Gregory Klimov «A máquina do terror»

Capítulo 5. O CREMLIN DE BERLIM

I

O Douglas S. 47 descreveu uma espiral. Em baixo, até onde a vista alcançava, estendia-se um cemitério de ruinas. Devíamos estar sôbre Berlim. A paisagem em baixo mais parecia um mapa em relêvo do que uma cidade. Nos raios oblíquos do sol poente os esqueletos queimados das paredes lançavam sombras curtas.

Durante a luta nas ruas de Berlim não fôra possível ver tôda a imensidade da destruição, mas agora, de cima, Berlim parecia uma cidade morta, as escavações de uma cidade assíria pre-histórica. Nenhum ser humano, nem automóveis nas ruas. Apenas infindáveis muros de pedras queimados e buracos de janela, vazios.

Eu conhecera Berlim através dos livros. Eu a imaginava como uma cidade onde os trens eram mais pontuais do que um relógio e onde todos os seres humanos moviam-se como automates. Eu imaginava Paris como uma cidade de perpétua alegria; Viena, como uma canção eterna; mas eu imaginava Berlim como uma tristeza infindável, uma cidade sem sorrisos, uma cidade cujos habitantes não conheciam a arte de viver.

Vim conhecer Berlim, pela primeira vez, em abril de 1945, na estação em que o sangue pulsa mais rápido nas veias, como diz o poeta. Mas não era o amor que o impulsionava assim, mas o ódio, que não corria apenas nas veias, mas nas ruas de Berlim.

Agora eu retornava a Berlim com o fim, segundo a linguagem dos documentos oficiais, de desmilitarizar a Alemanha de acordo com o tratado entre as potências vitoriosas.

Um major do Serviço Médico do Exército contemplava pela janela circular o quadro de Berlim que passava vagarosamente sob nós. Com o rosto pensativo, expressando tristeza, voltou-se para mim, comentando:

– Atınal das contas, essas pessoas não tinham vida ruim. Portanto não se pode deixar de perguntar que mais queriam.

Aeroporto Adler. Em volta do campo de vôo havia Jun kers, com as caudas levantadas, como gigantescos gafanhotos. No topo do edifício da administração erguia-se um mastro sem bandeira. Na sala de contrôle o oficial de dia, um capitão da força aérea respondia a três telefones ao mesmo tempo, tentando acalmar um coronel de artilharia, cuja esposa de guerra se perdera no ar, entre Moscou e Berlim.

Um tenente-coronel avançou em direção de um tenente aviador, que estava ao meu lado – evidentemente o coronel tinha mais confiança nos oficiais subalternos. Cinco passos antes do necessário, fêz continência, perguntando com um sorriso artificial e esperançoso:

– Camarada Tenente, poderia fazer o favor de dizer-me onde está localizada a casa Bugrov? (Nesse tempo a maioria das formações soviéticas eram chamadas, familiarmente, de "casas", sendo conhecidas pelo nome do seu comandante).

Enquanto falava baixinho, como que temendo trair um segrêdo, o tenente fitou as insignias suas, sem dúvida sem poder decidir-se se estava sofrendo de ilusão ótica ou acústica. Em seguida, correu os olhos pelo tenente-coronel, da cabeça aos pés. O oficial superior ficou ainda mais embaraçado e acrescentou, num tom de intelectual impotente:

– Como vê, recebemos ordens, mas não sabemos para onde nos mandam.

O tenente abriu a bôca como um peixe, e depois, cerrou os lábios. Que era êsse tenente-coronel? Divertia-se?

Não muito distante havia um grupo de homens igualmente cômicos, de mochila e malas, agarrados a elas, como se estivessem numa estação de Moscou. Voltei-me para o oficial aviador e perguntei, indicando com o olhar o tenente-coronel e seus companheiros:

– Que peixes são êsses?

