quais lhes pediam que suspendesse o confisco das propriedade alemã que a A.M.S. estava executando.

A Ordem n.°124, baixada logo depois da rendição alemã, continha os princípios orientadores que governavam o confisco de propriedades pertencentes aos antigos membros do Partido Nacional-Socialista e dos especuladores enriquecidos durante o regime hitlerista e com a guerra, e sua transferência para as autoridades alemãs locais. Via de regra, o Administrador da Economia assinava as petições com a anotação: "De acordo com a Ordem n.°124, o caso deve ser examinado no local", sem examiná-las e apenas enviando-as aos comandos locais dos distritos onde se situava a propriedade contestada. Na realidade, o despacho "De acordo com a Ordem n.°124 o caso deve ser examinado" significava que devia ser executado. Naquele tempo eu não examinava os detalhes da questão e o confisco das propriedades nazistas pareciam absolutamente justificável.

Segundo a A.M.S. a indústria na zona soviética pode ser dividida em duas categorias: útil e in'til. À primeira categoria pertencem as indústrias básicas, que a A.M.S. fiscaliza com o auxilio de plenipotenciários especiais designados em tôdas as indústrias grandes. Esses plenipotenciários são revestidos de várias espécies de títulos: "Oficiais de sequestro", "plenipotenciários de demolição" (que, entretanto, depois que a demolição está completada, permanecem como agentes de fiscalização da A.M.S.), plenipotenciários de reparações, departamento soviético de construção ou pesquisas científicas, etc. Não importa a maneira pela qual sejam designados, o serviço é sempre o mesmo, isto é, assegurar o funcionamento das fábricas segundo os planos da A.M.S. Nêstes casos a A.M.S. pouco se preocupava com a complexidade dos direitos legais relativos à propriedade, mas, de qualquer forma, o aspecto legal do problema foi solucionado muito simplesmente, pouco depois, quando se organizaram as companhias soviéticas de sociedade anônima.

A segunda categoria de indústria alemã não interessava diretamente a A.M.S., de modo que, na prática, êle era deixado entregue aos seus próprios problemas, por enquanto. Era sem sentido deixar um representante da A.M.S. em tôdas as fábricas pequenas; contudo, era contrario a tradição soviética e ao costume deixar até as indústrias sem importância sem supervisão. Em consequência, decidiu-se estender a Ordem n. 124, originàriamente aplicada apenas às propriedades de antigos naz sias, a todos os grupos de "indústrias inúteis", a fim de obter o máximo delas. Para esse fim, as fábricas expropriadas, abruptamente, sendo-lhes colocado a placa "ábrica pertencente ao distrito" (Landeseigener Betrieb) e entregues às autoridades alemãs locais.

Na prática, isso não era nada mais nem nada menos do que a socialização da pequena indústria. Nêsse sentido a A.M.S. era governada por duas considerações. Em primeiro lugar, era necessário tirar a base econômica do segundo trato independente da comunidade alemã, isto é, os industriais e os agenciadores. Essa cperação já havia sido executada totalmente na agricultura, com o auxílio da reforma agrária. Em segundo lugar, tinha-se a impressão de que o novo regime era progressista e assim, embora temporàriamente, isso constituia um capital político para os soviéticos e seus fantoches.

Um dos movimentos mais subtis da Adminstração Política da A.M.S., na luta pelo domínio político da Alemanha, foi a formação do Partido Unitário Socialista.

