I
A música flutuava em ondas acariciantes pelo aposento escurecido, sob os grandes lustres de cristais, entre as enormes colunas de mármore. O ar estava impregnado do calor de corpos humanos, o olor excitante de perfumes sutis, tôda a respiração característica da vida de uma grande cidade. Meti os dedos no cinto e olhei em tôrno, ansiosamente. Quase não podia acreditar que apenas ontem eu sentira as calçadas de Berlim extremecerem às explosões, que ao meu redor homens de capotes de campanha haviam caido para nunca mais se levantar. Eu tinha a sensação de que meu uniforme ainda estava impregnado do pungente odor da capital do Reich, o cheiro de coisa queimada, dos tiros de morteiro, de pólvora queimada.
Da plataforma vinham as palavras familiares de uma canção, por último? Oh! sim, era a canção favorita do motorista de tank, o sargento Petrenko. Jovem, entusiasta, frequentemente e cantava ao som de uma sanfona que havia roubado. Que grande rapaz era Petrenko. Não entrou em Berlim: ficou queimado vivo, no seu tank, em algum lugar das dunas de areia de Brandenburg.
O tenente Belyavsky estava sentado ao meu lado. Havíamos nos conhecido no colégio e mencionado que possuia ingressos para um concêrto de artistas, todos condecorados com a ordem "Artista Meritório da União Soviética".
– Venha comigo, disse êle. Precisa de distração, continuou, batendo-me nas costas.
Foi assim que, no dia seguinte ao meu retorno a Moscou, encontrei-me sentado na Sala das Colunas da Casa dos Sindicatos. Num intervalo fomos ao "foyer". Durante dois mêses eu estivera na secção mais exposta da frente – razão suficiente para observar a vida de Moscou com olhos famintos. Mesmo após breve ausência a gente nota muitas coisas que os habitantes comuns não vêem.
A grande maioria do público consistia de oficiais que trabalhavam no ministério da defesa ou membros da guarnição militar, estudantes dos colégios militares e oficiais da frente de combate, em breve licença em Moscou, aproveitando a oportunidade de, novamente, assistir a um concêrto. Pràticamente, todos os homens estavam uniformizados; qualquer pessoa em traje civil era considerada ou aleijada ou um indivíduo pouco desejável. Havia muitos feridos de guerra, também em uniforme, mas sem ombreiras. Grande parte da assistência, inclusive civis, ostentavam ordens ou fitas.
A autoridade da profissão militar cresceu enormemente durante a guerra. Antes de 1939 os oficiais eram pouco considerados, sendo mesmo tidos como aproveitadores e parasitas, mas, durante a guerra, o corpo de oficial foi aumentado por grande quantidade de oficiais da reserva. O exército tornou-se parte inseparável da família e o povo começou a encarar o serviço militar como obrigação necessária e honrosa. As reformas externas e internas no exército e em todo o país forçaram a todos rever as idéias sôbre a classe militar. Os oficiais da frente de combate eram os mais respeitados. Antes da guerra, os civis contemplavam os militares com certa condescendência, mas agora a situação era diametricalmente oposta. Os homens em vestes azul-escuro eram seres inferiores. A maioria parecia pálida e preocupada; o esfôrco febril do trabalho contínuo deixava a sua marca patente. Também as mulheres tinham o mesmo aspecto macilento de desnutrição crônica, ansiedades e necessidades diárias, nos rostos e nas roupas. Os gestos eram indiferentes, pastosos, fatigados. Até os jovens pareciam ter perdido aquêle ar livre, indomável dos dias de ante-guerra. O cansaço geral de guerra era muito mais perceptível no lar do que na frente.
Os chamados "narcomáticos", altos funcionários dos Comissariados do Povo, constituiam classe à parte, estando sempre bem vestidos, bem alimentados e repelentemente auto-satisfeitos. Eram reconhecidos imediatamente na rua pelas jaquetas de couro marrão claro, que haviam comecado a usar no mesmo dia, ao mesmo tempo. Os americanos haviam enviado essas jaquetas em 1943, como parte do programa de "empréstimo e arrendamento", juntamente com centenas de milhares de caminhões novos. As jaquetas eram destinadas aos motoristas das viaturas, mas estas foram enviadas à frente de batalha, enquanto que aquelas permaneceram em Moscou como equipamento oficial dos altos funcionários dos comissariados. Era um luxo desnecessário para os combatentes e, desde os primeiros dias da revolução, os funcionários soviéticos tiveram uma fraqueza infantil por qualquer espécie de roupa de couro. Em Moscou comentava-se que os americanos ficavam grandemente surpresos ao encontrar altos funcionários soviéticos metidos em uniformes de motorista. Talvez pensassem que isso indicasse a modéstia proletária dos chefes soviéticos.