O oficial sorriu e respondeu:

– Desmanteladores. Ficaram tão intimidados na pátria que têm receio de mover o pés e as mãos, aqui. Levam as bagagens até aos banheiros. De que têm mêdo êsses patetas? Aqui na Alemanha nada é roubado; apenas é levado. Foi para isso que vieram aqui. Todos se vestem como coróneis e tenentes-coróneis, mas nunca estiveram no exército, na vida. Contudo, são inofensivos. Tirarão da Alemanha as suas últimas calças. Os colegas dêles, que ficaram aqui certo tempo, estão tão bem que mandaram para casa não somente instalações desmanteladas, mas até vacas, pelo ar. Isso para não mencionar fogões a gás e pianos. Sei disso porque estou na rota Moscou-Berlim.

Nossa conversa foi interrompida pelo rugido furioso do motor de um automóvel. Não muito longe, um pequeno automóvel de turismo soltava baforadas de gasolina e extremecia-se todo. Nos guarda-lamas havia bandeirolas vermelhas flutuando. Um pesado major estava ao volante, fazendo funcionar o câmbio e os pedais, com determinação, o pescoço rubro pelo esforço desacostumado. Tentava dar a partida, mas cada vez engatava a quarta ou a marcha-ré. Pobre câmbio! Contra a estupidez humana, nem mesmo o aço Krupp aguentaria! Afinal a pobre vítima partiu, desaparecendo numa nuvem de fumaça e de poeira, por pouco não batendo no concreto do portão.

Voltando-me, de novo, ao aviador, perguntei:

– Quem é êsse asno?

Êle ficou calado, um momento, como se o assunto não merecesse resposta, para em seguida, responder, com o desprêzo que os aviadores sentem pela infantaria:

– Algum canalha do comando. Estão introduzindo a limpeza e a ordem aqui! Antes da guerra, plantava batata numa fazenda coletiva. Mas a sorte bafejou-o e agora é major e vai compensar a sua vida passada. Tirem-lhe o pôsto e parecerá de novo um vaqueiro.

Depois de algum tempo, conseguimos telefonar ao pessoal da administração Militar Soviética e pedir um carro. Ao cair o crepúsculo, dirigímo-nos ao Q.G. do A.M.S.

O pessoal da Administração Militar Soviética estava instalado nos edifícios da então escola pioneira de Karlshorst, subúrbio de Berlim, onde, um mês antes, fôra assinado um dos mais importantes documentos do nosso tempo. No dia 8 de maio de 1945, os representantes do Supremo Comando Aliado, o Marechal Zhukov e o Marechal de Campo Tedder, e os representantes do Supremo Comando Alemão, de outro lado, haviam assinado o documento da rendição incondicional das fôrças armadas alemãs, de terra, mar e ar. O Quartel General ocupava vários edifícios de três andares, mais parecidos com barracas, distribuidos, desigualmente, em tôrno de um pátio e rodeado por cerca de ferro fundido, num típico subúrbio tranquilo do oeste de Berlim. Dêsse lugar nós íamos reeducar a Alemanha.

II

No dia seguinte à minha chegada a Karlshorst, apresentei-me ao chefe do Departamento do Pessoal da A.M.S., o Coronel Utkin. Na sala do coronel bati os calcanhares, como manda o regulamento, ergui a mão ao quépi e apresentei-me:

– Major Klimov, por ordem do Departamento Central do Pessoal dos Operários e Camponeses do Exército Vermelho apresenta-se ao serviço. Posso mostrar-lhe os documentos, Camarada Coronel?

– Entregue tudo o que tem, respondeu êle, estendendo a mão.

Retirei os documentos, entregando-lhos. Abrindo, cuidadosamente, o envelope selado, começou a examinar os meus depoimentos e questionários.

– Então esteve também no Colégio Diplomático Mili tar? Já temos alguns homens de lá, disse, a meia voz, perguntando, em seguida: que curso frequentou?

– Diplomei-me por exame oficial, respondi.

– Ah!... Ah!... Como foi assim tão rápido?

– Fui matriculado no último ano, Camarada Coronel.

– Percebo... "...diplomado como informante do serviço diplomático", leu. Nêsse caso teremos muito serviço para você. Onde prefere trabalhar?

– Onde fôr necessário.