Nos primeiros dias, depois da rendição, a A.M.S. tomou várias medidas para fortalecer a posição do Partido Comunista Alemão (K.P.D.) e para estabelecer a sua autoridade sobre o povo alemão. Os métodos usados foram os já experimentados: de um lado, estendeu tôdas as espécies de privilégios concebíveis aos membros do Partido, enquanto, de outro, exerceu tremenda pressão sobre os que relutavam em pertencerem ao Partido. Esses métodos conseguiram sucesso, por certo tempo, mas logo seguiu-se um declínio na inscrição de novos membros, até cessar de todo. O respeito do povo alemão pelo K.P.D. declinou ainda mais. Todos viram que êle existia sòmente por força das baionetas da potência de ccupação. Até as pessoas que simpatizavam com o Marxismo compreenderam que haviam seguido o caminho errado ao verem o Stalinismo na prática. Consequentemente, na natural tendência esquerdista do povo alemão, depois do colapso da ditadura totalitária motivou o crescimento do Partido Social Democrático e não do Comunista. A despeito da sua atitude "esquerdista" o S.D.P.D. não era muito sociável e tratava os persistentes avanços da A.M.S. com fria reserva.

As condições especiais de período de transição, juntamente com as medidas econômicas, não ceremoniosas, postas em prática, tornou necessário observar certas regras democráticas do jogo, pelo menos formalmente. Uma das primeiras "formalidades" dessa espécie, foi a eleição das autoridades municipais alemãs. Os aliados ocidentais repetidas vêzes haviam proposto para que a questão das eleições gerais em Berlim fosse posta em pauta na conferência do Comando Aliado, mas a A.M.S. sempre conseguia adiar o problema – simplesmente porque Karlshorst estava longe de convencer-se que o K.P.D. ganharia a maioria desejada nessas eleições.

A Administração Política da A.M.S. realizou muitas conferências com os chefes do K.P.D. conduzidos por Wilhelm Pieck. A Administração insistia que a influência do Partido precisava ser aumentada de qualquer modo possível. Pieck apenas encolhia os ombros, desesperançado. Então, depois de discussões com o Conselheiro Político da A.M.S. surgiu a possibilidade da fusão do K.P.D. e do S.D.P.D. De um só golpe, isso daria ao K.P.D. um aumento gigantesco dos seus membros e, portanto, em votos. A A.M.S. considerava o S.D.P.D. numèricamente fortíssimo, mas, politicamente, uma organização sem arcabouço. Se o K.P.D., numèricamente fraquíssimo, mas enérgico, inescrupuloso nos métodos e apoiado, além do mais, pelas baionetas da potência de ocupação, pudesse engulir e digerir o S.P.D., o sucesso estaria assegurado, pelo menos superficialmente. Resolveu-se que o futuro partido, de coalisão receberia o título provisório, de acomodação, Partido Unitário Socialista da Alemanha (S.E.D.).

Assim se falou e assim se fêz. Iniciou-se violenta campanha pela unificação dos dois partidos, mas a harmonia do acôrdo foi perturbada desde o comêço, pela voz resoluta dos chefes do S.D.P., que estavam fora do alcance da A.M.S. Sêcamente recusaram entrar na coalisão ou reconhecer a fusão, ou melhor, a inclusão, dos seus membros com o K.P.D., para formar o S.E.D., do qual a A.M.S. era padrasto.

Portanto, na área sob domínio da A.M.S. surgiram renegados dispostos, em nome do S.D.P.D. da zona ocidental, a entrar numa coalisão socialista com o K.P.D.O. resultado foi a divisão oficial do S.D.P.D. em duas partes: a ocidental e a oriental. Pouco depois, os habitantes da zona oriental viam tabuletas de côres brilhantes nas paredes e cêrcas representando o K.P.D. e o S.D.P.D. apertando as mãos, fraternalmente. Os oficiais soviéticos sorriam maliciosos:

– Estendemos nossas mãos e vocês estendem os pés.

Até que ponto Karlshorst havia julgado erradamente a maturidade política dos alemães demostraram as eleições de Berlim, em outubro de 1946. O bastardo político, recém-nascido, em que a A.M.S. pusera grandes esperanças ficou por último dos quatro partidos que concorreram.

Embora o S.E.D. sofresse uma derrota vergonhosa em Berlim, onde os alemães podiam dar livre expansão às suas opiniões, tornou-se poderoso nas províncias da zona soviética, onde se podiam usar todos os métodos. As autoridades de ocupação tinham muitos meios de influenciar as massas, naqueles lugares.

