I
Na primavera de 1945 um dos oficiais, que estudava no colégio foi vítima de um incidente idiota e extraordinário. Havia êle terminado o último ano do Departamento Japonês e já fôra designado para um pôsto de importância no serviço secreto; além do mais estava casado e era feliz. Parecia mesmo estar no limiar de um futro brilhante. Contudo...
Dois dos prédios do colégio defrontavam-se na rua, havendo um corredor de cinquenta metros entre êles. Êste corredor era separado por uma cêrca comum, e o General Biyasi, que se orgulhava muito da aparência não só dos estudantes, mas dos edifícios, mandou que se retirasse a cêrca antiga e se colocasse outra mais digna do colégio. Quando a velha cêrca foi retirada, os estudantes descobriram que possuiam um caminho mais conveniente para ir até a parada de ônibus, em vez de ter que dar uma volta, quando antigamente, pela porta principal. Como resultado, o colégio todo começou a entrar e a sair pelo novo "caminho". Quando o general descobriu o que acontecia mandou um homem guardar a passagem, com ordens terminantes de não deixar passar ninguém. Mas que se pode esperar de um homem só a guardar cinquenta metros de frente de um colégio inteiro, e ainda mais seus companheiros? O general, então, mandou chamá-lo e, pessoalmente, repreendeu-o, ameaçando-o. Mais que devo fazer, General? Implorou o homem.
Atirar? Claro! A sentinela é sagrada. Você conhece o regulamento, respondeu o General Biaysi.
Ao findar as lições do dia, uma multidão de oficiais mais uma vez espalhou-se pela passagem. O guarda gritou e ameaçou-os até ficar rouco, mas em vão. Na distância a forma rotunda do general era visível na inspecção habitual. Nêsse momento o capitão "japonês" passava pela sentinela, sem dar atenção aos seus gritos.
– Alto! gritou o homem, em desespêro.
O capitão continuou a andar, aparentemente mergulhado em pensamentos.
O capitão prosseguiu, enquanto o general se aproximava.
Quase que frenèticamente, o homem ergueu o fuzil e atirou sem fazer mira. Eram quatro horas da tarde e a rua estava tão repleta de pessoas que o homem, tão agitado, se tivesse deliberadamente feito a mira, com certeza teria errado. Mas o capitão caiu na calçada com uma bala na cabeça. Durante a guerra não passara um só dia na frente e nunca ouvira o sibilar de uma bala, mas poucos dias do término da guerra morria atingido pelo projétil mortal de um companheiro, numa rua de Moscou.
Claro que nada sucedeu ao guarda. Embora o acontecimeito fôsse, de fato, escandaloso, o general enviou-lhe uma mensagem exprimindo a sua gratidão pelo "cumprimento exemplar do dever". Nêsses casos a sentinela está isenta de culpa. Sôbre êste assunto o regulamento militar diz: "Quando se está de sentinela é melhor atirar em alguém inocente do que deixar escapar um inimigo".
Esse incidente, involuntàriamente levou meus pensamento a refletir sôbre o destino. "Ninguém evita o destino" costumavam dizer nossos ancestrais. Não acreditamos mais nisso, ou melhor, fomos ensinados a não acreditar. Assim haverá mais espaço para acreditar no chefe.
Naquele momento eu tinha tôda razão em refletir sôbre o meu destino. Terminara o colégio e estava no limiar de uma nova fase da minha vida. Claramente via as encruzilhadas a minha frente, mas ainda enxergava mais nitidamente que uma vez iniciada uma das estradas, não poderia voltar mais. Naquele momento eu tinha, ao menos, uma possibilidade de escolha, portanto deveria pensar bastante nela. Ultimamente Ouvira boatos de que estava sendo considerado candidato para um pôsto de docente no colégio. Não poderia ter melhor oportunidade. Falando bem, isso representava a melhor oportunidade que um formado poderia ter. O pessoal docente estava sempre em movimento pois constituia a reserva imediata do Estado Maior do exército, que sempre atendia aos pedidos do pessoal do colégio quando estavam em jogo tarefas especiais no exterior. Hoje a gente podia ser enviada para algum lugar da Europa e amanhã, à América. Na verdade, a pessoa escolhida ia como auxiliar apagado de uma delegação impressionante, mas sempre tinha comissões especiais independentes e responsáveis a executar. De volta a Moscou ela se apresentava não às autoridades civis, que enviara a delegação, mas ao departamento correspondente do Estado Maior.