– Que tal o Departamento Jurídico, por exemplo? Elaboração de novas leis para a Alemanha. Ou o Departamento de Assistência Política? Mas isso seria muito aborrecido, continuou, sem esperar a resposta. Que me diz do Serviço de Segurança do Estado?

Recusar essa sugestão, diretamente, teria sido cabal demonstração de deslealdade, seria mesmo um ato de suicídio. Contudo, não achava muito atraente trabalhar na polícia secreta, pois já passara da idade de ler novelas policiais. Tentei experimentar o terreno para um recuo disfarçado:

– Em que consistiria o meu trabalho, Camarada Coronel.

– Fundamentalmente, é o mesmo que na União Soviética. Não esperará muito tempo. Antes será o contrário.

– Camarada, se perguntar minha opinião, penso que seria mais útil no campo industrial. Era engenheiro na vida civil.

– Também isso é de utilidade. Logo veremos que lhe caberá.

Segurando o telefone, perguntou:

– Camarada General? Desculpe-me por incomodá-lo. (Endireitou-se na cadeira como se estivesse na presença do general, lendo os detalhes dos meus documentos pelo aparelho). Quer vê-lo imediatamente? Muito bem.

Voltando-se para mim, falou:

– Bem, vamos. Vou apresentá-lo ao representante do supremo comando das questões do General Shabalin.

A sala era enorme e atapetada. Diante da janela havia uma mesa do tamanho de um campo de futebol! Formando um T com ela, havia outra, mais longa, coberta de pano vermelho a mesa de conferência, o acessório invariável dos gabinetes dos oficiais superiores.

Por detrás da mesa estava a cabeça grisalha, o rosto franco e enérgico, os olhos profundos e cinzentos do general. Era o típico do executivo enérgico, mas não intelectual. Insignias de general e apenas algumas faixas e decorações na túnica verde escuro; mas no lado direito do peito havia um distintivo vermelho e dourado, na forma de uma bandeira: "membro da C.C. do P.C.U.S. Não era, pois, um general combatente, mas um velho funcionário do partido.

Calmamente o general leu meus documentos, esfregando o nariz, de vez em quando, soltando baforados, como se eu não estivesse ali.

– Bem... é de confiança? perguntou, inesperadamente, colocando os óculos na testa, a fim de ver-me melhor.

– Como a mulher de César, respondi.

– Fale russo! Não gosto de enigmas, respondeu, pondo, de novo, os óculos no nariz e examinando, outra vez, os documentos.

– Então por que não entrou no Partido? perguntou, sem erguer os olhos.

Então falava agora o distintivo, pensei eu, respondendo, depois:

– Não acho que esteja preparado para isso, Camarada General.

– A velha desculpa da intelectualidade! E quando acha que estará preparado?

Respondi na linguagem habitual do Partido:

– Sou bolchevique, não do partido, Camarada General.

Nêsses casos difíceis é sempre prudente a gente apegar-se às palavras de Stálin. Essas fórmulas não estão abertas a discussão e impedem outras perguntas.

– Sabe alguma coisa do seu futuro trabalho?

– Sei que está relacionado com a indústria, Camarada General.

– Aqui não é apenas suficiente o conhecimento da esfera industrial. Tem permissão para trabalhar em assuntos secretos?

– Todos os diplomados por nosso colégio recebem essa permissão, automàticamente.

Onde a recebeu?

– No Departamento do Pessoal do Estado (G.U.K.) do Exército Vermelho dos Operários e dos Camponeses e no Departamento do Exterior da Comissão Central do P.C.U.S.

Essa resposta causou-ihe impressão. Comparou os documentos, têz-me perguntas sobre o meu trabaino anterior na inaustria, e meu serviço no exército. Evidentemente satisfeito com os resultados, falou:

– Irá trabalhar comigo na Comissão de Contrôle. Ótima coisa que você conheça linguas. Meu pessoal técnico é ignorante em línguas e meus intérpretes ignoram assuntos tecnicos. Já trabainou antes no exterior?

– Não.