IV

O edifício onde estava instalada a Administração da Indústria situava-se fora da zona militar de Karlshorst, de modo que a influência perniciosa do mundo circundante tinha efeitos óbvios. Em frente ao edifício havia um quiosque de jornais alemães onde muitos oficiais soviéticos, a caminho do trabalho, compravam jornais alemães e periódicos, sob o simples pretexto de "praticar o alemão".

Na Administração havia aulas compulsórias de alemão três vêzes por semana, mas agora os cursos haviam parado, sob qualquer pretexto e havia então uma "folga" inesperada.

Eu estava sentado na minha sala, examinando alguns documentos, quando a porta da sala próxima se abriu e avistei o Capitão Bagdassariam entrar, atirar um maço de jornais na mesa e observar:

– Bem, vamos ver quais são as sensações de hoje!

Seu comentário referia-se ao 'Courier e o Telegraf', jornais publicados nos setores ocidentais de Berlim. Sentando-se à mesa, inclinou-se para a frente e pendeu a cabeça. Um observador casual teria pensado que estava estudando documentos oficiais que exigiam concentração especial. Seu primeiro passo foi abrir o 'Illustriert Rundschau', o supleilustrado semanal do 'Taegliche Rundschau', órgão oficial da A.M.S. em língua alemã, com o Coronel Kirsanov como redator-chefe.

– Então os alemães eram com trator! Excelente! Que arem; comeremos os frutos. (Virando a página, continuou) Ah! então também aramos. (Inclinou-se sobre o jornal, na tentativa de colher os detalhes). Aparentemente o motorista do trator foi retocado, mas parece doente, da mesma forma. Isso é mau para o Coronel Kirsanov!

Ah! então temos bolos enfeitados! Bonitos, gostosos, doces, deliciosos! Esta vez é o Filho do Presidente Roosevelt que está-se regalando com os nossos doces. Seu pai era boa pessoa, mas muito idealista. Doces diretamente de uma fita transportadora: basta abrir a bôca e êles caem dentro!

Êle estava vendo um retrato tirado em Moscou, numa fábrica de doces, durante uma visita feita por um dos filhos do Presidente Roosevelt em janeiro de 1946. Todos nós sabíamos que os produtos da fábrica eram destinados, primàriamente à exportação e, secundariamente, sòmente para as casas "Luxus"*.

* Casas "Luxus": casas comerciais do Estado onde se pode comprar tudo por preços extremamente comeres, além do alcance do povo soviético. Em 1945-7 um tablete de chocolate numa casa Luxus custava 100 rublos, o que equivalia, mais ou menos, a uma semana de trabalho de um operário soviético.

– E quem estiver enjoado de chocolate pode variar com um pedaço de pão, continuou Bagdassarian a filosofar, enquanto virava outra página. Quanto pão! Estão saltando do quadro!

Inclinou-se para contemplar a gravura, com olhos cheios de admiração, mas, repentinamente, sentou-se e exclamou:

– Mas todos murcharam! Qualquer alemão que tenha sido prisioneiro de guerra nosso reconhecerá êsse pão, imediatamente. Como puderam por êsse quadro para os alemães verem?

Ergui-me, entrei na sala e, calmamente, aconselhei-o a conversar consigo mais sossegadamente. Em seguida, inclinei-me e estudei o retrato que havia sido tirado numa padaria de Kiev. No primeiro plano havia uma montanha de pão fresco. Ele tinha razão, apresentavam uma vista familiar: todos os seus lados haviam murchado, o que significava que o interior deveria consistir de massa crua e dura. Quando nossos homens recebiam, na frente de batalha, comida sêca feita com êsse pão, não o podiam quebrar nem mesmo a coronha dos fuzis. Se alguém pode ser enganado pela nossa prodo verão de 1946, o problema deveria ser o primeiro item da paganda de exportação, não o será um cidadão soviético. Temos um sexto sentido para as marotagens da propaganda stalinista.

– Mas aqui estão bons autos, continuou o capitão, lendo o anúncio debaixo da fotografia. Confortáveis limousines ZIS, construidas em série na fábrica "Stálin", em Moscou.

