I
A fábrica de automóveis, B.M.W., em Eisenach, foi uma das maiores indústrias, na zona soviética, a receber autorização da A.M.S. para recomeçar a produção e, imediatamente, começou a funcionar, à alta pressão, produzindo carros para pagamento de indenização e para as necessidades internas da A.M.S. O novo parque de carros, em Karlshorst, consistia, exclusivamente, de máquinas B.M.W. Além disso, fôram fornecidas motocicletas pesadas às fôrças de ocupação soviética.
A Conferência de Potsdam havia estabelecido inúmeras decisões relativas à desmilitarização da Alemanha e, com a participação ativa do General Shabalin, a Comissão de Contrôle Aliada baixou regulamentos proibindo, rigorosamente, a produção de qualquer espécie de material de guerra, ou similar. Enquanto isso, o mesmo General Shabalin ordenava à fábrica B.M.W. a entrega de motocicletas militares, mas naturalmente, motocicletas são artigos de menor importânca.
Os representantes da B.M.W., em Eisenach, conseguiram fazer um acordo com a A.M.S., em Karlshorst, desusadamente rápido; outras firmas, que ofereciam seus produtos por conta de reparação, ficavam detidas no lugar, dias e semanas, antes de conseguir resposta satisfatória. Mas o pessoal da B.M.W. era mais engenhoso nos métodos.
Poucos dias depois que Shabalin assinou a autorização para o reinicio das operações da firma, ao olhar sua correspondência matutina, notei, entre outras coisas uma fatura da B.M.W., na importância de 7.400 marcos, debitada a Shablin, e relativa ao pagamento de um carro que fôra "entregue por nosso representante". A fatura está carimbada "liquidada". Lancei a Kuznetsov um olhar interrogativo, mas êle fingiu nada saber sôbre o assunto.
No dia dia seguinte, quando atravessava o pátio da casa onde Shabalin tinha o seu apartamento, vi Hisha à porta da garage, polindo um carro novinho em folha, tão novo que ainda não estava registrado, brilhando esplendorosamente na garage escura.
– De quem é êsse carro? perguntei, surpreso, sabendo que o general não possuia carro assim.
– Ah! O senhor verá! respondeu Misha, evasivamente, bem ao contrário do seu modo gárrulo habitual.
Ao observar a marca da firma B.M.W., no radiador, compreendi o que se passara. A direção havia feito ao general um "presentinho". Os 7.400 marcos eram preço de compra fictício, e o general havia ordenado ao ajudante e ao motorista que calassem a bôca.
Já durante o avanço na Alemanha, o General Shabalin havia "organizado" dois carros e, com o auxílio de Misha, enviado-os para sua casa, juntamente com três caminhões carregados de "troféus". Em Berlim, usava sòmente os dois carros de serviço, à sua disposição, nunca fazendo viagem com o seu novo B.M.W. Logo depois, Misha despachou o B.M.W., também para a Rússia, juntamente com mais dois caminhões, naturalmente por conta da reconstrução ou reparações, mas estritamente privado, ao enderêço da casa do general. Portanto, agora possuia êle três carros particulares e dois de serviço. Ele explorava as máquinas se serviço, poupando as suas, mantendo-as, vergonhosamente, paradas. Sob êste aspecto o general era tão pão duro como um usurário.
A princípio, não me ocorreu obter um carro, mas, posteriormente, ao ver os outros adaptando-se às condições locais, pensei que a idéia não era má. Era bastante fácil comprar um, mas muito mais difícil obter permissão "para possuir um carro particular", que era concedida pelo chefe do Departamento de Administração da A.M.S., o General Dimidov. Como êste fôsse subordinado, quanto ao pôsto, ao General Shabadin, resolvi, primeiro, sondar meu chefe. Se concordasse, tudo que teria a fazer era telefonar a Demidov e o assunto estaria resolvido. Fiz o pedido, por escrito, deixando-o diante do general, ao apresentar o meu relatório de encerramento de serviço.
– Am... Para que quer um carro particular? perguntou o ditador da economia da Alemanha, esfregando o nariz com o nó do dedo, como de hábito.
Os chefes soviéticos são muito cautelosos em conceder aos outros os privilégios de que gozam. Mesmo se um americano, mesmo se o próprio General Draper fizesse, pessoalmente, o pedido a Shabalin, sua resposta teria sido "Não há necessidade de carro".
– Espere um pouco mais. No momento não tenho tempo para resolver isso, disse, ao devolver-me o pedido.
Eu sabia que, cada vez mais, seria fácil conseguir a ordem de requisição, mas também sabia que nenhuma situação é insolúvel; o pior que poderia suceder era não encontrar a solução. "Deve-se uivar com os lobos" é um dos principais mandamentos da vida soviética. Eu estava possuido da forte suspeita que a recusa do general era resultado da sua cautela, pois não desejava correr o risco de ser acusado de falta de vigilância bolchevique, permitindo que os seus subordinados se acostumassem com "brinquedos capitalistas". Pode ser que tivesse essa mesma impressão quando "organizou" os próprios troféus, mas os resquícios, não comunistas, do desejo do ganho pessoal vencera o seu mêdo. Resolvi atacar a questão por ângulo diferente.
– Dá-me permissão para dirigir-me ao General Demidov, Camarada General? perguntei em tom casual.
– Por que não? Claro que a tem, respondeu prontamente.
Minha presunção estava confirmada. O general não estava disposto a dar a sua assinatura, mas não objetava que outro assumisse a responsabilidade.
O General Demidov sabia muito bem que eu era um dos membros do pessoal do General Shabalin. Dirigindo-me a êle, poderia explorar o elemento surpresa. No outro dia, com ar de confiança, coloquei meu pedido sôbre a mesa do chefe do Departamento de Administração.