– Deve compreender, de uma vez para sempre, que todos os seus companheiros da Comissão de Contrôle são agentes da espionagem capitalista. Portanto não deve ter relações pessoais com êles, nem conversas particulares. Admito que já saiba disso, mas compete-me adverti-lo disso. Fale o menos que puder, mas ouça o mais que puder. Tôdas as paredes têm ouviacs. Lembre-se disso. É possível que haja tentativas para conquistá-lo ao serviço secreto estrangeiro. Que fará nesse caso?

– Concordarei, mas apresentando condições duras, estabelecendo, de fato, condições práticas para o trabalho.

– Ótimo. E depois?

– Depois informo o que se passou às minhas autoridades superiores, que, nêste caso, é o senhor.

– Joga baralho?

– Não.

– Bebe?

– Dentro do limite permitido.

– Bem, essa concepção é elástica. E quanto às mulheres?

– Sou solteiro.

Tragando, profundamente, o cigarro, soltou uma baforada, pensativamente.

– Pena não ser casado, major.

Sabia muito bem o que êle pensava. O colégio seguia o regulamento estrito de nunca mandar solteiros para o exterior. Isto, entretanto, não se aplicava aos países ocupados. Era muito comum que um oficial fôsse chamado no meio do ano escolar, pelo diretor do colégio, a fim de ser designado para um pôsto no estrangeiro, ao mesmo tempo que lhes mandavam casar-se. Isso era tão comum que aquêles que desejavam ir para o exterior, procuravam uma companheira ideal e... refén.

– Uma coisa ainda, Major, disse êle, em conclusão. Esteja de guarda com as pessoas da Comissão de Contrôle. Aqui em Berum, está na linha mais avançado da frente de após guerra. Agora vá apresentar-se ao meu ajudante-chefe.

Saí para a sala exterior, onde estava sentado um homem em uniforme de major. Pelo meu aspecto o ajudante compreendeu que a entrevista tivera um final favorável e estendeu a mão, apresentando-se:

– Major Kuznetsov.

Após breve conversa, perguntei-lhe que espécie de trabalho se fazia no departamento do general.

– Meu trabalho consiste em ficar sentado até às três da madrugada, como ajudante do general. Quanto ao seu... logo verá, respondeu com um sorriso.

E vi, muito ràpidamente. E fui lembrado do conselho do general em ser cuidadoso nos contactos com os aliados. Um ou dois dias depois, a porta da sala do general abriu-se violentamente e um homemzinho nervoso, em uniforme de major, gritou:

– Camarada Klimov? O general quer vê-lo um momento.

Não sabia quem era êsse major, mas acompanhei-o ao gabinete do general. Shabalin tirou uma pasta de documentos, na sua mão e entregou-ma:

– Examine os papéis. Escolha uma datilógrafa que tenha permissão para tratar de assuntos secretos e dite-lhe u que encontrar nêles. O trabalho deve ser feito no Departamento Secreto. Você pode não desperdiçar nada, mas traga-o de volta, juntamente com o seu relatório, logo que tiver terminado.

Ao passar pelo ajudante, na outra sala, perguntei-lhe quem era o major.

– Major Filin. Trabalha no Taegliche Rundschau, respondeu.

Tranquei-me na sala do Departamento Secreto e comecei a estudar o conteúdo da pasta. Alguns documentos eram em inglês; outros, em alemão. Havia muitas tábuas, colunas de algarismos. Em cima havia uma fôlha de papel carimbada "Secreto", em vermelho, num canto. Um informante anônimo declarava:

"O serviço secreto conseguiu os seguintes pormenores do rapto de dois trabalhadores do Instituto de Estatística Econômica do Reich, o Professor D. e o Dr. N., por agentes do serviço secreto americano. Os americanos mandaram agentes entrar em contacto com os citados economistas alemães e a pedir que fizessem algumas determinadas declarações às autoridades americanas. Os dois alemães, que vivem no setor soviético de Berlim, recusaram. Foram raptados, retornando a casa sòmente depois de vários dias. De volta, o Professor D. e o Dr. N. foram examinados pelo nosso serviço secreto e fize ram as seguintes declarações:

"Na noite de julho... fomos raptados por oficiais da espionagem americana e transportados, de avião, ao Q.G. da espionagem econômica em Wiesbaden. Lá fomos interrogados, por três dias, por oficiais do serviço de espionagem... Os dados em que os funcionários americanos estão interessados constam no apêndice.