Depois que Belyavsky e eu havíamos vagueado, sem objeto, durante certo tempo, entre as brilhantes ordens e os rostos pálidos e famintos, no "foyer", detivémo-nos junto da vitrina do bufê. Por detrás do vidro havia doces maravilhosos, da espécie que se encontrava em Moscou apenas nos melhores anos de antes da guerra. Mas que preços! Era doloroso ver homens rodeando a vitrina como se fosse uma peça de museu para depois afastar-se com olhares famintos e mãos vazias.
– Ainda bem que não há mulheres conosco, observou Belyavsky com uma calma estoica. Por que exibem essas coisas! Preferia não ter a imaginação estimulada dessa forma!
A segunda parte do concêrto consistia na execução de uma orquestra de jazz dos Estados Unidos, dirigida pelo "artista meritório da R.S.F.S.F.", Leonid Utiessov. Utiessov era o regente de jazz mais popular da União Soviética: sua missão era adaptar a música de jazz ocidental às constantes exigências do "comando social". O seu repertório consistia de fox-trots, com motivos de canções stakhanovitas e rompantes marchas anti- imperialistas. Mas agora, com o auxílio de trombones e saxofones, celebrava a queda da Alemanha facista.
Utiessov, gordo como uma pipa, exibia-se muito à vontade, no palco, vestindo o tradicional uniforme de artista: completa roupa de gala, com camisa pintada, ostentando na lapela a fita da Ordem da Bandeira Vermelha. Agitava os braços numa febre de exaltação patriótica, esperimentando as últimas gotas de "Ondas de Leningrado" da sudorenta banda.
O maestro havia conseguido grande sucesso com as "suas conversas confidenciais" no palco.
– Meu pai vive no luxo. Eu mesmo ganho vinte mil rublos... Minha filha contribui com um pouco mais, cêrca de cinco mil... e, naturalmente, o seu marido – que é engenheiro – ajuda um pouco... contribui com seiscentos rublos por mês.
Essa conversa foi vivamente aplaudida, mas, naturalmente, teve que retirá-la imediatamente. Comentava-se que, no fim, havia sido chamado pela Narcomvnudel.
Súbito fêz-se silêncio. A orquestra parou inesperadamente, correndo pela assistência um murmurio nervoso e um sentimento de inquietação. No fundo da sala acenderam-se holofotes, focalizando um círculo de luz no palco. Utiessov estava no centro, com uma fôlha de papel na mão, um feixe de cabelo caído sôbre o rosto coberto de suor.
– Camaradas... amigos! gritou.
A sala inteira prendeu a respiração, à espera.
Vagarosa e entrecortadamente, gritou à assistência silenciosa e nervosa:
– "Ordem do dia... do... Comando Supremo... Hoje, dia 2 de maio de 1945, as tropas do Primeiro Exército Ucraniano e as tropas...
Sua voz vinha lá do palco, mas eu não sabia de onde ela vinha, pulsando no meu peito, surgindo na minha garganta, podendo mesmo ser a minha própria voz. Então era a vitória! Verdadeiramente, nas ruas de Berlim, na tôrre de um tank de comando, na existência cotidiana de um soldado, todo o clímax da luta e da vitória era muito mais simples e direto do que ali, na Sala das Colunas de Moscou. Lá era apenas o cumprimento de uma tarefa militar. Aqui era o clímax de anos de tenebrosa expectativa, um momento de alegria infindável e de orgulho irreprimível.
