I
– Vá esperar-me no automóvel, disse-me o general, quando me apresentei a êle, certo dia.
Tinha êle o hábito de não revelar aonde nos dirigíamos. Podíamos ir visitar a Comissão de Contrôle ou podíamos estar-nos dirigindo ao aeródromo para voar a Moscou ou a Paris. Ou achava êle que os subordinados lhe adivinhariam o pensamento, ou faziam segrêdo do itinerário, à moda de personagens proeminentes, a fim evitar atentados contra a sua vida. O seu segrêdo não evitava resmungos pelo fato de os companheiros não fazerem preparativos para a viagem e armar-se com o material necessário ou nem mesmo viajar com êle. Antes da guerra fôra primeiro secretário da Comissão Distrital do Partido, em Sverdlovsk. Durante a guerra foi membro do Conselho de Guerra e comandante da retaguarda do grupo de exército da linha de Volkhov; era os olhos e os ouvidos do Partido na organização do exército. Esses generais do Partido nunca intervinham, diretamente, no planejamento ou execução das operações militares, mas nenhuma ordem era válida antes que as tivessem assinado.
Encontrei o Major Kuznetsov sentado no auto.
– Aonde vamos? perguntei.
– A algum lugar, respondeu o ajudante, indiferente, pois estava acostumado aos modos do general e não se preocupava com o objetivo da viagem.
Pegámos a estrada e dirigimo-nos a Dresden, de onde seguimos para os arredores de Luisenhof, que estava cercada de numerosos automóveis com bandeirolas vermelhas. Nos degraus do hotel havia um grupo de generais, entre os quais se achava o mais de uma vez herói da União Soviética, o General do Exército de Tanks e governador militar da Saxônia, Bogdanov. Os generais eram os vários comandantes militares da Saxônia, e haviam sido chamados a Dresden para apresentar os relatórios ao alto comando da A.M.S. de Dresden e Berlim. A A.M.S. havia recebido uma quantidade de queixas e acusações sobre as atividades dos comandos locais. Como os diversos comandantes militares não haviam recebido quaisquer instruções, após a capitulação, cada um seguia a política que melhor achava. A maioria não possuia educação completa, tendo sido enviado à frente de combate, durante a guerra, motivo pelo qual eram totalmente desqualificados para as tarefas de uma ocupação pacífica.
Antes de o General Shabalin desaparecer com o General Bogdanov numa consulta prévia à conferência, murmurou êle alguma coisa ao ouvido do ajudante. O Major Kuznetsov voltou-se e levou-me consigo:
– Venha ajudar-me a escolher um automóvel, falou-me.
– Que espécie de automóvel? indaguei surpreso.
– Para o general, respondeu brevemente. Verá como se faz.
Com o aspecto de pessoas interessadas objetivamente em modelos de carro, caminhámos pelas fileiras de automoveis, nos quais os comandantes das cidades da Saxônia haviam vindo à conferência. Logo que um comandante assumia as rédeas da cidade, após a rendição, tornando-se, dessa forma, o governante absoluto, sua primeira preocupação era requisitar o melhor carro disponível. Portanto, agora, estávamos vendo uma exibição dos melhores modelos da indústria automobilística alemã, desde o antiquado Maybach às modernas criações da Mercedes-Benz. Os novos proprietários já haviam entrado no hotel, deixando os motoristas, simples soldados, nos automóveis.
O Major Kuznetosov examinou, calmamente, os diversos carros, chutando os pneus, com a ponta do pé, verificando as molas e até mesmo olhando aos velocímetros para ver quantas milhas haviam percorrido. Finalmente a sua escolha caiu num cabriolé Horch.
– De quem é êste carro? perguntou ao soldado que se aninhara, confortàvelmente, por detrás do volante.
– Do Tenente-Coronel Zakharov, respondeu o soldado, num tom que sugeria que o nome era mundialmente famoso.
– Nada mau, decidiu Kuznetsov, percorrendo com os dedos, os botões do painel, examinando, novamente, o carro. Diga ao Tenente-Coronel que deverá mandar êste carro a Karlshorst, ao General Shabalin.
O homem olhou o major, obliquamente, perguntando, sòmente, com desconfiança:
– E quem é o General Shabalin?
– Depois da conferência o seu tenente-coronel ficará sabendo quem é êle, replicou Kuznetsov. E diga-lhe que deve puni-lo por não ter feito continência ao ajudante do General Shabalin.