O apêndice consistia em outros dados estatísticos extraídos do Instituto de Estatística Econômica do Reich. Esse material havia, sem dúvida, sido duplicado e tirado em várias cópias, não contendo segredos profundos. Evidentemente haviam sido publicados antes da rendição, para servir exigências internas da Alemanha. A despeito do "rapto" os dois alemães haviam retirado o material do arquivo do Instituto e cedido uma cópia aos americanos. Depois, com a mesma previsão, haviam entregue outra aos russos. Os documentos em inglês eram mais interessantes. Ou melhor, não eram OS documentos que eram interessantes, mas o fato da sua existência. Eram cópias dos relatórios americanos do interrogatório dos professores alemães, feito em Wiesbaden, juntamente com cópias do mesmo material do Instituto, apenas agora em inglês. Era claro que o nosso serviço secreto não havia confiado, totalmente, nas declarações dos alemães e seguira o processo comum de contra-verificação. Os documentos americanos não tinham carimbo oficial, nem número de série, nem enderêço. Haviam vindo dos arquivos americanos, mas não pelos canais oficiais. Era, portanto, evidente que o nosso serviço de inteligência possuia uma mão invisível dentro do Q.G. americano do serviço econômico. Era claro que o Major Filin estava habituado a trabalhar com acurácia desusada e que o Taegliche Rundschau estava empenhado numa linha esquesita de jornalismo.

Poucos dias depois um pacote grosso, endereçado ao General Shabalin chegou do Q.G. americano em Berlim-Zehlendorf. A Comissão de Contrôle ainda não estava funcionando adequadamente e os aliados estavam agora começando a entrar em contacto uns com os outros. Numa carta anexa, os americanos, cortêsmente informavam-nos que, pelo fato de os termos da organização da Comissão de Contrôle previam a troca de informações econômicas, desejavam trazer ao conhecimento dos soviets certo material referente à economia alemã. Encontrei as mesmas tábuas estatísticas que o Major Filin já havia fornecido por meio do "rapto". Esta vez o material era fornecido com todos os sêlos, lacres, endereços e até mesmo uma lista de recebedores. Era muito mais completa do que a pasta obtida por Filin. Era interessante notar que, enquanto nós marcávamos êsse material como "secreto", os americanos, sem dúvida, não o consideravam assim, de modo algum, e prontamente dividiam as informações com o membro soviético da Comissão.

Dirigi-me ao general, mostrando-lhe a carta anexa, com o endereço do remetente: Divisão da Inteligência Econômica. Ele examinou o material familiar, coçou-se pensativamente, por detrás da orelha, com o lápis, e observou:

– Será que estão forçando a sua amizade? Sem dúvida é o mesmo material.

Em seguida, murmurou entre os dentes:

– Sem dúvida é uma trica. De qualquer modo, são espiões.

III

O Escritório de Economia, da Administração Militar Soviética estava instalado no antigo hospital alemão de Santo Antônio. O hospital fôra construido segundo as últimas exigências técnicas; ficava no meio de um pequeno parque verde, protegido dos olhos inquisidores e do barulho do tráfego. O parque dava a impressão de não ser cultivado; as fôlhas do ano anterior quebravam-se sob os pés; em frente da entrada do edifício, os ramos das macieiras estavam carregadas de frutos, até o chão.

O edifício principal da administração acomodava o Departamento de Indústria, do Comércio e Fornecimentos, do Planejamento Econômico, da Agricultura, Transporte, e Científico e Técnico. O Departamento de Reparações, dirigido pelo General Zorin, e o Departamento Administrativo sob o comando do General Demidov estavam em dois prédios adjacentes. O Departamento de Reparações, o maior de todos os da administração, gozava de certo grau de autonomia e mantinha relações diretas com Moscou, sôbre a cabeça de Sha balin. O General Zorin havia estado num elevado pôsto econômico em Moscou, antes da guerra.