– Com a permissão do General Shabalin, disse, enquanto fazia continência.
Demidov leu o pedido, supondo que já tivesse sido sancionado por Shabalin. Nessas circunstâncias, uma recusa pareceria oposição a uma ordem superior.
– Mas não basta um de quatro cilindros? indagou, franzindo os sobrolhos, ao examinar os documentos do carro. Seis cilindros são proibidos para carros particulares individuais.
Demidov era muito conhecido pela capacidade de regatear, o dia inteiro, com o maior fervor, sôbre dez litros de gasolina, embora tivesse milhares de toneladas em estoque. A fim de conseguir os dois cilindros extra-legais, convidei-o, animadamente:
– Então, queira telefonar ao General Shaablin, Camarada General.
Eu sabia que Demidov não faria uma tolice dessas e, de qualquer modo, Shabalin saira, estando incomunicável.
– Muito bem! suspirou êle, como se estivesse cometendo um crime. Já que Shabalin saira, estando incomunicável.
– Muito bem! suspirou êle, como se estivesse cometendo um crime. Já que Shabalin concordou...
Assinou o pedido, carimbou-o e devolveu-me, com estas palavras:
– Mas não vá quebrar o pescoço.
Foi de fato um grande triunfo. Mais tarde, muitos oficiais perderam mêses tentando obter permissão para possuir carro particular, mas tiveram que continuar a utilizar-se dos bondes.
Logo que chegara, fui avisado para, quando ir a pé a Karlshorst, ter cuidado em atravessar as ruas, olhando em tôdas as direções. De fato, havia mais acidentes de tráfego, em Karlshorst, do que no resto de Berlim. O regulamento normal do tráfego fôra modificado, até certo ponto, pelos próprios motoristas, ou melhor, pelos homens na direção. O caminhões sempre tinham prioridade, em virtude da tonelagem. A lógica era muito simples e ditada pela própria vida: o que ia sofrer mais prejuizos, com a colisão, deveria afastar-se. Não era atoa que Karlshorst era denominada o "Cremlin de Berlim". As regras do jogo eram as mesmas.
Entretanto, os carros dos generais introduziam uma nota de controvérsia nêste "regulamento de tráfego", e, frequentemente, o conflito entre a tonelagem e o prestígio terminava com radiadores amassados. Depois o vidro dos faróis esmagados espalhavam-se pelas travessas das ruas e o mais inquisitivo estudava as árvores e cêrcas mais próximas, na tentativa de reconstruir os detalhes do acidente, pelo tronco raspado ou pelos postes torcidos. O meio mais seguro de andar por Karlshorst era um tank.
Os motoristas, geralmente soldados rasos, ficavam verdadeiramente aborrecidos com o fato de os carros dos generais não ostentarem marcas distintivas. Como poderiam saber quem estava sentado no carro: um tenente narigudo ou um general poderoso e importante? Como se vê, havia uma lei não escrita, observada rigorosamente, que ninguém tinha o direito de passar por um carro de general.
Lembro-me de um incidente que ocorreu, uma vez, quando eu ia com o General Shabalin, de Dresden a Berlim. Percorríamos uma estrada estreita, ladeada de macieiras, quando um veloz D.K. W. passou bem à frente do nariz do nosso pesado Admiral. O oficial que o dirigia nem se dignou a olhar para nós. Misha olhou, interrogativamente a Shabalin, sentado ao seu lado. Sem mover a cabeça, o general ordenou, sêcamente:
– Alcance-o e detenha-o!
Geralmente, Misha não tinha permissão para dirigir velozmente, em virtude de o general sofrer de perturbações gástricas; agora, não era preciso dizer duas vêzes. Em antecipação do prazer que iria experimentar, o que era tão raro, acelerou tão violentamente que o general fêz careta.
Sem ao menos suspeitar o destino que o ameaçava, o infeliz motorista do D.K.W. aceitou o desafio: também o acelerou. Depois de alguns minutos de perseguição furiosa, o Admiral passou à frente e começou a bloquear o caminho do rival. A fim de dar à manobra um toque impressionante, o general esticou a cabeça, com o quépi dourado, pela janela e agitou o pulso. O efeito foi terrível: o D.K.W. parou, num salto a trinta metros atrás, permanecendo imóvel, na espectativa dos trovões e dos relâmpagos que iriam nêle recair.
– Major, desça e dê um sôco no nariz dêsse cabeça dura, ordenou o general.
Saí para executar a ordem. Ao lado do D.K.W. estava o tenente, inquieto e nervoso. Em estado de consternação, tentou apresentar desculpas pelo comportamento. Olhei, cautelosamente, para trás e vi o general observando-me, do carro, portanto deixei escapar uma torrente de pragas e insultos sôbre o infeliz oficial. Mas fiquei surpreso ao observar que parecia mais aterrorizado do que deveria estar pelo incidente. Quando eu examinava os seus papéis, olhei para dentro do carro de onde uma jovem alemã olhava-me, com os olhos cheios de lágrimas. Isso explicava o terror do oficial, pois poderia perder a patente, uma vez que era rigorosamente proibido ter-se amizade com moças alemãs. Olhei-o, detidamente, enquanto êle aguardava o golpe de morte, como um pacífice cordeirinho. Dando as costas para o nosso carro, disse, em tom muito diferente:
– Suma o mais depressa que puder!
Ao regressar ao carro, o general recebeu minha face divertida com um olhar irritado e resmungou:
– Por que não lhe arrancou os dentes? E você é oficial combatente!
A fim de apaziguar sua dignidade injuriada, repliquei:
– De fato não era preciso, General. O senhor já lhe havia metido tanto mêdo que suas calças deviam estar cheias.