A pilhagem era organizada estritamente em relação aos postos e méritos. Os soldados rasos adquiriam relógios e artigos pequenos. Os oficiais subalternos, obtinham acórdeãos; os oficiais superiores... A classificação era complicada, mas era rigorosamente observada. Se o destino colocava um tenente de um revólver, de cano duplo, modêlo Dreiringe, não havia esperanças de ficar com êle. Era melhor entregá-lo, voluntàriamente, do que o tirassem dêle. Mais cedo ou mais tarde iria fazer parte das coisas de um major. Mas não ficaria com êle, por muito tempo, a menos que estivesse bem escondido. Êste princípio geral era aplicado, com especial severidade aos carros. Não se podia ocultar um carro.
Os comandantes da Saxônia haviam perdido o senso da proporção, em virtude do exercício dos poderes plenipotenciários locais, e haviam cometido um êrro de tática em expor tal número de carros atraentes aos olhos dos superiores, pagando por isso, ficando com a metade ds carros que estavam estacionados perto do hotel. Quando houve uma segunda conferência, mêses depois, muitos comandantes vieram quase que em carroças. Evidentemente haviam obtido novos carros bons, mas haviam deixado atrás.
Cêrca de trezentos oficiais, de major para cima, reuni ram-se na conferência, inclusive vários generais, os comandantes de Dresden, Leipizig e outras cidades grandes, que também deviam tomar parte na troca de experiências. Os chefes da A.M.S. de Dresden estavam sentados à mesa de presidência, coberta de um pano vermelho. Como representante das autoridades supremas da A. M.S. de Karlshorst, o General Shabalin estava com êles.
O General Bogdanov abriu a conferência declarando que haviam chegado aos ouvidos da A.M.S. certas coisas que sugeriam terem os comandantes uma idéia errônea das suas tarefas. Convidou os oficiais presentes a "trocarem as experiências" e a apresentar os defeitos do trabalho dos comandos para uma crítica impiedosa. Deu a entender que a A.M.S. estava muito mais informada do que pensavam, portanto era melhor discutir os próprios defeitos do que esperar o ataque a A.M.S. Em outras palavras, se alguém se sentisse culpado, deveria expor o maior número de pecados do vizinho a fim de obscurecer os seus.
O primeiro a falar foi um tenente-coronel:
– Claro que há certos defeitos nos comandos, mas são principalmente devidos à falta de direção de cima. Os postos de comando militar ficam entregues aos próprios recursos e isso leva a...
O oficial, que havia iniciado a tarefa de auto-punição começou com muita incerteza, olhando em tôrno, aos companheiros como que em busca de apoio, mas todos estavam com os olhares presos na ponta dos pés. Esperançosamente o General Bogdanov bateu na mesa com o lápis, e o tenente-coronel continuou:
– Muitos comandantes estão perdendo a visão dos seus deveres; alguns foram desmoralizados e se aburguesaram. No que diz respeito à retidão moral dos oficiais soviéticos...
Sentindo que havia voado muito alto, resolveu trazer o problema à terra:
– Por exemplo, o Major Fulano de tal, chefe do pôsto de comando na cidade de X...
– Nada de pseudônimos, interroupeu o General Bogdanov. Todos somos amigos.
– Bem, então, o Major Astafiev, por exemplo, corrigiu-se o tenente-coronel. Desde a sua designação para comandante da cidade de X, é notório que se dissolveu. Um pouco afastado da cidade há um castelo, antes pertencente a um príncipe, que fêz êle de residência... E lá vive êle num estilo que nem mesmo os cortesãos czaristas conheciam. Possui mais empregados que o anterior proprietário. De manhã, quando o Major Astafiev se digna abrir os olhos, não tem a menor idéia de onde se acha, até beber meio balde de suco de pepino em conserva para aclarar a cabeça da bebedeira da noite anterior. Em seguida, como se fosse um verdadeiro nobre, o major estende os pés para uma mulher alemã vestir-lhe a meia esquerda, enquanto outra mulher põe-lhe a outra. Uma terceira espera-o com o roupão de sêda. E não pode nem mesmo vestir as calças sem auxílio de outrem.
Na sala correu uma gargalhada irreprimível. O modo de vida do galante major, sem dúvida, impressionara a conferência.
– Mas essas são ainda as flores, continuou o tenente-coronel. Os frutos ainda virão. O Major Astafiev reduziu a coabitação com as mulheres alemãs a um sistema. Possui uma esquadra especial, cujo único trabalho é varejar o distrito para arranjar-lhe mulheres. Ficam elas presas, durante dias, nas prisões do pôsto do comando até chegarem à cama do major.
Recentemente, após uma das suas orgias habituais, o major sentiu vontade de tomar sopa de peixe. Sem pensar duas vezes, mandou que as comportas do lago do castelo fossem abertas para que os peixes fossem apanhados. De fato, a sua sopa tinha um pouco de peixe, mas toneladas de outros pereceram. Sem dúvida, camaradas e oficiais, êsse comporta mento deve provocar a indignação!