O Escritório da Economia da Administração Militar Soviética era, de fato, o Ministério da Economia da zona soviética, o órgão supremo que controlava a vida econômica da zona. No momento, estava principalmente interessado na "assimilação" econômica da Alemanha. Naqueles dias, era muito claro que a sua função verdadeira era virar a economia da Alemanha, a economia mais desenvolvida da Europa, completamente de cabeça para baixo.

Qundo cheguei em Karlshorst o pessoal do General Shabalin consistia de dois homens: o ajudante, o Major Kuznetsov e o chefe da chancelaria particular, Vinogradov. Os planos previam um corpo de cinquenta pessoas. Eu acompanhava o general em tôdas as suas visitas como ajudante, enquanto que o ajudante oficial, Kuznetsov, permanecia no gabinete como seu representante, uma vez que há muito trabalhava com o general, estando bem a par dos deveres. Kuznetsov ficava bastante aborrecido com essa situação e murmurava:

– Você viaja com o general e bebe, enquanto eu fico aqui fazendo todo o seu trabalho!

Muitos chefes do departamento preferiam tratar com Kuznetsov e esperavam que o generai saisse. A assinatura do major era suficiente para que uma ordem de pagamento fôsse enviada ao Marechal Zhukov para ratificação.

Uma vez perguntei a Kuznetsov que espécie de pessoa era de fato Vinogradov, e êle respondeu brevemente:

– Funcionário U.T.

– Que quer dizer? indaguei.

– Apenas um funcionário U.T.

Logo compreendi o que êle queria dizer. Para começar, Vinogradov era civil. Tinha êle o hábito de andar pelos corredores como se não tivesse momento a perder, brandindo documentos, quando passava. Um dia consegui ver um dêsses documentos e notei que era uma lista de pessoas designadas para uma unidade civil especial para o trabalho na Comissão de Contrôle. O próprio nome de Vinogradov encabeçava a lista, embora nada tivesse com a Comissão de Contrôle.

Logo após a minha chegada, um certo Capitão Bystrov foi conduzido para chefe do Departamento Secreto. Passava êle as primeiras noites da sua posse dormindo na mesa da sala do Departamento Secreto, usando o capote como cobertor. Mais tarde soubemos o motivo dêsse comportamento extraordinário. Não havia cofre no Departamento Secreto e, a fim de frustrar os planos de espiões internacionais, o General Shabalin mandou que o capitão fizesse um travesseiro dos documentos secretos que lhes foram confiados. O Capitão Bystrov tratava Vinogradov com indisfarçável desprêzo, embora êste ocupasse posição mais elevada. Uma noite Bystrov encontrou-me na rua e propos:

– Vamos visitar Vinogradov?

– Para que? perguntei atônito.

– Vamos! Você rirá muito! Já se encontrou com êle, à noite?

– Não.

– Ele ronda Karlshorst como uma hiena, à noite tôda, procurando roubar as casas vazias. Ontem encontrei-o justamente quando madrugava: arrastava uns destroços pelo pátio até o apartamento. Seu lugar é como um museu.

Eu não queria ofender o meu novo colega, de modo que fui com êle. Vinogradov abriu a porta, dois centimetros e perguntou:

– Bem, que esperam encontrar aqui, a esta hora?

– Abra a porta, disse Bystrov, empurrando-a. Mostre-nos os tesouros que coleciona.

– Vão para o diabo! protestou Vinogradov. Eu já ia deitar-me.

– Para a cama? Não acredito. Você ainda não terminou de saquear Karlshorst.

Afinal Vinogradov deixou-nos entrar. Como dissera Bystrov, seu apartamento era um espetáculo notável, mais um armazém do que uma morada. Continha bastante mobília para três apartamentos, pelo menos. O capitão olhou em tôrno procurando coisas que não havia visto nas visitas anteriores. Uma cristaleira atraiu-lhe a atenção.

– Que é isso? indagou. Abra!