O povo da retaguarda estava preso de uma psicose crônica. Estava cheio de uma inabalável convicção de que o dia da vitória, o dia que marcasse o fim da guerra, seria como um conto de fadas, traria não somente a libertação de todos os pesadelos da guerra, mas traria algo maior e melhor do que existira antes da guerra. Essa psicose da massa, que marcou a fase final da guerra, estava visível nos olhos de todos os homens e todas as mulheres. Cerrando os dentes, avançavam para a vitória como um corredor no seu último esfôrço: um último arranco para romper a fita e depois cair exausto. Em seguida tudo estaria bem. Então haveria um descanso agra dável, a recompensa bem merecida pelo trabalho árduo, suor e sangue.
Fechei os olhos para não ver o homem no palco. A voz aumentava no silêncio, cada vez mais forte, erguendo num grito final:
– "Hoje, depois de acirrados e sangrentos combates, nossas tropas conquistaram o coração da Alemanha hitlerista, a cidade de Berlim".
A sala tôda ergueu-se como um só homem. Um trovão de aplausos extremeceu as colunas de mármore. Com certeza aquelas paredes nunca tinham ouvido semelhante coisa. Nós batíamos palmas até as mãos adormecerem, fitando-nos nos olhos. Durante o aplauso comum, das cerimônias oficiais, o povo soviético evita os olhos dos outros, mas hoje, de nada nos envergonhávamos, hoje poderíamos dar vasão aos nossos verdadeiros sentimentos.
Olhei em tôrno. Não era uma ovação, perfeitamente organizada, em honra do Partido ou de chefes do governo, em que os participantes olhavam, com os cantos dos olhos, se o vizinho aplaudia com entusiasmo, esperando, secretamente, que o representante do Presiduim, presidente do espetáculo, parasse de aplaudir, assim pondo ponto final na demonstração. Pela primeira vez na vida não me sentia envergonhado em aplaudir; tomava parte numa expressão honesta e apaixonada de sentimentos. O povo russo estava agradecendo aos soldados russos por ter lutado bem e com afinco, por ter derramado o seu sangue.
De longa distância as palavras chegavam aos ouvidos: "Para celebrar a vitória de Berlim, ordeno que hoje, 2 de maio de 1945, sejam dadas, às 22 horas, hora de Moscou, vinte salvas de duzentos e vinte canhões, na cidade de Moscou e nas heroicas cidades de Stalingrado, Leningrado e Odessa".
Abandonamos a sala, saindo para a Praça Sverdlov. A púrpura do crepúsculo ainda não desaparecera no horizonte. O céu estava brilhante sôbre a cidade vitoriosa mergulhada na poeira. Os telhados das casas emergiam como maravilhosas silhuetas contra o azul escuro. As noites de maio em Moscou são maravilhosas, mas ao clarão das salvas da vitória, sob o nimbo da glória militar, são fabulosas.
Algures, lá no ocidente, outra cidade, uma cidade vencida, jazia na escuridão total; seus habitantes não sentiam alegria aquêle dia. As ruinas, que antes haviam sido habitações, ainda fumegavam; corpos ainda jaziam nas ruas, corpos de homens que ontem não pensavam na morte. Os sobreviventes encolhiam-se trêmulos nos quartos trancados, sem luz e sem calor, movendo-se, medrosos, ao ouvir qualquer ruido na porta. Para êles o futuro tinha a gelidez do túmulo, embora nem mesmo pensassem no futuro. Ainda não podiam imagi nar tôda a profundidade do abismo em que a arrogância humana os lançara.
O clarão da última salva extinguiu-se. Na calma que seguiu as palavras finais da ordem do dia soaram em meu ouvido: "Glória e honra aos heróis que tombaram na luta pela liberdade e independência da nossa terra natal".
Que o sangue vertido não seja em vão, acrescentei mentalmente.
II
Em Moscou, todos conhecem o momento a Minin e Pozharsky. As figuras de bronze dêsses patriotas russos (dois heróis dos tempos tempestuosos do começos do século XVII, que organizaram e chefiaram as fôrças que libertaram Moscou das tropas polonesas, em 1612), erguem-se na Praça Vermelha, perto dos muros do Cremlin, há muitos anos. As chuvas do outono lavam-nos, os ventos ásperos de dezembro cobrem-lhes as barbas de flocos de neve e a primavera os acaricia. Os anos passam por êles como nuvens no céu. Czares e ditadores vêm e vão por detrás dos muros do Cremlin, mas Minin e Pozharsky continuam invioláveis no lugar.