Logo que chegar em casa vou comprar um ZIS. Tenho que economizar muito. Quanto será preciso?

O velho modêlo ZIS custava 29.000 rublos. O novo custa 50.000, dizem. Se eu e minha mulher economizarmos, guardaremos 100 rublos por mês, o que quer dizer 1.200 por ano. 12.000 em dez anos. Portanto, precisamos economizar somente quarenta anos ou mais.

A porta abriu-se e um dos nossos motoristas, Vassily Ivanovich meteu a cabeça. Ao ver que a atmosfera era pacífica atravessou, sem temor, a soleira.

– Bom dia, cumprimentou-nos em alemão.

Em seguida, apertou a mão de cada um, observando, fielmente, a precedência de pôsto.

– Como vai, Camarada Major. Como vai, Camarada Capitão, Como vai, Camarada Tenente continuou, voltando-se para o Tenente Kompaniyez, que estava sentado a outra mesa. Meu patrão ainda não apareceu, de modo que pensei em aquecer-me um pouco nesta sala. Posso ficar aqui?

Até pouco tempo, Vassily fôra soldado. Agora estava desmobilizado e trabalhava como motorista da A.M.S. Tinha plena consciência da sua qualidade de civil e aproveitava-se de todas as oportunidades para cumprimentar os oficiais, com apêrtos de mão, para sentar-se modestamente num canto e, ccasionalmente, tomar parte, respeitosamente, na conversa. Depois de cinco anos de vida de uniforme, durante a qual suas relações com os oficiais se limitavam a continência e breves. "Perfeitamente, Camarada Tenente!", sentia grande prazer em manter simples relações humanas com êles. Sentou-se desajeitadamente na extremidade de uma cadeira, perto da porta.

O Capitão Bagdassarian continuou a ver os jornais. A presença de um estranho impedia-lhe a ocupação favorita de reduzir a obra do Coronel Kirsanov a pedaços. Para nós, oficiais soviéticos na Alemanha, o 'Illustrierte Rundschau' era um jornal divertido. Não somente a gente ria ao lê-lo, como também percebia muita coisa, nas entrelinhas, a respeito de coisas não mencionadas nos jornais soviéticos.

– Ora, até se lembraram de Trotsky! exclamou o capitão, voltando-se para o tenente. Que lhe sugere isso? Revolução permanente?

– Devem ser diferenças táticas de opinião, responde o tenente, com relutância, enterrando-se no seu livro alemão, tentando ignorar o mundo ao redor.

– Sim, é a diferença tática de opinião, meteu-se Vassily Ivanovich. Diz um: Vamos entrar pela frente. Outro diz, Não, por detrás. Um diz, Façamos hoje; o outro diz, Não, amanhã. Isso está no "Curso Rápido", Camarada Capitão.

O motorista apelou para o livro de texto do Partido a fim de dar grande autoridade às suas palavras.

– Não me lembro disso, observou cautelosamente o capitão.

– Também há algo sôbre a tesoura. Lembra-se? É relacionado com a questão camponesa.

– Não me lembro.

– Trotsky, uma vez, teve uma diferenca de opinião com o Camarada Stálin. (Vassily imitou o movimento da tesoura com dois dedos). Um disse que os camponeses deviam ser tos quiados e o outro disse que não era necessário tesoura, os camponeses podiam ser barbeados. E assim discutiram se deviam usar a tesoura ou fazer a barba. Apenas não sei exatamente, quem queria tosquiar e quem queria fazer-lhes a barba.

O capitão fingiu não haver escutado o que Vassily dissera.

– Sim, sem dúvida é a diferença tática de opinião, continuou o motorista. Depois de Nicolau, o trono ficou vazio e todos queriam sentar-se nêle. Dizem que depois que Camarada Lenine morreu, deixou um testamento. Já ouviu falar nisso, Camarada Capitão?

– Não.