– Sua língua é muito comprida, Major. Sempre descobre desculpas por contornar minhas ordens, resmungou ainda, acenando a Misha. Continue, mas devagar.
Acostumado como estava às condições do tráfego em Karlshorst e, especialmente depois que, repetidas vêzes, tivera que subir na calçada para evitar um caminhão perseguidor, achava o tráfego das outras partes de Berlim uma experiência estranha. Estava fora do meu elemento. Mesmo na rua principal, dirigia-se numa velocidade razoável, e, polidamente, pisava-se nos breques, quando um enorme caminhão americano apontava o focinho numa rua transversal. Um caminhão daquele tamanho, dirigido por um russo, nunca daria caminho nem mesmo para o próprio marechal. Mas o americano tolo ferrava o carro, que hurrava como um elefante e acenava a mão da altura: "avance". Gastando gasolina assim! Não conhecia nada de tráfego e de outras regras: "se fôr o mais forte, em prioridade".
O problema de proteger os cidadãos soviéticos contra a influência corruptora do Ocidente capitalista proporcionou às autoridades soviéticas, na Alemanha, muita dor de cabeça. Tomemos os carros, novamente, como exemplo. Segundo os dogmas soviéticos, carro particular é um luxo burguês. A regra era haver apenas carros de serviços, colocados à disposição daquêles que o Estado considerava dignos de possuí-los, em virtude da posição e do pôsto. As exceções eram poucas e de nenhuma importância, geralmente para fins de propaganda. Mas o tempo da igualdade vulgar e da fraternidade já passara. Agora possuímos o socialismo científico. Quem aprendesse bem a lição há muito já teria o seu carro de serviço.
Mas então surgiu uma luta entre os "resquícios de capitalismo na consciência comunista" e os dogmas soviéticos. A despeito de trinta anos de "reeducação", êsses "resquíscios capitalistas" demonstraram sua tenacidade extraordinária e, quando transferidos a outras condições, floresciam, de novo, em tôda a sua beleza.
Em 1945, qualquer oficial, de major para cima, poderia aventurar-se a pedir permissão para ter um carro particular. De maio de 1946 ein diante, sòmente coronéis ou pôsto superior tinham permissão para comprar e isso, pràticamente, tornou-se proibição a todos os oficiais. Os alemães podiam vir a Karlshorst visitar a gente, de carro, mas os oficiais soviéticos, frequentemente, tinham que usar os bondes para visitá-los.
– Deixei o carro na esquina, era a fórmula usual, nêsses casos.
Os dias dourados de 1945, quando a fronteira ocidental soviética não existia, na prática, agora eram parte do passado legendário. A maioria dos campeãos da propriedade privada, que haviam alimentado a esperança de exibir os seus "carros particulares" nas cidades natais, e viajar de Berlim até lá, através da Polônia, viram ruir os seus sonhos secretos: ao chegar à fronteira soviética eram obrigados a deixar atrás os carros e conduzir as malas pesadas até o trem. O impôsto de importação excedia, em grande escala, o preço de compra. Poderia ter custado 5.000 marcos, equivalente a 2.500 rublos, mas as autoridades alfandegárias fixavam o impôsto segundo o preço de venda da máquina soviética correspondente, isto é, entre 10.000 e 12.000 rublos e mais a taxa de 100 a 120 por cento sôbre o preço de compra hipotético. Era claro que ninguém possuia tal enorme soma nos bolsos.
Os companheiros de trem, consolavam, o pecador, dessa forma levado de volta:
– Não se aborreça, Vania. É melhor assim. Evita complicações futuras. Pense bem. Suponha que você chegue em Moscou. Antes de ousar registrar o carro, tem que construir uma garage de tijolo ou pedra e você mesmo terá que morar numa casa de madeira, com acomodação de nove metros quadrados por pessoa. E nunca conseguirá licença para comprar gasolina e comprá-la no mercado negro significa bancarrota ou cadeia.
Um indivíduo, sem dúvida bastante experimentado, esticou a cabeça do beliche superior e tentou lançar um pouco de bálsamo na alta do proprietário do carro:
– Agradeça as estrêlas por ter sorte de escapar disso facilmente. Na minha cidade havia um capitão desmobilizado, que trouxe um maravilhoso Mercedes da Alemanha. E que aconteceu? Possivelmente estará com os nervos arruinados para o resto da vida. Era um homem comum como você, como eu, e não um presidente distrital soviético, não um operário ativo. Súbito, esse homem comum começa a dirigir um automóvel elegante. Todos os líderes locais sentiram-se espicaçados, e puseram-se a pensar num meio de tirar-lhe o carro. E isso sucedeu! Num lugar do distrito, um trem apanhou uma vaca e êle foi acusado pelo promotor público:
– Por que matou a vaca? perguntaram-lhe.
Uma ponte caíu de velhice e ele foi de novo chamado ao tribunal:
– Por que derrubou a ponte?
Sempre que acontecia qualquer coisa no distrito, era acusado:
– Que fêz com o auto?
Finalmente, esta comédia começou a afetá-lo, de modo que resolveu vender o carro, mas isso não foi fácil, pois ninguém queria comprá-lo. Depois de muita encrenca e aborrecimento, conseguiu trocar, com o chefe da Estação de Máquinas e Tratores, local, o carro por uma vitela e alguns sacos de trigo da próxima colheita. Mas logo a Comissão Central do Partido baixou um regulamento relativo à "Malbaratação da Propriedade das Fazendas Coletivas e das Estações de Máquinas e Tratores". O chefe da Estação de Tratores foi preso pelos pecados passados e o capitão não ousou dizer uma palavra sôbre a vitela e o trigo prometido. Está vendo onde termina êsse jôgo? Claro que teria sido mais prudente vender o carro e embebedar-se, mas a gente não pode prever tudo.