– Está vazia.

– Abra ou eu o farei.

Bystrov ergueu as botas como se fôsse forçar as portas polidas.

Vinogradov sabia que o capitão não hesitaria em fazer o que dizia e, relutantemente, pegou uma chave. O armário estava cheio de vasilhames de tôdas as espécies, sem dúvida tirados das casas alemães abandonadas.

– Que tal se eu quebrasse algumas? propôs o capitão. Você poderia fazer queixa. Que tal?

– Está louco. São artigos de valor e você fala em quebrá-los! protestou o outro.

Olhei em volta do aposento. Êste homem falava mais do que qualquer outro sôbre a cultura, sôbre nossa consideração pelo ser humano, sôbre nossas tarefas exaltadas. E contudo nada mais era do que um saqueador, com todo o pensamento e atividade voltados para o enriquecimento pessoal. Bystrov meteu a mão numa arca aberta e retirou vários pacotes embrulhados em papel azul. Abrindo um dêles, começou a rir. Eu também não pude deixar de rir.

– Para que vai usá-los? perguntou, passando um pacote de toalinhas higiênicas femininas pelo nariz de Vinogradov. Para emergência?

Somente depois de muita insistência consegui que êle saisse do apartamento de Vinogradov.

Durante os primeiros dias de estada em Karlshorst não tivera tempo para olhar ao meu redor, mas com o decorrer das semanas, aprendia cada vez mais a respeito de nossas relações com o resto de Berlim. Por motivos de segurança, Karlshorst vivia num estado de semi-cêrco. O distrito inteiro estava cercado de postos de sentinela. O tráfico de rua era proibido depois das 9 da noite, mesmo para os militares. Senhas eram instituidas sòmente em caso de estrita necessidade e eram mudadas tôda noite. Frequentemente tinham que sair com o General Shabalin, a serviço militar, até duas ou três horas da madrugada. Quando voltávamos, a cada cinquenta metros uma sentinela invisível gritava através da escuridão:

– Alto! A senha!

O general morava numa pequena casa em frente do Q.G.; a maioria dos generais da A.M.S. vivia na vizinhança. As sentinelas ali eram ainda em maior número e senhas especiais eram exigidas.

Posteriormente, quando me tornei mais familiarizado com as condições em Karlshorst, ríamos do incrível rigor e vigilância e igualmente incrível negligência e indolência que caracterizam o lugar. A frente do Q.G. da A.M.S., onde ficava o gabinete particular do Marechal Zhukov, estava guardado segundo os regulamentos, mas atrás do edifício havia um terreno arenoso, com densa floresta, que se extendia ao longe. Ali não havia sentinelas. Qualquer pessoa, que conhecesse as condições em Karlshorst poderia ter trazido uma divisão de soldados inimigos até a porta dos fundos do marechal, sem dar a senha e mostrar o passe.

O Major Kuznetsov e o motorista de Shabalin, Mish, estavam aquartelados numa pequena casa perto da do general, que tinha um sargento, Nikolai, invariavelmente um homem moroso, que lhe servia de ordenança, embora não houvesse ordenanças no exército soviético. Também havia Dusia, uma criada, jovem de vinte e três anos, que fôra trazida da Rússia pelos alemães, para o trabalho forçado.

Uma vez perguntei-lhe como passara sob o poder dos alemães e ela respondeu com as reservas naturais:

– Claro que mal, Camarada Major.

Suas palavras indicavam algo que não podia explicar. Sem dúvida, como todos os russos, aguardando a repatriação, estava contente com a vitória, mas havia algo que empanava a sua alegria.

Nos primeiros dias, em Karlshorst, fiquei acomodado na casa de hóspedes para os funcionários da A.M.S. recém-chegados, mas depois que me havia instalado e familiarizado com as condições, simplesmente apoderei-me de uma casa vazia, circundada por árvores e arbustos floridos. Tudo estava do mesmo jeito que os seus antigos habitantes haviam deixado. Era claro que Vinogradov ainda não estivera ali. A casa tornou-se, portanto, minha residência particular.


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