– Dizem que há algumas coisas engraçadas nêle. Parece que o Camarada Lenine disse mais ou menos...

O Capitão Bagdassarian já estava se agitando inquieto na cadeira e resolvido a fazer cessar essa conversa perigosa. Na União Soviética corria a história que, no testamento político, Lenine descrevera os dois possíveis sucessores com as seguintes palavras: Trotsky é um malandro esperto; Stálin é um malandro tolo. Murmurava-se que Lenine entregara o testamento à espôsa, Krupskaya, no leito de morte, e que Stálin dele o tirara, à fôrça. Porteriormente, o "verdadeiro amigo e discípulo" mandou Krupskaya seguir o seu "mestre". Segundo a história, o testamento permanece até hoje, no cofre privado de Stálin. Era muito compreensível que o capitão quisesse mudar aquela conversa para outro rumo.

– Olhe, Semion Borisovich, tentou êle afastar o colega do estudo das declinações do alemão, que confusão os jornais estrangeiros fizeram sôbre Zoshchenko! Ele escreveu uma história chamada "As aventuras de um Macaco". Já leu alguma coisa a respeito?

O tenente não ergueu os olhos dos livros, mas, de novo, Vassily Ivanovich falou por êle.

– Não sabe nada a êsse respeito, Capitão perguntou com pretenso espanto.

– Pois você já o leu? indagou o capitão, surpreso por encontrar um motorista comum que conhecesse as últimas novidades na literatura.

– Oh! não, não o li. Apenas ouvi falar. Sabe, Camarada Capitão, nós, motoristas, sabemos tudo. Temos que conduzir todas as espécies de pessoas, até Sokolovsky e o próprio Viacheslav Mikhailovich (Molotov).

– Bem, e que foi que Sokolovsky lhe falou sôbre o macaco? inquiriu o capitão, cèticamente.

Aborrecido com as dúvidas lançadas sobre a qualidade da sua informação, Vassily limpou a garganta e começou:

– Bem... Era uma vez um macaco. Num lugar em Leningrado. Acho que a guerra já havia começado.

Tirando a bolsa de fumo, calmamente começou a fazer um cigarro.

– Permita-me cortar um pedaço do seu jornal, Capitão? Tem melhor gosto em jornal. Subitamente o macaco achou que seria bom viver entre os seres humanos. Queria gozar um pouco das delícias da cultura. Se assim falou, assim fêz: o macaco escapou da jaula e entrou num bonde. Quando entrou no bonde, era um macaco genuino, mas, ao sair, não era nem macaco, nem ser humano- só Deus sabe o que êle era. Depois êle foi a uma casa de banhos. Todos sabem o que acontece numa casa de banho russa. Nada melhorou com o banho, mas voltou cheio de pulgas. Em seguida, teve fome. Foi a um armazém. Andou de um lado para outro e saíu com a mesma fome que entrara.

Vassily fêz uma pausa para tragar, contentemente, o ci garro que fizera com o 'Taegliche Rundschau'.

– Aonde mais êle foi, não sei. Mas terminou por voltar à jaula, bater a porta e encolher-se num canto, tremendo como vara verde. Diz-se que por muito tempo teve um esgotamento nervoso. Como a jaula foi arranjada para Zoshchenko, não sei. Acho que êle foi posto na lista de espera, concluiu, com uma observação profunda. Bem, agora preciso ver se o meu chefe já veio.

Pondo o quépi, afundando-o na cabeça, com uma mão, saiu, fechando mansamente a porta atrás.

– Conhece-o bem? perguntou o tenente Kompaniyez, meneando em direção da porta.

– Sim. É um bom rapaz. Apenas fala demais.

– Que pensa dêle? Acha que fala assim, deliberadamente?

– Oh! não. Apenas êles ficam assim, aqui, na Alemanha.

– Não sei. Fico de guarda. Um soldado comum falando sôbre política!

– É melhor fingir que não ouviu. Do contrário terá que informar o Departamento Especial.

– Acho que não era comum antes da guerra. Será que as condições aqui tiveram alguma influência?