Depois dessa história o dono do carro sentia-se mais aliviado e começava a achar que fôra mais prudente deixá-lo na fronteira. Até mesmo começava a discutir que, nas condições socialistas, a não existência de carros era uma vantagem.
– Sim, tem razão, observava. É uma dor de cabeça desnecessária. Na Alemanha, quando o carro encrenca, mesmo numa estrada, basta dar um assobio e um alemão salta do mato mais próximo e o arranja. Mas na Rússia a gente pode ter um desarranjo no meio de uma cidade e a situação seria a mesma que a de um Robison Crusoe.
Quando chegou em casa, aquêle homem sentia-se feliz por ter-se livrado de um fardo e de novo era um membro da sociedade soviética.
II
– Êste fumo só serve para encher colchão, exclamou o capitão, de capote descorado e quépi caido para trás, atirando fora a Mistura Seis do cigarro "ersatz" alemão, meio fumado, e esmagando-o, com desprêzo, na areia solta. Um grupo de oficiais estava sentado ao pé do obelisco de cinco metros de altura, apressadamente rebocado e pintado de tinta vermelha, que se erguia fora do edifício da A.M.S. A base do obelisco tinha a forma de uma estrêla de cinco pontas e era feita de tábuas pintadas, o centro cheio de areia. Os oficiais aqueciam-se aos raios do sol de outono. Na Alemanha, o sol é alegre e, aparentemente, habituado às ordens. Nunca obriga a gente a procurar a sombra, apenas aquecendo agradável e afávelmente.
Os oficiais acomodavam-se ali, enquanto aguardavam a chamada. Os anos de guerra lhes haviam ensinado a nunca apressar-se sem necessidade e a encurtar o tempo de espera com cigarros e conversas filosóficas.
– Graças a Deus que a guerra terminou, disse um jovem tenente de artilharia, sonhadoramente. A gente não pensa muito naqueles dias, mas hoje a gente está vivo, amanhã está no Departamento de Terra ou no Departamento de Saúde – que importa? Apenas quando se recebe uma carta da mãe é que ocorre ter cuidado, para não aborrecer os velhos.
O General Bersarin tinha o hábito de sair a passeio, de motocicleta, de manhã. De camisa de esporte, mangas curtas, sem paletó e sem chapéu, dirigiu-se de poderoso motocicleta alemão, para a artéria principal Alameda Treptow, em direção a Karlshorst. Uma pesada coluna de Studebakers militares vinha, em alta velocidade, pela mesma alameda. Nunca se sabe se o general estava possuido daquele destemor que possuem os motociclistas ou se foi apenas um acidente. De qualquer forma, tentou passar por dois caminhões velozes. O motorista que o pegou, primeiro, praguejou, mas ao ver as insignias de general, sacou da pistola e suicidou-se. Não se sabe onde está enterrado, mas, provàvelmente, jaz mais em paz do que o General Bersarin.
Durante os primeiros dias, após a vitória, fomos, constantemente, lembrados daqueles que haviam conquistado a vitória. Uma ocasião, eu e o Major Dubov resolvemos dar um passeio pelas ruas transversais, não muito distantes de Kurfürstendam, no setor inglês. Era domingo e as ruas estavam desertas. Parecia que estávamos passeando, por alguns momentos, na verdadeira Alemanha, como havíamos imaginado antes da guerra: silenciosa, limpa e ordeira.
As largas ruas estavam ladeadas de árvores. Como arqueólogos, tentávamos descobrir e reconstruir a Berlim de antes da guerra, nas ruinas a nossa volta. Não os "antros dos monstros fascistas" como ela nos fôra apresentada e assim, por nós considerada, durante os últimos anos. Queríamos ver a cidade e o povo que, para muitos de nós eram um verdadeiro símbolo de cultura antes de serem dominados pela megalomania.
Chegámos a uma ilhazinha sombreada na intersecção de três ruas. Sob os ramos estendidos dos castanheiros, duas pequenas elevações haviam encontrado abrigo, numa comunhão fraternal, no meio do oceano caótico da cidade enorme. Surpresos com essa vista incomum, aproximamo-nos. No alto havia duas cruzes de vidoeiro, numa das quais estava um capacête alemão e, no outro, um soviético. Um capacête soviético! Ao derredor ferviam as mais desabridas paixões humanas, mas ali... Os vivos deviam seguir o exemplo dos mortos.
Aparentemente, quando cessou a luta de rua, os habitantes das casas vizinhas encontraram os dois corpos, na esquina, e enterraram-nos, da melhor forma que puderam, à sombra dos castanheiros. O respeito aos mortos era mais forte do que o ódio da terra.
Súbito, percebi algo que me causou um sentimento inexplicável e quase doloroso no meu peito. O major também vira. Flores frescas! Nos dois túmulos havia flôres frescas, colocadas por mãos piedosas. Como que obedecendo a uma voz de comando, ambos descobrimo-nos, enquanto nos entreolhávamos. Os olhos do major estavam úmidos e os lábios cercaram-se de rusgas. Tirando o lenço, enxugou as sobrancelhas, repentinamente cobertas de suor.
– Nosso primeiro pensamento foi revolver os cemitérios da Alemanha, disse em voz grossa. Maldita guerra e quem a inventou, acrescentou rápido, depois de um momento.
Uma velhinha, conduzindo uma criança, não muito longe de nós, parou para olhar, inquiridoramente, aos oficiais russos, raros visitantes a essa parte da cidade.
– Quem pôs as flores nos túmulos? perguntou o major, com voz sêca e fria, como se estivesse dando uma ordem de combate.