Pouco tempo antes, um dos membros do pessoal do colé gio havia sido mandado para uma viagem a Checoeslováquia, Austria e outros países da Europa Central. Fôra como "intérprete de um mundialmente famoso botânico soviético, membro da Academia Soviética de Ciências. É fácil imaginar que espécie de plantas o professor tinha em mente de trazer para a pátria, com o auxílio de tal "intérprete" e quem era o chefe e quem o subordinado.
Uma vez ligado ao corpo do colégio, a pessoa estava no ponto inicial de muitos caminhos altamente promissores. O corpo docente estava muito bem informado dos problemas do Estado Maior. Compreensão pessoal, apadrinhamento, ligações, desempenhavam papel importante. Em poucas palavras, pertencer ao corpo do colégio era a partida mais segura para uma carreira que a maioria dos alunos apenas podiam sonhar.
Quando soube que cogitavam da minha pessoa para tal encargo, fui dominado por sentimentos desencontrados. De um lado, era oportunidade de viver em Moscou, no meio dos círculos importantes, possibilidades excelentes, perspectivas atraentes. Mas... Havia um poderoso mas. Aquêle caminho levava a uma direção. Um olhar para trás ou para o lado e tudo terminava. Se se desejasse seguir êsse caminho, era preciso estar totalmente liberto de conflitos interiores e possuir perfeita fé na justiça do que se estava fazendo. Claro que há substitutos para essas coisas: hipocrisia, oportunismo, falta de princípio na escolha dos meios. Eu era um produto da educação da era de Stálin e sabia muito bem, tendo oportunidade para ver, na União Soviética, de como funcionavam êsses substitutivos. Entretanto, ficaria eu satisfeito com êles? Não era um jovem ingênuo, nem um filântropo: podia justificar a aplicação de meios dubíos a fim de alcançar uma finalidade mais alta. Mas antes de assim agir, tinha que ter plena certeza de que o objetivo final estava fora de crítica, e, a despeito dos meus desejos particulares, não sentia essa certeza.
Depois da atmosfera dos brilhantes dias da vitória, Moscou tornara-se fria e monôtona. Uma brisa fresca soprava na Europa, e lá realizava-se uma grande transformação histórica. Os estudantes do colégio, que voltavam de rápidas visitas oficiais ao ocidente traziam informações interessantes. Não me faria mal, também conhecer o paciente que eu teria que curar.
Para mim, pessoalmente, a melhor coisa seria ser enviado a um dos países ocupados da Europa. Lá, em novo ambiente, nas terras onde havíamos conquistado a vitória, no trabalho criador poderia recobrar o meu equilíbrio rompido e regressar a Moscou cheio de confiança, cheio de fé. De qualquer modo, eu ainda seria parte da Reserva do Estado Maior.
Essas reflexões provocaram o estímulo para uma conversa que tive com o Tenente-Coronel Taube.
O professor Barão von Taube era um dos representantes do Coronel Gorokhov no Departamento de Educação. No co légio era considerado uma espécie de peça de museu e, entretanto, por causa do seu extraordinário saber e capacidade, era insubstituível. A despeito do comprometedor "von", seu nome tinha pêso e sua palavra frequentemente era de significância decisiva. Os estudantes consideravam-no um homem extremamente educado, um oficial e professor prático e observador, com quem se podia conversar abertamente.
Além do Tenente-Coronel Taube, o Major-General Ignatiev, também, possuia bom nome no colégio. Na mocidade fôra pagem do último Czar, e, depois, estudara na Academia de Estado Maior czarista; posteriormente fôra auxiliar militar czarista em Paris, durante muitos anos. Depois da revolução, permaneceu no exterior, por muito tempo, como emigrado, mas durante os "trinta", por razões desconhecidas, dirigiu-se a Canossa. Suas memórias Cinquenta Anos nas Fileiras, gozavam de grande sucesso entre os estudantes. Agora, o antigo oficial da Guarda Conde Ignatiev, usava, novamente, o uniforme de general, tendo sido designado historiador do Exército Vermelho. Naturalmente, não merecia confiança, e a sua tarefa principal era proclamar a tolerância do regime soviético com os pecadores arrependidos. Nas suas memórias, apresentou vaga razão da sua volta, mas, em Moscou, dizia-se abertamente que se cansara de lavar pratos nos restaurantes de Paris.