Suas palavras provocaram antes divertimento do que indignação. Cada oficial lembrava-se de incidentes semelhantes, na sua própria experiência e transmitia as suas impressões aos vizinhos.
– O caso do Major Astafiev, terminou o orador, é de interêsse porque é típico. A situação é fundamentalmente a mesma em todos os postos de comando. É nosso dever denunciar essas atividades vergonhosas, chamar à ordens êsses idiotas e fazê-los compreender a existência da legalidade proletária.
O aspecto de diversão desapareceu dos rostos dos oficiais, e, de novo, os olhares estudavam as botas. A menção de responsabilidade e de legalidade havia feito surgir um aspecto desagradável. Os oficiais soviéticos estavam bem a par da lei soviética, que é baseada na educação psicológica da coletividade, e, portanto, frequentemente, recorre ao emprêgo de "bodes expiatórios" que têm que pagar pelos pecados coletivos. Nêsses casos, a lei é aplicada com severidade extrema, para efeitos desuasórios.
A lei soviética volta ao olhar, diante de pecadinhos. Um homem não é preso simplesmente por ter quebrado os dentes de alguém ou uma vidraça. Há assuntos muito mais importantes a considerar como, por exemplo, a prisão por dez anos pelo fato de retirar espigas de milhos dos campos socialistas ou, cinco anos, por furtar um pacote de açúcar socialista de uma fábrica. Os dentes e as vidraças ainda são propriedades privadas, de modo que não merecem a proteção da lei socialista. O resultado é que todo sentimento de legalidade se perdeu, e, se êsse processo vai muito longe, tomam-se passos para descobrir um "bode expiatório". É bastante desagradável ser bode expiatório. Uma pessoa pode exceder-se muito, para, finalmente, descobrir que está em perigo de morte em virtude de ofensa insignificante. Se as altas autoridades da A.M.S. tivessem resolvido pôr em vigor medidas salutares sob o pretexto de auto-crítica inofensiva, a situação deveria ser má. E então alguns comandantes de cidades seriam levados diante de um tribunal militar. Quem seria o bode expiatório? Na sala percebia-se uma sensação de nervosismo e de tensão.
O cálculo do General Bogdanov foi correto. O discurso de abertura do tenente-coronel, que, muito possivelmente havia sido preparado na A. M.S., seguiu-se a uma série de recriminações. Devotadamente os comandantes atiravam lama aos outros, enquanto os secretários taquigrafavam tudo. Finalmente chegou a vez dos generais, e os comandantes de Dresden e de Leipizig acrescentaram seus depoimentos. Era uma vista rara a dos generais, de pé como crianças de grupo, no meio da sala, fazendo confissão dos pecados. E se alguns dêles se referiam às insignias de general e tentavam justificar a conduta, uma voz chegava-lhe, decisivamente, da presidência:
– Nada de falsa modéstia, General. Todos somos amigos.
Isso revelava a mentalidade de uma massa treinada na obediência absoluta. Se vinham ordens superiores para confessar as faltas, todos confessavam os futuros. Os comandantes expunham as suas "deficiências" e juravam que seriam crianças comportadas no futuro, e prestariam atenção ao papai, pois o papai, no Cremlin, sempre tinha razão.
Alguém se ergueu e dirigiu-se à mesa presidente:
– Posso fazer uma pergunta, Camarada General? Não é muito própria, mas gostaria de receber um conselho.
– Bem, pode falar. Que o perturba? indagou Bogdanov, em tom amistoso.
– O meu comando tem agido certo na fronteira checa, começou o orador. Todos os dias uma horda de pessoas nudas atravessam a fronteira da minha área. Mandei metê-lo na prisão, por enquanto, pois não podemos deixá-los correr, pelas ruas, nem tenho roupas com que vesti-los.
– Que quer dizer com "nus"? perguntou o General.
– Nus, respondeu o comandante. Como crianças recénnascidas. É vergonhoso vê-los.
– Não compreendo. De onde vêm essas pessoas nuas?
– São alemães sudetos da Checoeslováquia. Primeiro, os checos tiram-lhes as roupas e depois fazem-nos atravessar as fronteiras, dizendo: "Vocês vieram para cá nus e voltarão nus". Estão sendo transferidos para a Alemanha, segundo o Acôrdo de Potsdam. Para os checos é uma pilhéria, mas, para mim, é uma dor de cabeça. Como posso vesti-los, se os meus próprios homens estão em andrajos?
– Há um banco na minha cidade, acrescentou outro comandante. O diretor do banco e eu examinámos os cofres privados da sala forte. Contém grande quantidade de ouro e diamantes, um verdadeiro monte de valores. Ordenei que tudo fôsse lacrado. Mas que devo fazer com êles?