Ela indicou uma casa e nós subimos os degraus semi-arruinados. A velhinha que abriu a porta afastou-se, alarmada, ao ver as faixas vermelhas nos nossos quépis. Um corredor escuro, uma casa abandonada, sem nenhum confôrto habitual visível, e, sem dúvida, sem vários dos antigos habitantes.
O major acenou a mão para acalmá-la:
– Vimos as flôres no túmulo. Foi quem as colocou lá?
A mulher ainda não se recompusera do susto e não tinha a menor idéia do objetivo da pergunta, portanto respondeu com irresolução:
– Sim... Pensei...
Nervosamente, torcia as mãos debaixo do avental.
O major tirou sua carteira e virou todo o dinheiro que possuia vários milhares de marcos sôbre a mesa, sem contá-lo.
– Continue a por flôres, falou, acrescentando depois: nos dois túmulos.
Pondo uma fôlha de papel timbrado soviético, com o enderêço da A.M.S., na mesa, escreveu: "Em nome do Exército Vermelho ordeno quo todos os soldados e oficiais dêem a Senhora... todo auxílio e apoio possível".
Em seguida, assinando-o entregou a mulher atônita:
– Se tiver alguma coisa com os russos, êste papel a auxiliará. Diga-me, tem marido ou filho? perguntou, olhando em volta do aposento vazio, como se tivesse pensado em outra coisa a mais.
– Meu marido e um filho morreram na frente de combate. Meu segundo filho é prisioneiro de guerra, respondeu ela.
– Onde? indagou êle, brevemente.
Depois de hesitar um pouco, ela murmurou:
– Na Rússia.
Êle olhou o cartão postal de prisioneiro de guerra, que ela lhe estendia e anotou o nome e o número do correio do campo de prisioneiros.
– Vou escrever ao comandante do campo e às altas autoridades. Intercederei para conseguir liberdade mais depressa, falou, voltando-se para mim.
Eu conhecera o Major Dubow quando ainda estava na frente de batalha. Fôra chefe do Departamento de Reconhecimento do Estado Maior divisional e sua função era encaminhar os prisioneiros. Quando via o emblema S.S. no quépi do soldado, sabia que o homem tinha dezenas de vidas humanas na consciência e não hesitava em enviá-lo para um grupo especial à retaguarda, embora soubesse que suas vidas terminariam logo depois da primeira volta da estrada.
Na rua, os pombos saltitavam pelo pavimento e, polida mente, afastavam-se para deixar-nos passar, como iguais para iguais. O belo sol de setembro caía sobre as faias e os castanheiros de Berlim e as fôlhas agitavam-se calmamente. A vida continuava. A vida é mais forte do que a morte. E a vida é particularmente boa quando não há ódio no coração, quando um homem sente-se atraido a fazer bem aos outros homens, vivos cu mortos.
III
Nos primeiros mêses de trabalho em Karlshorst não estive muito interessado no mundo que me cercava. Tinha que trabalhar bastante e saía de Karlshorst sòmente a serviço. Esquecia a existência da folhinha, à minha mesa e, quando dela me lembrava, era para tirar uma semana, de uma só vez.
No domingo, acordei com o som do despertador e saltei da cama, como habitualmente. As flôres e as árvores do jardim estavam brilhantes através da janela aberta e, por entre as fôlhas verdes, exibiam-se ameixas avermelhadas. O sol matinal penetrava quarto a dentro, brincando, alegremente, nas paredes. A paz calma e inviolável da manhã de domingo enchia tôda a minha casinha. O repicar dos sinos da igreja vizinha esvaia-se pelo ar. O claro ar matinal penetrava no meu quarto, refrescando-me a pele aquecida e refrescando-me o corpo. Sentia necessidade de fazer alguma coisa. Pus-me a andar, sem destino, de um quarto ao outro. Hoje o dia era devotado inteiramente a minha pessoa. Que faria com êle?
Súbito, fui dominado por uma sensação estranha: por que tanta pressa para atingir o que? A gente vai tecendo a vida tôda, sem parar para pensar um pouco. Mas, quando para, a fim de pensar, então surpreende-se por que se está sempre apressado. A maioria dos homens percebe sòmente quando já é muito tarde.
Recentemente eu obtivera um panfleto de propaganda alemã "Na terra do próprio Deus", satirizando os Estados Unidos e os americanos. Era particularmente sarcástico sôbre o modo de vida dos americanos e da sua eterna procura do dólar, do sucesso. "Seu sucesso está logo ali na esquina". O americano corria, a tôda velocidade, para a esquina, na esperança de sucesso, mas encontrava apenas um vácuo. Por outro lado, havia muitas outras esquinas. E assim a vida inteira.
Saimos de Karlshorst pouco antes do meio-dia e pegámos o bonde para o centro da cidade.
O Reichstag. Antes, nós, russos, considerávamos êste pré dio macisso que se erguia contra o fundo do Portão de Brandenburgo como símbolo do Reich de Hitler. "Ao povo alemão" estava inscrito em letras douradas acima da entrada dessa imponente massa cinzenta. Hoje essas palavras apenas podiam parecer um sorriso malicioso aos alemães. As janelas estavam cobertas de pedras, com buracos de permeio; vestígios esfumaçados de fogo havia em tôdas as paredes. Dentro, grandes amontoados de pedras, poças de água verde fétida; o céu azul era visto pelo teto destruido. O vento arrastava pedaços de papel timbrado de águias negras. Pentes semi-usados de metralhadoras, caixas de balas de fusis, máscaras de gás.