Nos últimos anos da guerra, um número de emigrados mais ou menos bem conhecidos havia retornado à União Soviética. Por exemplo, o então famoso escritor Kuprin havia chegado recentemente em Moscou. Dizia-se que, ao sair da estação de estrada de ferro, baixou a mala, è ajoelhando-se e curvando a cabeça em homenagem à terra natal, a vista de todo o povo. Quando se ergueu, a mala havia desaparecido.
Ainda há pouco tempo, Belyavsky e eu havíamos assistido a um concerto dado por Alexandre Vertinsky. Sua aparição em público foi bastante inesperada e a maioria das pessoas apreciou-a, considerando-a como uma confirmação de novo rumo liberal da política do governo. É verdade que êle podia aparecer apenas nos clubes pequenos dos subúrbios, mas o fato de ter podido exibir-se era mais importante e mais agradável do que a sua execução. Do palco emanava um cheiro de morfina e o destroço humano, que entrou, acompanhado pela esposa, uma jovem cantora, causou uma impressão sentimental. O passado é mais agradável na lembrança do que a sua ressurreição como um cadáver do túmulo.
Pode ser que não pensassem nisso, mas o governo deu um passo inteligente ao apresentar à nova geração do mundo velho nessa forma. Com os nossos próprios olhos, sem propaganda, víamos claramente o quanto nosso mundo e nossos interesses haviam progredido, nêsse interim.
O Tenente-Coronel Taube ouviu, atentamente, os meus argumentos superficiais – claro que não mencionei os motivos pessoais que me levavam a ser mandado para o exterior.
– E prometeu-me falar afavor da proposta às autoridades superiores, enquanto não retirava a minha candidatura ao corpo do colégio.
Além do tenente-coronel consegui influências sobre outras pessoas que tinham voz ativa na distribuição de postos aos diplomados.
Pouco depois, fui chamado pelo Coronel Gorokhov, que me cumprimentou como se fosse um velho conhecido.
– Ah! Major Klimov! Prazer em vê-lo! começou afàvelmente, como se ver-me fosse o que mais desejava na vida.
Imediatamente fiquei de guarda. Quanto mais amável êle fôsse, mais inesperada poderia ser a conversa.
– Então, afinal, você não conseguiu o meu conselho. Voltou ao Departamento Ocidental, continuou, meneando a cabeça sentidamente. Não o perdoaria se as informações a seu respeito não fossem ótimas.
Continuei em silêncio, esperando que chegasse ao ponto.
– Então você gostaria de ter a oportunidade de trabalhar em liberdade perfeita? perguntou amistosamente.
Ergui os olhos, atônito.
– Estávamos pensando em mantê-lo aqui, prosseguiu, mas agora se propôs dar-lhe a oportunidade de provar sua competência num pôsto diferente. Penso que isso não se deu sem a sua possível intervenção...
Êle fitou-me com ironia, sem dúvida imaginando há muito a parte que eu tivera em conseguir a transferência da Faculdade Oriental para a Ocidental.
– Não tenho nenhuma objeção que vá para o exterior, disse, após breve silêncio. Acho que você também não a tem.
Tentei parecer indiferente, pois é melhor que um oficial do Estado Maior evite demonstração de excessiva curiosidade.
– Você tem apenas um defeito, continuou. Por que não se inscreveu no Partido?
– Estive no colégio sòmente um ano, Camarada Coronel, repliquei. É preciso a recomendação de três membros do Partido, um dos quais deve ter trabalhado com o candidato pelo menos dois anos.
– E antes de entrar no colégio?
– Nunca tive a oportunidade de permanecer dois anos num lugar.
Tinha vontade de dizer, francamente, ao coronel, que achava que um homem deveria ingressar no Partido, apenas depois de ser um membro importante da sociedade e não para usar a sua qualidade de membro como uma mola na sua carreira. A maioria dos atuais "comunistas verdadeiros" trabalham pelo último princípio. Eram êles que faziam mais agitação, a fim de demonstrar como eram "fiéis à linha do partido". Mas os que haviam conseguido algo pelo próprio mérito e, em consequência, por bem ou por mal, tiveram que entrar para o Partido, eram, geralmente, seguidores passivos e silenciosos.