Era característico que nenhum dos comandantes se queixasse de dificuldades com a população alemã. Não tinham nenhuma prisão, nenhuma atividade divertida a informar, mas os seus próprios homens é que lhes davam trabalho.
– A maquinaria de ocupação deve estar no contrôle das tarefas determinadas pela nossa política de ocupação, dirigiu-se o General Bogdanov à assembléia. Devemos manter o prestígio do exército e do nosso país aos olhos dos povos dos países ocupados. Os postos de comando são os élos mais inferiores nos nossos contactos com a população alemã.
Perguntei ao Major Kuznetsov, porque, pela posição de ajudante, estava familiarizado com o procedimento geral:
– Que acha que acontecerá ao Major Astafiev e outros que foram censurados?
– Nada! respondeu num sorriso. Em pior caso, serão transferidos para outros postos de comandos. Até os bandidos profissionais são necessários. Além disso, êsses canalhas são devotados ao Partido, e muito se perdoa a êsses homens.
Fiquei surpreso ao ouvir o major e o outro oficial expressarem suas opiniões tão francamente, mas essa franqueza era resultado da notável atmosfera existente no Partido e em tôda a União Soviética, depois da guerra. Todos estavam senhores de uma sensação de que haviam conquistado a liberdade, que haviam saido vitoriosos. A sensação era geral, mas muito mais forte naqueles que mantinham contacto com o ocidente e podiam observar os principais contrastes entre os dois mundos.
Durante nossa estada em Dresden, o General Shabalin foi hóspede do General Dubrovsky, chefe da Administracão da Economia da A.M.S. da Saxônia. A habitação de Dubrovsky havia sido, anteriormente, a residência de algum grande comerciante alemão. Possuia um belo jardim e, depois da conferência, eu e o Maior Kuznetsov passeámos por êle, por muito tempo. Enquanto estávamos ali, Misha, o motorista do general, trouxe-nos a ordem de que devíamos ir, imediatamente, à sala do General Dubrovsky.
No dia seguinte dirigímo-nos a Halle, capital da província da Saxônia, onde Shabalin encontrou-se com o seu velho amigo General Kotikov, chefe da Administração da Economia da A.M.S. em Halle. Posteriormente o General Kotikov adquiriu fama mundial como comandante soviético de Berlim. Era um homem agradável, um hóspede interessante.
Em Halle houve conferências semelhantes às de Dresden. Primeiro, um intermezzo com os comandantes da cidade, e, depois, o General Shabalin examinava o funcionamento da nova democracia. O líder alemão local vivera quinze anos na rua Pokrovsky, em Moscou, de modo que eu e êle éramos quase vizinhos. Era mais assíduo na tarefa do que o seu colega de Dresden. O General Shabalin teve que contar o seu ardor, quando apresentou longa lista de medidas a serem tomadas na direção da socialização.
– Assim tão depressa, não! disse Shabalin. É preciso levar em conta os aspectos especiais da economia alemã e o período de transição. Apresente as propostas ao General Kotikov para consideração.
A noite caia, quando nos aproximámos de Berlim. O general ficou impaciente e disse a Misha que, de modo algum, atravessasse o setor americano. Devia encontrar a estrada por Rudow.
Isso foi mais fácil dizer do que fazer. Por onde quer que avançassemos, encontravámo-nos em estradas que iam ter ao setor americano, e, portanto, afinal, por êle teríamos que passar. O general recusou, terminantemente, a seguir o caminho normal pela Potsdamerstrasse, e ordenou a Misha que se desviasse pelos subúrbios do sul até atingir o setor soviético.
Misha apenas sacudiu a cabeça. Viajar por Berlim, à noite, no verão de 1945, e por subúrbios desconhecidos era uma tarefa difícil.
O general estava tentando jogar uma venda em nossos olhos. Não poderia ter tanto receio de um atentado a nossas vidas ou qualquer outro desígnio dessa espécie. Naquela ocasião não havia proibições de os aliados atravessarem os vários setores de Berlim. Não possuímos nenhum documento secreto conosco. Portanto, sem dúvida, até naquela ocasião êle estava dando um blufe ideológico. Nosso carro corria vagarosamente pelas ruas escuras. De vez em quando nossos faróis iluminavam a figura de uma sentinela americana, ou melhor, figuras, pois sempre estavam em dois! O bravo soldado pestanejou irado sob o poderoso clarão, mas a sua companheira dominava o alarme e sorria. Inútil dizer que não tinham a menor suspeita que um general soviético os olhava da escuridão do carro.
Após longas corridas pelas ruinas e blocos dos subúrbios berlinenses, à luz dos faróis nossos vimos uma seta amarela com a inscrição: Karlshorst.