Nas paredes, inscrições inumeráveis: "Ivan Sidorchuk, de Kuchevka, 14-5-1945". "Simon Vaillant. Paris, 5-7-1945". "John D. Willis, Chicago, 23-7-1945". A gente não podia imaginar como o escritor havia conseguido atingir o ponto inacessível onde estava o seu nome, a fim de deixar a sua marca eterna na história. As inscrições estavam escritas a carvão, cinza, lapis, giz. Uma inscrição, feita à ponta de baioneta, por um dos defensores do Reichstag lançava o último grito de um homem agonizante: "Heil Hitler"! "Na parede em frente, feitas cuidadosamente a óleo, estavam as palavras "O sargento Kostya de Odessa fêz isto de privada".
De fato, a atmosfera do lugar fazia recordar certos versos do mundialmente famoso poema de Heine "A Alemanha". Evidentemente o Reichstag estava sendo usado por inúmeras pessoas como um lavatório público, naqueles dias. Era, certamente, um monumento histórico instrutivo!
Entre o Reichstag e o Portão de Brandenburgo, entre as ruinas de glórias passadas, nova vida surgia. Ali era o local do mercado negro internacional. Olhando em tôrno, ansiosa e surrepticiosamente, alemães vendiam guarda-chuvas, sapatos, roupas velhas. Os russos geralmente se interessavam por relógios e ofereciam cigarros, pão e notas de ocupação em pagamento. Um jipe americano surgiu não muito longe de nós. Sem descer, os soldados negros, que nêle estavam, começaram uma transação ativa: chocolate, cigarros, sabonete. Esvasiaram os embornais, rindo, olhando em volta. Um dêles avistou-nos e murmurou algo aos companheiros. Em seguida, voltou-se em nossa direção, com gestos vivos, aparentemente convidando-me a comprar alguma coisa.
– Que? perguntei.
Retirando um enorme Colt militar, debaixo do banco, ergueu dois dedos: dois mil. Sacudi a cabeça. Então êle apontou a pistola, que pendia do meu cinto e perguntou o preço. Para a evidente surpresa dos aliados, expliquei que não estava à venda.
– Que está vendendo, então? perguntou o negro, em tom comercial.
– Nada.
– Então, o que está comprando? quer comprar um jipe?
Bateu no assento do carro e eu apenas ri.
Surgiu uma patrulha militar: dois soldados, de faixa vermelha no braço, com automáticas. Não muito longe, um velhinho estava vendendo jornais. Nos pés, trazia sapatos enormes, de modo que se movia com dificuldade, quer por causa da fraqueza, quer por causa daqueles sapatos. Quando a patrulha se aproximou dêle, estendeu a mão, em súplica, dizendo por entre os lábios ressequidos:
– Camarada, papyros (cigarro).
Um dos soldados, que, evidentemente pensou que êle começava a causar complicações, pegou o velhinho pelo colarinho e empurrou-o, mas errou ao calcular o poder de resistência seu. O pedinte esticou-se no solo, como um saco, deixando escapar os enormes sapatos, enquanto os jornais se espalhavam pelas pedras do calçamento.
Antes que Belyavsky pudesse abrir a bôca para repreender o soldado, o homem já havia apanhado o velho, de novo, pelo colarinho e o erguia, para pô-lo de pé. Era rude, mas não havia malícia nas suas maneiras; antes era uma mistura de desgosto e aborrecimento. Não havia esperado que o empurrão tivesse tal efeito. O velhinho ficou dependurado em seus braços, como um saco, sem fôrças para permanecer de pé.
– Solte-o! Vamos embora! disse o segundo patrulha.
– Espere! Seu Fritz sanguinária! gritou o soldado, rudemente, tentando ocultar o próprio embaraço. Fome, Fritz?
O velho caira no calçamento, novamente e o soldado em purrou-o com o pé. Debalde, porque o mendigo não respondeu.
– Vai morrer, de qualquer forma, resmungou o guarda e olhou em tôrno como que procurando algo.
Uma russa, em uniforme de sargento, apareceu, carregando uma sacola, contendo vários maços de cigarros, embrulhados em pano. Debaixo do braço havia um pão, também destinado à venda.
O patrulha apreendeu o pão, dizendo:
– Não sabe que é proibido negociar, aqui?
A moça desapareceu na multidão, aterrorizada, deixando o pão na mão do soldado que se voltou ao velho, ainda deitado na calçada. Em volta havia uma porção de pessoas que haviam recolhido os jornais e os empilharam debaixo dêle.
– Olhe aqui, Fritz!
O soldado entregou-lhe o pão, mas o homem apenas pestanejou, como que cego. O patrulheiro praguejou, de novo, meteu o pão dentro do saco de jornais, amarrado à cintura do homem e afastou-se.
Estávamos espantados com a multidão de velhos e mulheres nos bondes e nas ruas. Estavam nitidarnente vestidos, os transeuntes tratavam-nos com respeito, cedendo-lhes os lugares, nos carros, auxiliando-os a atravessar a rua.
– Ah! essas mulheres! suspirou Belyavsky, ao notar duas velhas, vestidas de preto e golas brancas, saindo de um bonde. Na Rússia há muito que teriam entregue a alma a Deus. Por causa da seleção natural.
O que estávamos presenciando não era novidade para nós. Sabíamos que o homem deve demonstrar respeito aos velhos. Não somente o sabíamos, mas também sentíamos necessidade de comportarmo-nos da mesma forma. E, contudo, nada mais podíamos fazer senão admitir que havíamos nos tornado rudes, havíamos esquecido as regras de cortesia e obrigações nas relações com os outros. A existência forma a consciência, proclama o materialismo dialético. A existência soviética transformou os velhos num pêso e fêz os correspon dentes ajustes dialéticos em nossas consciências.