Que posso dizer? Agora que a guerra terminou, os soldados têm mais segurança de si mesmos. Afinal de contas, são também heróis e vitoriosos. Você também não se sente assim?

– Sim, é verdade, concordou o tenente, que, depois de ver um dos jornais, exclamou: mas o modo como Kirsanov ataca os Estados Unidos! Fico surpreso com a maneira com que recebem isso. Aproveitamos tôda oportunidade para didicularizá-los e êles não respondem.

– A Comissão de Contrôle proibiu terminantemente crítica dos aliados, observou o capitão.

– Já esteve na Alemanha ocidental? perguntou o tenente.

– Não. Por que?

– Eu era encarregado da remessa do equipamento desmontado de Bremen, e ficava absolutamente atônito. Jornais comunistas em tôdas as cêrcas, com grandes letreiros dizendo "Abaixo a América". E os americanos passavam por perto como se nada houvesse. Mas tente alguém fixar um cartaz na nossa zona, dizendo "Abaixo a U.R.S.S.".

– Mas alguém lê os jornais?

– Parece que eu era o único. Uma ou duas pessoas olhavam-no, por curiosidade. Os comunistas sempre põem jornais nos pontos de parada dos bondes e a gente os lê para evitar o aborrecimento da espera.

– Talvez seja um truque americano. Não podem deixar-se fisgar dêsse jeito.

– Mas, bem considerado, isso não é tão perigoso assim. Esses jornais mais nos prejudicam do que nos ajudam.

– Como chegou a essa conclusão?

– Qualquer pessoa inteligente, do Ocidente, que leia um jornal comunista não pode senão cuspir de desgôsto. Facilmente se vê de onde vem o dinheiro da propaganda. Os capitalistas são culpados se faz frio, os capitalistas são culpados se faz calor e tudo na U.R.S. é super...la.tiva...mente bom!

– Entretanto, a imprensa é muito importante. Veja êstes dois jornais, disse o capitão, batendo a mão na pilha de jornais. Aqui está o 'Courier e o Rundschau'. Sabemos muito bem como é feito, e o que está por detrás, não é? Quando se lê o 'Courier', não há novidades, tudo está morto. Há uma greve num lugar, alguém foi assassinado, uma atriz está trabalhando num teatro e, quando a gente lê, tem a sensação de que o mundo está podre. A vida corre direito, mas nada acontece.

– Isso por que você não está acostumado, comentou o tenente. Lembra-se de 1933? Pessoas caiam mortas de fome, pelas ruas, mas os jornais nada continham, senão alegria e bênçãos. No Ocidente, é o contrário: vivem muito bem, todos estão satisfeitos, mas os jornais estão cheios de pânico.

– Sim, talvez tenha razão, respondeu o capitão, vagarosamente. Entretanto... veja o 'Rundschau'. Uma longa exhortação! Hoje não se pode dizer que os alemães vivam. Num momento assim, êles podem atender ao chamado. Os famintos vão para onde as promessas são maiores.

– Que esperava você? É uma hábil política: primeiro extorquir do homem tudo que tem e, depois, conquistá-lo com um bôlo. Um homem de barriga cheia não daria atenção.

– O apêlo é uma grande fôrça, remoeu o capitão, mas, hoje, não há nenhum traço disso no nosso país... Já estamos no segundo turno.

Ouviu-se uma batida na porta e um homem, de rosto magro, vestido de capa verde, chapéu numa das mãos, abriu e olhou.

– Bom dia, Herr Capitão, disse, em tom submisso, cur vando-se bastante.

– Espere um pouco, retorquiu o capitão, acenando-lhe, negligentemente.

O homem recuou e desapareceu.

O Capitão Bagdassarian, apressadamente, recolheu os jornais e meteu-os numa gaveta, para, em seguida, tirar alguns processos e documentos.

– Esse sunino diz que é comunista. De qualquer forma, é melhor guardar os jornais, murmurou meio para si próprio.

Em seguida gritou:

– Herr Meyr! Entre.


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