II
A primeira conferência de após-guerra, dos Três Grandes, foi realizada em Potsdam, de 17 de julho a 2 de agosto; ficou na história como a Conferência de Potsdam.
Ao pensar nos Três Grandes na Conferência de Potsdam, inevitávelmente a gente sentia um vazio: o nome familiar do Presidente Roosevelt faltava, pois morrera apenas há poucos dias, antes da vitória, à qual devotara tanta fôrça e energia. Pode-se encontrar consôlo na circunstância de não ter que testemunhar o desmantelamento de suas ilusões, nas quais êle baseara todos os seus planos para uma nova ordem no mundo de após-guerra.
Durante a conferência, Stálin saiu com os representantes supremos dos Aliados Ocidentais numa volta por Berlim. Uma consequência dessa viagem foi uma ordem aos especialistas da Administração do Ar da A.M.S. para que fizessem um relatório ao próprio Stálin dos detalhes dos ataques aliados à cidade. As ruinas de Berlim falavam mais claramente do que as informações dos jornais e das estatísticas de toneladas dos bombardeios. Quando se passava por Berlim e se viam as ruinas infindas, poder-se-ia imaginar que alguém havia destruido a cidade com um igualmente enorme martelo. Uma comparação dos efeitos dos ataques aéreos alemães a Moscou com o estado de Berlim, após os ataques aliados era um pensamento provocativo. Não era por mero interêsse casual que fêz com que Stálin desejasse um relatório especial.
Enquanto os Três Grandes negociavam, a A.M.S. prosseguia no seu trabalho. Uma das primeiras medidas soviéticas que teve influência radical na estrutura interna da economia alemã foi a ordem n.º 124 do Marechal Zhukov, pela qual decretava o confisco da vasta riqueza dos antigos Nacionais Socialistas e, mais adiante, sob a aparência de nenhuma importância, baixou ordens para que se fizessem preparativos para o Estado dirigir as indústrias básicas e planejamento da reforma agrária a ser feita. As autoridades alemãs ainda não estavam acostumados aos métodos soviéticos e não podiam ler pelas entrelinhas. A ordem n.º 124 não continha dados preciosos. Estava cheia de frases demagógicas e conferia poderes compreensivos às autoridades alemãs. O "povo alemão, nas pessoas dos seus "melhores representantes" deveria organizar o plano e apresentá-lo a A.M.S. para consideração e confirmação. Ao mesmo tempo, com a publicação da ordem n.º 124, o General Shabalin recebeu instruções secretas de como pô-la em execução. Essas instruções determinavam a natureza precisa das reformas, cujas formulações ostensivamente foram deixadas às autoridades autônomas alemãs.
Tive mais de uma oportunidade de ver como se realizava o processo de criar uma reforma agrária no gabinete particular do General Shabalin. Um sólido Maybach penetrava pela entrada da Administração, e dêle saía um homem incoior, em trajes civis, com irresolução. Era o "Landrat", por favor da A.M.S. o chefe da administração de um distrito, e um dos "melhores representantes" do povo alemão. Na sala de espera do general ficou de pé, encurvado, o capote no braço, uma pasta de documentos velha sob o cotovelo, o capote no braço, uma pasta de documentos velha sob o cotovelo, o chapéu premido contra a barriga, como se a defendê-lo de um golpe. Com um sorriso apagado, cautelosamente sentou-se numa cadeira e esperou, pacientemente, a audiência.
Afinal foi chamado à sala do general. Um intérprete explicou a Shabalin o plano alemão da reforma agrária no Estado Federal da Saxônia.
– Qual é o limite das propriedades que propõe agora? perguntou o general.
– De cem a duzentas jeiras, conforme o caso individual, Camarada General, respondeu o intérprete, depois de olhar o plano de reforma na mão.
– Idiotas! O terceiro plano e ainda não serve! Diga-lhe que não podemos concordar.
O intérprete traduziu. O "Landrat" apertou a pasta nas mãos, impotentemente, e começou a explicar que o plano proposto havia sido feito para assegurar as maiores vantagens econômicas possíveis da terra em vista das condições do Estado. Tentou explicar as condições específicas da agricultura saxônia e disse que, em virtude das duras condições impostas pela natureza, era absolutamente vital observar uma relação intimamente construtiva entre a criação de gado, florestamento e agricultura. Em seguida argumentou com os aspectos peculiares da agricultura alemã, totalmente mecanizada, mecanização essa baseada nas condições das pequenas propriedades. Expressava o genuino desejo de encontrar a melhor solução para o problema levantado pela ordem n.º124.