Foderia eu ter-lhe dito isso? Isso significaria que não tinha certeza, que tinha dúvidas. Se um cidadão soviético quer viver, desde o dia do nascimento deve crer absoluta mente na infalibidade da linha do Partido. Eu demonstraria ter sido um pobre estudante do seu colégio se tivesse contado essas coisas ao coronel.
– Espero que no próximo encontro tenha remediado essa situação, concluiu êle. Fora disso, nossas informações a seu respeito são excelentes. Seu caso será remetido do Departamento do Pessoal do Exército e êles lhe comunicarão o seu pôsto futuro.
Após essa conversa, esperava passar pelo exame costumeiro pelas estâncias superiores.
Os estudantes do nosso colégio, normalmente, tinham que passar por exames severíssimos, mas, antes de serem designados para um pôsto no exterior, mesmo êles são habitualmente submetidos a questionários pela Comissão de Mandato do Departamento do Pessoal do Exército Vermelho e pelo Departamento do Exterior do Partido Comunista Soviético. Nunca se estaria suficientemente preparado. Era sempre possível, que, nêsse ínterim, um ou outro se tornasse "defunto" ou ocorressem alterações importantes entre as suas relações ou as da sua espôsa.
Um dos aspectos mais desagradáveis da vida soviética é a responsabilidade coletiva dos parentes. Não importa que um membro da sociedade soviética seja inatacável, pois se algum parente distante entrar em conflito com a Narcomvnudel, automàticamente passa para a categoria dos "politicamente não de confiança".
Durante a guerra havia uma categoria especial de "não de confianças", que não foram chamados para o serviço militar. Muitos dêles tiveram que servir nos batalhões de trabalho, não recebendo armas, mas sendo mantida a uma distância segura da frente de batalha. Consistiam êles principalmente de pessoas que haviam conhecido a Narcomvnudel. Todos que haviam entrado em contacto pessoal com a Narcomvnudel ou estavam nas listas negras e foram aprisionados e internados nos primeiros dias da guerra. Se algum "não de confiança" se oferecia, como voluntário, para ir para a frente, imediatamente era preso e mandado para um campo de prisioneiros da Narcomvnudel. O comando militar conhecia bem o valor dessa espécie de patriotismo. O governo soviético sabia que a despeito de longos anos de reeducação, o sentimento de lealdade ao pai ou mãe e ao próprio sangue era mais forte na alma russa do que os ensinamentos comunistas.
Nos últimos anos da guerra, em virtude da grande falta de homens, algumas dessas pessoas foram transferidas para o exército regular. Embora a maioria tivesse educação superior e fôsse constituida de oficiais da reserva, tinham que ir para a frente como soldados rasos.
Durante os anos da experiência soviética o número dos que haviam sofrido repressão alcançou tal quantidade que, sem dúvida, o grupo automàticamente "de não confiança" constitui a camada social mais importante da nova sociedade soviética. Ambos os lados tinham que procurar uma saída para essa situação complicada. Os homens desejam viver, e o regime necessita de homens. Mas entre a reconciliação dessas duas necessidades há um obstáculo intransponível: o questionário. Muitos dêsses "de não confiança" nunca viram o "gênio do mal", nunca tiveram algo que ver com êle, e, naturalmente, não o mencionavam quando enchiam os questionários. As autoridades sabem muito bem que o questionário não é preenchido com estrita acurácia, mas, frequentemente, vêem-se forçados a "deixar passar" essa inexatidão. A política do terror levou os governantes soviéticos para um bêco sem saída: a aceitar a classificação soviética, há menos cidadãos imaculados e de confiança na União Soviética, hoje, do que há trinta anos atrás. E ainda, se o caso não é muito importante, ou se há necessidade urgente de um determinado indivíduo, examinam os detalhes do seu questionário com menos rigor. Por outro lado, nos casos importantes, não confiam nos questionários, nem mesmo a opinião que êles mesmos fizeram da pessoa em apreço, de maneira que a submetem a contínuos exames, com desconfiança histérica e escrúpulos meticulosos.