Posteriormente, quando ficamos conhecendo as condições da Alemanha, mais intimamente, soubemos que o seguro social alemão, embora parecesse pouco, sempre assegurava um mínimo na forma de pensão e pagamento, permitindo que os velhos terminassem os dias em condições humanas. Na União Soviética, as pensões-velhice são um conceito completamente fictício. Na prática, um homem pode viver sòmente se trabalhar ou se os seus filhos o sustentam. E quem pode esperar sustento dos filhos, quando êles próprios nada possuem?
Vimos muitos soldados soviéticos, convalescentes dos hos pitais berlinenses, perambulando por ali. Muitos estavam interessados em atividades especulativas, alguns não hesitavam em roubar em plena luz do dia. Um homem roubou algo e fugiu para as ruinas, enquanto os seus companheiros usavam as muletas e bengalas para cobrir a retirada. Os feridos de guerra eram rancorosos e irritados, sendo que muitos estavam dispostos a lutar. Os alemães os temiam como a praga, e mesmo os russos se afastavam dêles, se possível.
O mesmo que disse a respeito dos seguros-velhice, na Rússia, aplica-se à pensão de guerra. São demasiadas para a morte e pouquissimas para a vida; contudo, devemos mostrar nossa gratidão. "Nossa felicidade é tão vasta que ninguém a pode descrever" diz uma de nossas canções. Na Alemanha conquistada, os feridos de uma guerra perdida recebiam pensões mais elevadas do que os do país vitorioso. É paradoxal, mas verdadeiro.
Voltámos a Karlshorst, tarde da noite, cansados e empoeirados. Nos dias seguintes, encontrei-me com Belyavsky e Valia. Ele fôra designado para um pôsto na Diretoria da Fôrça Aérea da Comissão de Contrôle, enquanto ela trabalhava no gabinete particular do Marechal Zhukov, comandante-chefe da A.M.S. Ambos estavam satisfeitíssimos por poderem continuar na capital e não serem removidos para a província.
Em Moscou eu conhecera Valia sòmente como uma colega, mas aqui, distante do círculo de amigos íntimos, repen tinamente ela se me tornara cara e preciosa, como parte daquilo por que eu ansiava, como parte de Moscou e de tudo que ela me significava. Encontrei em Valia uma qualidade fora do comum que me fez considerar em alta estima a sua amizade era uma genuina filha da natureza, imaculada da sujeira da vida. Dizia o que pensava e agia conforme falara.
Um ou dois domingos depois, Belyavsky e Valia visitaram-me de novo. Quando olhei-o, fiquei bastante surpreso, pois via um jovem muito elegante, trajando roupas civis impecáveis, côr de café claro. Uma gravata luzente e um brilhante completara a transformação. Até então eu o vira apenas em uniforme.
– Para que está assim fantasiado? perguntei, enquanto o examinava sob todos os ângulos.
– Quero ir à ópera, mas Valia não quer. Portanto resolvi confiá-la a você.
– Realmente, Misha, quanto mais o conheço, mais me convenço de que é um finório! Traz-me Valia e agora desaparece. Já viu amigo mais desinteressado, Valia?
Tentei persuadi-lo a vir conosco, de carro, pela cidade, mas ficou irremovível como uma rocha.
– Minhas pernas ainda doem, desde domingo, declarou:
O dia estava desusadamente, ensolarado e quente. Deixámos Belyavsky em Friedrichstrasse e resolvemos dar um passeio fora da cidade. À esquerda e à direita relíquias históricas do passado passavam como peças de museu: Unter den Linden, nome famoso, agora ladeada de ruinas e sem um traço de verde. As árvores do Tiergarten, destruidas pelas granadas e bombas, misturavam-se com as carcassas enferrujadas e inglórias de aeroplanos. A Siegesäule, com o ouro apagado do seu anjo, símbolo das vitórias e das glórias de 1871. Diante de nós estendia-se o vasto e reto Eixo Ocidente-Oriental.
Berlim tinha o seu aspecto próprio. O aspecto da capital do Reich. As pedras de Berlim estão ligadas à história. A Alemanha deu ao mundo dezenas de homens, cujos nomes são preciosos a todos os seres civilizados. As placas das ruas o testemunham: Mozartstrasse, Humboldtstrasse, Kantstrasse.
A nossa frente surgiu o Grünewald.
Demos a volta pelo lago. Tudo estava quieto, quase que deserto. As pedras da estrada estavam ocultas sob um tapête espesso de folhas. À esquerda e à direita, cêrcas cobertas de verde, portões escancarados, casas vazias, abandonadas pelos seus donos. Alguns haviam fugido para o Ocidente, antes do avanço do Exército Vermelho; outros, haviam sido transferidos para outras habitações, na vizinhança, antigos barracões de madeira para trabalhadores estrangeiros. Entrei com o carro pelo portão aberto de uma bela residência. Chifres de veado, que antes haviam adornado o aposento do dono, agora jaziam no caminho pedregulhado; nas escadas da entrada principal, o vento brincava com papéis manchados de chuva.
Abaixo, à beira do lago, havia uma pequena plataforma de ladrilhos quadrados, pontes para pescar e ancoradouro para barcos. Bem perto estava o abrigo de barcos, enferrujado.
Descemos e pusémo-nos a passear pelo jardim. Bem no alto árvores seculares murmuravam, por entre as quais viam-se trincheiras, paredes de concreto, rolos de árame farpado, caixões de munição. Mais acima havia uma casa de telhado vermelho, coberta com as côres outonais de vinha selvagem.
– Vamos dar uma olhadela pela casa, sugeri.