Mesmo quando não era absolutamente necessário, que estivesse presente, sempre tentava assistir a discussões dessa espécie. Após uma inspeção mais pormenorizada, a economia alemã, aparentemente sem planejamento, era organicamente tão complexa que proporcionava um estudo muito interessante ao especialista soviético. Era uma peça de mecanismo excecionalmente preciso e complicado, no qual pouco campo havia para experiências. Frequentemente vi os especialistas alemães agitarem as mãos em desespêro, quando o general lhes dava conselhos ou apresentava demandas que teriam sido perfeitamente normais nas condições soviéticas para novo planejamento ou reconstrução. Exclamavam com uma só voz:
– É o mesmo que suicídio!
E assim sucedeu essa vez. O general brincou com o lápis, soltou uma baforada em élos de corrente. Nem mesmo pediu que os argumentos dos alemães lhe fossem traduzidos, pois os considerava barulho sem sentido. Quando achou que já havia concedido muito tempo para o assunto, franziu os sobrolhos e voltou-se ao intérprete:
– Diga-lhe que o plano tem que ser revisto. Devemos cuidar dos interêsses dos camponeses alemães e não dos grandes proprietários.
O general era o exemplo clássico do funcionário soviético que, sendo apenas um órgão executivo automático, é incapaz de considerar o argumento que lhe é apresentado pelo outro lado ou de submetê-lo a uma crítica independente. Contudo, estava decidindo todo o futuro econômico da zona soviética.
O alemão ergueu-se, em consternação. Todos os seus argumentos haviam sido inúteis. O plano da reforma agrária seria submetido a outras revisões até que a proposta alemã "independente" correspondesse, em todos os pormenores, às instruções secretas que o general tinha no cofre.
A reforma agrária não era tanto uma medida econômica, mas sim política. Sua finalidade era a destruição de um dos grupos mais fortes da sociedade alemã, acima de tudo econômicamente, e criar um novo grupo que alimentasse simpatia pelo novo regime. Na fase seguinte, isto é, depois da consolidação do novo regime, o primeiro grupo seria destruido fisicamente, enquanto que o segundo travaria conhecimento com a fórmula tão bem conhecida na União Soviética: "A terra é sua mas os frutos são nossos".
Frequentemente eu tinha simpatia pelos alemães que encontrava no gabinete do General Shabalin. A maioria era comunista. De um modo ou outro, haviam combatido o regime hitlerista, e muitos haviam sofrido pelas convicções suas. Após o colapso alemão receberam-nos alegremente, alguns considerando-nos libertadores, outros, como aliados ideológicos. Muitos vieram ver-nos porque desejavam trabalhar pelo benefício da Alemanha futura. Claro que entre êles havia os inevitáveis oportunistas.
Antes de qualquer alemão receber qualquer cargo, de confiança, a A.M.S. submetia-o a um completo exame de confiança política. Como nos consideravam aliados ideológicos, não hesitavam expressar suas opiniões com franqueza e então via-se, muito claramente, que grande conflito havia entre as convicções e desejos que muitos dêles possuiam e as instruções que recebiam da A.M.S. A A.M.S. exigia executantes silenciosos e não sócios em paridade. Tempo haveria em que êsses homens enfrentariam a escôlha: ou executavam as ordens sem protestos e se tornavam instrumentos passivos, ou abandonavam, deixando lugar para outros.
Além das autoridades oficiais alemãs tínhamos outros visitantes da administração. O Departamento Ciêntifico e Técnico possuia alguns visitantes particularmente interessantes. Antes da Guerra o chefe do departamento, o Coronel Kondakov, havia sido chefe do Departamento das Instituições Superiores Militar-Educacionais, sub-secção da Comissão de Tôda a União dos Negócios das Escolas Superiores. Era um homem idoso e bastante educado, com grande conhecimento da sua tarefa e com muita compreensão humana.
A principal tarefa do Departamento da A.M.S. era a procura de cérebros. Moscou tinha em alta estima as inteligências alemãs. Também, nêsse sentido, tinham os Aliados Ocidentais e, consequentemente, dêsde o primeiro dia da ocupação, desenvolveu-se uma luta acirrada entre os aliados ocidentais e ocidentais. Quando houve a rendição, a Turíngia e grande parte da Saxônia estavam nas mãos dos americanos. Dois mêses depois, segundo os acordos, essa área foi entregue às autoridades soviéticas de ocupação. Nas suas viagens de inspeção, o General Shabalin perguntava até onde os governadores militares haviam executado a ordem da A.M.S. para a procura e registro de especialistas alemães, e ficava indignado e atônito pelo trabalho rápido e completo que os aliados "danados" haviam feito.
Outra circunstância de grande importância foi o fato de que a maioria dos principais cientistas alemães terem fugido para o ocidente, quando o Exército Vermelho avançava, de modo que o Instituto Wilhelm Kaiser, uma das maiores instituições científicas do mundo, e de especial interêsse para Moscou, nada mais útil nos era do que as ruinas do Coliseu.