Leva entre três e seis mêses o tempo entre a primeira candidatura e a designação final para um pôsto no exterior, durante o qual o candidato é submetido a vários exames Assim, a Narcomvnudel do local da sua residência tem que examinar as suas declarações e se se descobrir que algum parente distante, desapareceu sem deixar vestígios, em circunstâncias misteriosas, sòmente isso já é suficiente para não ser aceito o candidato. Qualquer circunstância não esclarecida é considerada fator negativo.
Eu esperava ser chamado ao Departamento do Pessoal do Estado Maior, mas dias depois recebi ordem de apresentarme ao diretor do colégio. Como isso estava fora da rotina normal, fiquei um pouco perturbado em saber o que havia por detrás disso.
Quem quer que fosse chamado à sala do general nunca poderia ter certeza do que aconteceria. Sempre esperávamos prontos para as maiores surpresas. Por exemplo, muito recentemente, todo o Departamento Japonês, com exceção do último ano, fôra reorganizado para a preparação de tradutores do exército, num curso rápido de instrução. Os futuros diplomatas desiludidos receberam a promessa de que a medida era temporària e todos teriam a oportunidade de continuar os estudos, posteriormente. Enquanto isso, ficavam sentados, o dia inteiro, remoendo a terminologia militar japonesa. Esta reorganização aconteceu imediatamente após a Conferência de Yalta, e as instruções foram aceleradas a tal ponto que os estudantes se trocavam olhares inequívocos. O plano indicava, nitidamente, a data em que o treinamento deveria terminar, e, portanto, a direção do vento. Desde o começo as cláusulas secretas do acordo de Yalta não nos eram segredo. Chegámos ao ponto em que fomos informados que os membros das legações estrangeiras teriam muito prazer em conhecer qualquer de nós. Antes disso, se qualquer um de nós aventurasse a trocar algumas palavras com um estrangeiro, nas ruas de Moscou, sem permissão especial, demonstrava depositar excesso de confiança nos poderes do seu anjo da guarda.
Antes de assumir o pôsto no exterior certos estudantes eram submetidos a um curso especial de instrução das regras de conduta e boas maneiras com os estrangeiros. Nêsses cursos, o estudante frequentemente recebia instruções adequadas ao país para onde era designado. Com muita frequência havia ênfase especial no aprendizado de danças modernas dos países ocidentais ou na arte das relações com as damas, inclusive a arte de partir corações, que é um dos meios de chegar aos cofres particulares dos diplomatas. Nêsses cursos o General Biyasi não tinha rival, como instrutor.
Após minhas reflexões taciturnas não fiquei nem um pouco surpreso quando me informou, brevemente, que as autoridades superiores haviam-me indicado para o corpo da Administração Militar Soviética na Alemanha. Sem dúvida eu era considerado pessoa de muita confiança, de modo que não se fêz novo exame, por ser julgado supérfluo.
– Orgulhamo-nos de você, em todos os aspectos, expli cou o general, mas não se esqueça que onde quer que se encontre você é e continuará um de nós!
– Obrigado, Camarada Coronel! repliquei, fitando-o nos olhos e respondendo ao vigoroso apêrto de mão.
Afinal de contas, não me dirigia eu a Berlim a fim de regressar a Moscou um cidadão soviético melhor do que era então?
II
Durante o inverno eu resolvera um enigma que me apoquentava, com relação a Genia. Sua mãe voltara a Moscou, em janeiro; durante a guerra ela trabalhara como doutora nos hospitais da frente de batalha, a fim de ficar junto do marido. Agora havia sido desmobilizada.
Anna Petrovna era o oposto da filha Genia. Seu maior interêsse na vida era falar sobre o marido. Não pouca paciência e estoicismo eram-me necessários para ouvir a mesma história e demonstrar o mesmo interêsse pelo que lhe acontecera: como se casaram, como êle nunca estava em casa por causa da devoção fiel ao serviço, como era duro ser a espôsa de um oficial profissional. Ela descrevia-me, longamente, os seus pais, gente simples; do seu progresso gradativo e da sua rápida carreira durante a guerra. Anna Petrovna era extremamente agradável e franca. Embora fôsse casada com um general bastante conhecido, não era convencida da posição; ao contrário, tinha a parcialidade de contar histórias da falta de cultura e da ignorância da nova aristrocracia. Possuia a nítida compreensão da responsibilidade da elevada posição do espôso e fazia o maior esforço para viver no tempo e com êle. Tanto externamente, como no caráter, justificava, plenamente, a posição mantida da sociedade.