O vento assobiava pelos aposentos. As tábuas do assoalho rangiam aos nossos pés. Por tôda a parte, máscaras de gás, restos de mobília, latas de conservas. Em cima, no andar superior, encontrámos o gabinete do dono. No solo jaziam montes de retratos apagados, no meio dos quais viam-se homens bigodudos de colarinho alto e engomado. Essas pessoas nunca haviam suspeitado que, um dia, as botas de oficiais russos haveriam de pisar nos seus retratos.
– Vamos embora, Grisha, pediu Valia, agarrando-se ao meu braço. Não é bom andar numa casa estranha.
IV
O homem que se liberta da prisão, depois de longo tempo, não se acostuma à liberdade, a princípio; tem mêdo do espaço. Há mesmo um têrmo especial para isso: aerofobia. Também nós havíamos tido essa mesma espécie de sensação, durante os primeiros dias de estada na Alemanha ocupada.
Em 1945, tinhamos liberdade ilimitada, podendo visitar, abertamente, os setores dos nossos aliados ocidentais. Doze mêses depois, possuíamos apenas a lembranças daquêles dias. Mas, durante êsse tempo, todos os clubes dos soldados e oficiais aliados estavam abertos para nós, nos setores ocidentais, sendo nós sempre tratados como hóspedes benvindos. Para nossa vergonha, é preciso admitir que os hóspedes se portavam, às vêzes, de tal maneira que os anfitriões foram obrigados a serem mais prudentes.
Contava-se, frequentemente, em Karlshorst que, um dia, um soldado soviético, a passeio por Berlim, perdeu-se e foi parar, por engano, a um acampamento americano. Os americanos ficaram satisfeitos com a rara visita e receberam com honras o mortalmente aterrorizado Ivan, tirando-lhe a mochila. Que mais pode ter um soldado soviético na mochila a não ser um pedaço de pão preto e algumas ninharias? Então os americanos fizeram Ivan sentar-se à mesa, deram-lhe tanta coisa boa de comer e beber, com que êle nunca pudera sonhar, e persuadiram-no a passar a noite no acampamento. Algumas versões afirmam que até mesmo lhe arranjaram companhia para a noite. No dia seguinte, encheram-lhe a mochila de tôdas as qualidades de doces da pátria e levaram-no até o portão de saída.
Muitos narradores dizem que êle pediu para ser transferido para o exército americano. Todos juram por Deus e por todos os santos, que se encontraram com êsse Ivan bem junto do portão do acampamento americano.
Todos nós ficámos surpresos com o fato de os aliados possuirem melhores equipamentos do que os soldados soviéticos e gozarem de muito mais liberdade pessoal. Nossos oficiais, que trabalham na Comissão de Contrôle, costumavam observar, com um sorriso, que os soldados americanos fumavam os mesmos cigarros que os generais. No Exército Vermelho, soldados, graduados, oficiais e generais recebem várias espécies de fumo ou cigarros conforme o pôsto. Isso em nome da igualdade e da fraternidade geral.
Os primeiros mêses da ocupação foram de grande significado. No meio do cáos da Alemanha arruinada, no meio da Berlim arrasada, na vida do povo que ontem fôra nosso inimigo, víamos coisas que, inicialmente, sòmente nos espantava. Mas depois, começámos a compreender, gradativamente, e nossos pontos de vista transformavam-se, aos poucos.
Tivemos que vencer a inimizade que sentíamos por tudo ligado ao nome de Alemanha. Tivemos que procurar novos padrões de medidas. Mas, enquanto isso, da poeira e das ruinas deixadas pelos longos anos de guerra do regime hitlerista, da guerra total e da rendição incondicional, podemos reconstruir a vida normal dos alemães e da Europa, de um modo geral, apenas com dificuldade.
Os soldados soviéticos ficaram surpresos com os níveis de vida, altos e espantosos do homem ocidental. As palavras pronunciadas por um soldado, quando viu a casa de um operário europeu "Você é um capitalista?" tornou-se proverbial entre nós. Nos anos da ocupação o soldado soviético começou a dar a essas palavras uma aplicação inversa a sua própria vida. Todo cidadão soviético que viu a Europa está perdido para o regime soviético. Continua, como uma peça concertada de um relógio, a realizar a sua função, mas o veneno do reconheci mento da verdade não o deixou sem marca.
Com o decorrer dos anos, as impressões daqueles primeiros dias se apagarão. Tudo parecerá mais comum, as contradições perderão as agudezas, os homens se acostumarão a elas. Os soldados e oficiais combatentes, que formaram o arcabouço das fôrças de ocupação serão substituidos por outros. E quando retornarem a pátria, ser-lhes-á difícil transmitir as impressões da Alemanha com os outros. Quem deseja dez anos por "agitação contra o regime soviético"?
Nosso primeiro encontro com o inimigo dominado abriunos os olhos a muitas coisas e começámos a reconhecer o nosso lugar no mundo. Sentimos a nossa fôrça e a nossa fraqueza. À luz das experiências subsequentes, as impressões dos primeiros mêses de após-guerra são vistas como uma fase distinta da vida das tropas soviéticas de ocupação. Foi uma espécie de período de transição da democracia de após-guerra. Ninguém na União Soviética era mais conscio da vitória do que nós, os homens das fôrças de ocupação. Olhávamos a vitória de frente e banhávamos-nos sua luz.
Simultâneamente, a vitória e o nosso encontro com o Ocidente provocaram velhas dúvidas e engendraram novas. Por sua vez, essas dúvidas fortaleceram o desejo, o anseio e a esperança de algo diferente, de algo diverso do que havíamos conhecido antes da guerra. Aos raios da vitória, vivíamos na esperança de um futuro melhor.
Aquêle curto período de democracia de após-guerra permitiu-nos essa esperança. Sòmente o retrospecto poderá fazer compreender isso.