Para representar uma fôrça em Moscou, a A.M.S. empregava todos os esforços para fazer com que os cientistas de terceira classe, caidos em suas mãos, eram homens da maior importância. Assistentes dos laboratórios da Messerschmitt foram declarados como colaboradores mais achegados. Era o velho método soviético: o plano vinha de cima e de baixo atirava-se areia.
Sob o pretexto de ser um passo necessário para a manutenção da paz, a A.M.S. procurou por tôda a Alemanha, especialistas militares. O seus representantes andavam à caça assídua de construtores de V2, aviões a jacto e tanks pesados. Multidões de inventores de ninharias assaltavam os gabinetes da A.M.S. oferecendo os seus préstimos no aperfeiçoamento de armas mortais.
O assistente do Coronel Kondakov, no Departamento Científico e Técnico era o Major Popov. Um dia, eu e êle discutíamos as últimas realizações técnicas da aviação, com referência particular a Luftwaffe e as Fortalezas Aviadoras Americanas, os B-29.
– Agora nós já os temos, disse casualmente. Lembra-se que os jornais noticiaram em 1943, que várias Fortalezas Voadoras sairam do curso, após um bombardeio no Japão e foram internadas na União Soviética?
– Sim, lembro-me, respondi.
– De fato foi um negócio delicado, comentou. E muito diferente do que os jornais noticiaram. Quando as Fortalezas foram descobertas no nosso território, foi mandado um esquadrão dos mais velozes caças nossos ao seu encontro. Alcançaram os americanos e fizeram sinal para que descessem. Os Americanos haviam recebido ordens para não descer em área desconhecida com as Fortalezas Voadoras. Eram elas as últimas realizações da técnica da avição americana e constituiam segredo de morte. Na eminência de uma descida forçada, as tripulaações tinham ordem para colocar os paraquedas e fazer voar as máquinas no ar. Portanto as Fortalezas continuaram a voar sôbre as planícies da Sibéria sem atender a nossa perseguição. Os caças soviéticos atiraram com os foguetes, quebraram a formação e forçaram uma delas a descer no campo de Khabarovsk. A tripulação recebeu uma recepção festiva, mas a despeito das tentativas de persuadi-los, os americanos recusaram a abandonar as máquinas sem a chegada de um cônsul americano. Não era fácil encontrar um cônsul, mas, na presença da tripulação, a máquina inteira foi lacrada, do nariz até a cauda. O comandante recebeu o sêlo e foi-lhe afirmado que tudo estava em ordem e que podiam passar algumas horas no hotel Intourista até que o cônsul chegasse. Mas enquanto eram entretidos no hotel, com todos os prazeres da terra, os cabos telegráficos entre Moscou e Khabarovsk zuniu com perguntas secretas. De Moscou chegaram aeroplanos cheios dos mais hábeis especialistas soviéticos. Os americanos foram persuadidos e até mesmo forçados, a passar a noite no hotel, enquanto que o campo de descida era palco de atividade febril. Os selos foram removidos e engenheiros, técnicos e construtores soviéticos trabalharam na máquina à luz de lanterna. Fui eu um dos técnicos enviados por ordem do Cremlin. Passámos vários dias estudando o bombardeiro, enquanto a tripulação americana foi mantida internada.
O fato de um B. 29 ter descido no Extremo Oriente da Rússia Soviética foi noticiado, na época, pela agência Tass e poder-se-ia aceitar o que o Major Popov declarava. Mas, depois de discutir as dificuldades da tarefa e dos serviços que haviam realizado, deu à história um fim mais romântico:
– Um dos membros da tripulação, que suspeitou de algo, conseguiu sair do hotel, à noite e chegar ao campo de pouso. Lá viu o que estava acontecendo à máquina "selada". Voltando, contou tudo aos companheiros. Como possuiam um transmissor de ondas curtas, que deveria ser usado nas emergências, imediatamente enviaram uma mensagem codificada ao Q.G. americano. Enquanto isso Washington e Moscou entabolavam trocas de notas sobre o internamento da trilação. Quando a informação dos tripulantes chegou a Washisgton, a brigada técnica soviética já havia terminado o seu trabalho. A tripulação foi levada ao campo e o comandante foi convidado, solenemente, a verificar o lacre intacto. Stálin enviou um cabograma muito cordial ao presidente Roosevelt, informando-o, pessoalmente, da libertação da máquina. Minutos antes do B. 29 levantar vôo, Stálin recebeu um cabograma do Presidente: "Aceite B. 29 como presente meu".