Havia a tendência generalizada, entre o povo soviético, de olhar a nova aristocracia com ceticismo, como um grupo de aventureiros. Na maioria dos casos, isso era consequência de muitas pessoas desconhecidas terem chegado ao tôpo, durante a revolução. Isso era perfeitamente natural. Mais tarde, essas mesmas pessoas foram designadas para ocupar importante cargos estatais, para os quais não estavam aptos, nem pelo conhecimento, nem pela capacidade. Uma coisa deveria ser reconhecida nos importantes funcionários soviéticos – possuiam uma energia incalculável e perseverança inexaustiva. Com o decorrer do tempo, a velha guarda revolucionária envelhecia, de modo que a incapacidade para executar novas tarefas exibia-se mais claramente.
Enquanto isso, novos quadros de especialistas estavam sendo organizados em todos os ramos de atividade. Vinham êles da massa do povo, mas possuiam a educação exigida e o preparo profissional especial, e adquiriam prática e experiência na atividade responsável.
A úlcera burocrática abriu-se no começo da guerra, sendo necessário substituir os heróis resinosos do período revoiucionário pelos jovens líderes da escola soviética. Inevitàvelmente, nos anos de guerra, e principalmente no exército, novos e talentosos chefes militares, que haviam estado a vegetar abandonados, surgiram.
O Partido e a aristocracia burocrática de antes da guerra passavam os dias no mesmo luxo e magnificência que a aristocracia czarista, o que havia sido censurado por êles. Durante a guerra, a fim de salvar a situação, foram substituidos, talvez temporàriamente, pelos melhores membros da nação. O pai de Genia pertencia a essa elite. Anna Petrovna tinha bastante orgulho da carreira domarido. Sua única mágua era ter ela, pràticamente, pôsto fim à vida familiar.
Eu não via Genia, enquanto fazia os exames estatais, tendo apenas lhe telefonado, acidentalmente, mas agora, com a designação para Berlim, nos bolsos, podia visitá-la, de novo. Nem mesmo eu esperava a recepção afetuosa que ela me deu; tão demonstrativa era que até Anna Petrovna meneou a cabeça, desaprovando.
– Não se esqueça que também estou aqui, observou.
– Grisha! disse Genia, enquanto me fazia girar como um pião pela sala. Papai estará em casa por uma quinzena... Imagine só: duas semanas! Venha ver o que êle me trouxe.
Cheia de orgulho, mostrou-me uma quantidade de pre sentes que o pai lhe dera. Antes disso, porém, caixas de troféus estavam guardados no apartamento. Cada vez que um dos oficiais do Estado Maior vinha da frente para Moscou, trazia presentes do general, o que era comum nas famílias dos oficiais, durante o avanço do Exército Vermelho na Prússia Oriental. Os oficiais subalternos enviavam apenas pequenos objetos, mas os superiores mandavam coisas grandes, como mobília e pianos. Sob o aspecto legal, isso era roubo; na linguagem de guerra, eram chamados troféus. Além disso todos consideravam que isso era apenas o ato de rehaver dos alemães o que haviam tirado de nós.
Por êsse tempo, corria uma história em Moscou, a respeito de um oficial combatente que enviara um caixão de sabão a sua espôsa. Ela sem pensar, vendeu-os todos no mercado. Dias depois recebeu uma carta do marido, na qual dizia que um dos pedaços de sabão tinha um relógio de ouro escondido. A história tinha vários finais: um era que a mulher se enforcara; outro, que começara a beber e a terceira, que se envenenara.
Um grande aparelho de rádio estava na sala de visitas do General e, a primeira vista, não pude decidir se era receptor ou transmissor. De fato, havia conseguido um aparelho perfeitamente adequado a sua posição: era um super-receptor, o último modêlo. Eu já ia ligá-lo e fazê-lo funcionar, quando Anna Petrovna ergueu o dedo, admonitoriamente:
– Pelo amor de Deus, Grisha, não o ligue. Kolia (seu marido) proibiu-nos.
– Mas que há a temer? perguntei.
– Não deve ser tocado. De modo algum, até que a proibição seja revogada. Até Kolia ainda não o ligou.
Que se podia entender disso tudo? Um mês depois do término da guerra, um general soviético vitorioso não ousava ouvir rádio se o Cremlin não lhe tivesse dado permissão expressa.
– Grisha! Olhe só! interrompeu Genia. Uma pistola dourada!
Entusiasmada ela atirou-me algo pesado numa capa amarela de couro.
Pensando encontrar algum modêlo original de isqueiro, ou algum objeto feminino, abri a capa, retirando uma pistola dourada brilhante, do modêlo alemão "Walter", com duas símbolos da S.S., e a inscrição:
"Ao General da S.S. Adreas von Schoenau, em nome do Grande Reich Alemão. O "Fuehrer".
– Agora é melhor comportar-se, disse Genia, mostrando um pente de balas. Está funcionando.
Quando ela o atirou ao sofá, o pente deslizou como uma serpente sobre o tecido e notei as pequenas pontas vermelhas das capsulas.
– Que idéia dar uma pistola a alguém! exclamei. E principalmente a você.
– Não se impressione. Se vccê se comportar, nada lhe acontecerá, serenou-me ela. E êle trouxe dois Opels, continou. Ele mesmo dirige o "Admiral" e o "Kaptain" é para m.m. Veja, portanto, se volta amanhã cedo para ensinar-me a guiar.
Mas escute-me, Grisha, quais são os seus planos para o futuro? quis ela saber, esquecendo os seus brinquedos.
Com a mesma desenvoltura que havia empunhado a pistola de ouro, pousou minha cabeça no seu peito, descrevendo um enorme ponto de interrogação, com o dedo, na minha testa.
Detestei estragar o seu ânimo alegre. No meu coração começava sentir tristeza por ter que abandonar todo aquêle mundo no dia seguinte. Mas tinha que ser assim e, de qualquer modo, não era para sempre.
– Amanhã voarei para Berlim, comecei vagarosamente, fitando o teto, como se, de alguma forma, estivesse errado.
– Que? exclamou ela, incrédula. É uma dessas piadas sem graça?
– Não é piada.
– Você não vai voar para lugar nenhum. Esqueça isso. Compreendeu?
– Não depende de mim, respondi, encolhendo os ombros, impotente.
– Por Deus! Gostaria de esfolá-lo vivo! exclamou. Se você tem mesmo que saber como é o exterior, vá passar uma noite na ópera. Não tem arrependimento por ir embora, de novo e deixar-me aqui, com as minhas lições eternas e aborrecidas?
Ela olhou-me implorante, revelando que isso era mais do que um pedido, do que um capricho.
– Não é o que quero, Genia. É o dever...
– Dever, dever! repetiu ela. Estou farta dessa palavra.
Todo o seu entusiasmo e animação haviam desaparecido. Sua voz estava triste e séria, ao falar-me:
– Estava tão alegre por saber que você não era oficial profissional. Acho que você pensa que tive uma vida alegre. Se quer saber a verdade – sou uma órfã!
Repentinamente ela endireitou-se, o rosto pálido, os dedos finos a brincar nervosamente com a orla da almofada.
– A vida inteira só via meu pai uma vez por semana, por assim dizer. Quase que somos estranhos. Já pensou alguma vez por que êle me cumula de presentes? Sente o mesmo que eu. Primeiro foi a China; depois na Espanha, depois outra coisa. E assim a vida inteira.
Sua voz cessou e os olhos encheram-se de lágrimas. Perdendo o domínio, as palavras escapavam-lhe pelos lábios numa queixa apaixonada, numa censura ao destino:
– Meus amigos dizem que sou feliz; o peito de meu pai está cheio de condecorações... Mas odeio essas condecorações... Elas afastaram o meu pai de mim... Cada uma significa anos de separação. Veja mamãe! Nem bem vertia ela lágrimas de alegria pela volta de papai, vivo e são, quando já há mais lágrimas por outra coisa. Às vezes passamos ano inteiro sem receber uma carta sua... E também êle diz sempre "dever! o dever". E agora você... Não quero levar a vida de minha mãe... Não quero viver apenas com as suas cartas...