Quando os pilotos soviéticos receberam o presente a fim de voar para Moscou, encontraram dificuldades inesperadas. Era muito difícil fazer subir a gigantesca aeronave. Um dos nossos melhores pilotos de prova foi enviado de Moscou. Depois de estudá-la, durante duas semanas, conseguiu fazê-lo alçar vôo e levá-lo, a salvo, a Moscou, pelo que recebeu o título de "herói da União Soviética".
Várias pessoas do Escritório Central de Construção, pertencente ao Comissariado do Povo da Aviação na Indústria receberam a incumbência de organizar a produção dêsse tipo de avião. As primeira máquinas de prova estavam prontas no último ano da guerra. Pouco depois, várias fábricas de avião, nos Urais, começaram a produção em série. Tupolev e o prendado desenhista Petliakov foram os responsáveis pela criação das Fortalezas Voadoras Soviéticas.
III
Com o decorrer dos mêses, mais gente chegava para trabalhar na A.M.S. Ao entrar na sala externa do General Shabalin, um dia, vi uma jovem recostada numa poltrona, com as pernas cruzadas, cigarro na mão, a conversar, alegremente, com o Major Kuznetsov. Quando retirava o cigarro dos lábios, nêle se viam vestígios do batão vermelho. Lançando-me um olhar breve e avaliador, voltou-se, de novo, ao major. Havia algo de diferente no seu comportamento, na atitude exageradamente descuidada, na maneira pela qual tragava o cigarro, os movimentos dos lábios carmesins. Estava esperando o general e, quando ela se foi, perguntei a Kuznetsov:
– Quem é essa beldade?
– Foi intérprete de um dos generais "demolidores". Agora foi mandada para Moscou e o chefe do pessoal recomendou-a ao nosso chefe. Parece que vai ser a sua intérprete.
Dessa forma Lisa Stenina tornou-se intérprete do General Shabalin, a sua intérprete particular, como sempre declarava. Falava corretamente o alemão, era bem educada, lia bem e era inteligente. E também possuia outras qualidades fora do comum.
Pintava-se demasiado. Embora parecesse ter, pelo menos vinte e cinco, afirmava não ter mais do que dezessete. E, embora todos os seus documentos se referissem a Elizaveta Yefimovna, sempre se apresentava como Elizaveta Pavlovna. Yefimovna era plebeu, mas Pavlovna soava a uma heroina de Pushkin.
Lisa não pertencia ao exército, mas sempre usava túnica de oficial com insígnia de tenente sôbre a saia de sêda, declarando nada mais ter para vestir. Claro que era apenas imaginação usava a túnica sòmente por exibição. Tinha uma língua ferina e gostava de discutir questões políticas delicadíssimas. Mas acima de tudo gostava de impressionar. A qualquer oportunidade menciova que sua irmã era casada com o General Rudenko. Se o ouvinte não demonstrasse o menor interêsse, acrescentava que o General Rudenko era o chefe da Comissão de Compras dos Soviéts, nos Estados Unidos. E se isso não desse resultado, confiava que êle não era apenas nosso representante comercial nos Estados Unidos, mas o chefe do Serviço Secreto Soviético, ali.
Uma ocasião ausentou-se do gabinete, um dia inteiro, sem permissão. Tarde entrou ela na sala dos intérpretes, em estado de choque, terrivelmente arranhada, roupas rasgadas a cabeça enfaixada.
Fui informada, por telefone, da sua chegada, dez minutos antes do encerramento do expediente e fui ver o que acontecera.
– Por onde andou? perguntei ansiosamente.
– Um coronel convidou-me para pasear de carro e levou-me à floresta.
Depois...
– Depois você o enganou, antecipei.
– Onde está o quépi? perguntou alguém.
– Perdido, respondeu ela, para reafirmar tôda a serie dade da situação da qual havia saído vitoriosa.
– E não perdeu mais nada, minha cara Lisa? perguntei, em tom faccioso, enquanto ela me lançava um olhar destruidor.
– Agora, que vamos fazer com você? continuei, com dó. Como é um tenente, deveria ser presa por ter-se ausentado do serviço. Que dirá o general?
– Isso é comigo. Não precisa preocupar-se com isso, Camarada Major.
– Pobre Lisa! suspirei.
Um ou dois dias depois, o Major Kuznetsov comentou, casualmente:
– Soube que você está sempre a amolar Lisa. Deve ter cuidado com ela.
– Mas por que?
– Siga meu conselho. Até o general tem mêdo dela. Pense um pouco. Ela não foi removida para cá, sem motivo. Está compreendendo?
Diminuindo a voz, êle terminou:
– Digo-lhe como amigo: não brinque com fogo.
Mais tarde soube um pouco mais sobre Lisa Stenina e o seu passado.