Ela cobriu o rosto com as mãos, os ombros estremecendo violentamente, para depois mergulhar a face na almofada e chorar amargamente, como uma criança doente.
Em silêncio, acariciei lhe o cabelos, contemplando o telhado dourado pelo sol da casa fronteira, a abóboda celeste do céu de outono, como se dêles pudesse obter uma resposta. Que deveria fazer? Ali, ao meu lado, estava a mulher que eu amava e que me amava e algures, muito distante, estava o dever.
Passei a noite com Anna Petrovna na sala de visitas. Genia espalhcu os livros na mesa de jantar e sentou-se mastigando o lápis, pois preparava-se para os exames finais. Como sempre, Anna Petrovna queixava-se da sua vida solitária.
– Oferecerar-lhe um pôsto no Departamento de Artilharia, mas não, teve que ir meter o nariz no inferno, de novo. Em Koenigsberg foi ferido na cabeça, mas isso não lhe bastou. Pensava-se que já possuia muitas condecorações e ordens, bem como um pôsto bem eelvado. Mas agora afirma que vai ser marechal. O próprio Stálin disse-lhe na recepção. E agora continua a repetir isso como um papagaio.
O general fôra chamado urgentemente a Moscou, poucos dias antes da capitulação da Alemanha. No dia 10 de maio de 1945 esteve presente, com outros oficiais superiores do Exército Vermelho, na recepção do Cremlin que o Politburo deu em comemoração da vitória. Agora outra ordem de Lenine decorava o seu peito largo, e outra estrêla foi aumentada na ombreira dourada. Mas Anna Petrovna não estava destinada a gozar da companhia do marido, por muito tempo. Recebeu êle nova comissão secreta; passava todos os dias no Estado Maior e, sempre que lhe perguntava aonde ia, êle apenas respondia:
– Você verá quando receber uma carta com o endereço de campanha.
Descobriu para onde havia sido mandado somente mêses depois, quando a guerra com o Japão eclodiu. E ainda assim o soube pelos jornais, que anunciaram que o Presidium do Soviet Supremo lhe havia concedido outra distinção pelos serviços especiais na luta contra o Japão.
– Como pode ser marechal, se a guerra acabou? perguntei-lhe. Contra quem vai êle lutar?
– Não sei, suspirou ela. Ele evita conversar sobre política, comigo. Ficou tão diferente desde a última visita ao Cremlin. Sem dúvida estão arquitetando alguma coisa, se falam assim. Stálin é o comêço e o fim da sua existência, Se Stálin lhe disser: "Você será marechal", êle irá buscar a estrêla de marechal do céu, se fôr necessário.
– Que novas coisas diabólicas estão tramando? pensei comigo mesmo. O Cremlin não fala a tôa.
Mas percebi a importância da conversa com Anna Petrovna sòmente mais tarde, quando estava sentado numa mesa de reunião na Comissão de Contrôle de Berlim.
Foi êsse o seu último dia em Moscou. No dia seguinte, dirigi-me ao aeródromo central. Era cedo, um nevoeiro cobria a terra e tudo estava muito quieto e tranquilo. Numerosas máquinas de transporte, tôdas "Douglas" extendiam as enormes asas sobre o campo. Meu coração estava leve como o ar fresco matinal, calmo e tranquilo como o campo gelado de aterrisagem. Dentro de doze mêses estaria de volta a Moscou. E então a cidade me seria mais querida do que o era agora.
Subiram dois oficiais que, evidentemente, iriam viajar comigo.
– Como vão as coisas, Major? perguntou-me um dêles. Para a Europa?
– Não é má idéia ver como é a velha mãe Europa, acrescentou o segundo.
O aeródromo encheu-se de vida. Outros oficiais chegaram, todos designados para o corpo da Administração Militar Soviética. A.M.S. tinha seus próprios aviões no serviço Berlim-Moscou. De volta de Berlim, para Moscou, vinham tão repletos de carga importante e urgente que mal podiam ganhar altura. Mas de Moscou a Berlim voavam com carga pela metade. Nosso piloto esperou um pouco mais, encolheu os ombros e fez sinal, pedindo permissão para decolar.