Persignando-se, às ocultas, as velhinhas de Moscou passam de bôca em bôca que, às vêzes, os gigantes de bronze baixam as pálpebras, cerrando os olhos, a fim de não enxergar o que se passa ao redor.
Contudo, apenas uma vez, durante todos êsses longos anos, encheram os pulmões ao máximo, endireitaram-se, entreolhando-se alegremente, abraçando-se e beijando-se fraternalmente. Juram as velhinhas que, nessa ocasião, o bronze gélido deixou cair lágrimas ardentes. E por que não o fariam, êsses homens do solo russo? Bem posso acreditá-lo e todos os russos, que estavam em Moscou, na ensolarada manhã de 9 de maio de 1945, poderão confirmá-lo.
Durante alguns dias correram boatos de que os aliados ocidentais e representantes do Comando Supremo Alemão entabolavam negociações secretas. Ninguém sabia de nada, com certeza, mas a inquietação aumentou e a atmosfera de expectativa forçada chegou ao clímax.
Na manhã de 9 de maio, quando ainda na cama, fui sacudido por um tremor de terra inesperado. Alguém me sacudia violentamente pelo ombro. Antes mesmo de poder falar, li a notícia nos olhos dilatados e brilhantes de Belyavsky. Vesti-me febrilmente, abotoando a túnica com os dedos trêmulos. Ele incitou-me a apressar-me, o que fiz sem saber porque. Minhas botas não estavam engraxadas e, nêsse dia, deveriam estar cintilando como o sol. Eu precisava por colarinho limpo, polir os botões com a manga do capote. Antes, nunca sentia a necessidade de apresentar o uniforme absolutamente brilhante. Automàticamente passei o talabarte pelas ombreiras do capote, embora os cinturões só fôssem usados sôbre o capote apenas em paradas ou quando de serviço de guarda. Hoje não era dia de parada! Mas que tentassem punir-me por transgredir os regulamentos êsse dia! Voávamos escada abaixo, ansiosos por estar entre o povo, no meio da alegria, do triunfo, do júbilo.
Tenho assistido a muitas comemorações e paradas em Moscou. A impresão mais forte que se tem delas é de que o povo mais se divertiria, de fato, se não fôssem obrigados a demonstrar alegria e satisfação. Eram apenas fantoches e ninguém podia libertar-se do desprezível sentimento da hipocrisia. A maioria do povo tentava evitar pensar que a razão principal da sua presença na comemoração era o forte desejo de não ser colocado na lista, de não ofender pela ausência.
Naquele dia o sentimento era muito diverso. Não houve demonstrações organizadas, nem era isso necessário. As ruas de Moscou estavam repletas de gente, em tôda parte: nas calçadas, nos leitos, nas janelas, nos telhados. No centro as ruas estavam tão cheias que o tráfego de veículo se imobilizou. Tôda a população de Moscou estava a pé.
Quando perambulávamos, um grupo de jovens, vestidas de tecidos alegres e primaveris, vieram em nossa direção, felizes e excitadas, com flores nas mãos. Durante a guerra, as flores em Moscou eram tão raras como no Polo Norte. Comparada com a Europa, eram mais preciosas do que um punhado de orquídeas negras ou rosas, em janeiro. Bem à nossa frente conversavam animadamente um grupo de aviadores. sem dúvida pertencentes à guarnição de Moscou. Um dêles estava em traies civis, com a manga direita vazia. O lado esquerdo do peito estava repleto de ordens e, acima do bolso da jaqueta, brilhavam duas estrêlas douradas de cinco pontas: as estrelas de um "herói da União Soviética". Uma das jovens, os olhos brilhando como estrêlas, correu em direção dos avia dores, como se estivessem procurando-os há muito tempo Beiiou um. dois, todos êles, afetuosamente, enquanto êles pareciam embaraçados. Mas por que? Orgulhosa e feliz, à vista de tôda Moscou, estava beijando os homens que havia arriscado as vidas para defender o céu moscovita.
Ela colocou as flores na mão do homem ferido que, desajeitadamente apertou-as contra o peito, enquanto as pétalas macias acariciavam o metal frígido das ordens. A jovem demonstrava grande afeto ao abracá-lo e não queria soltá-lo. Não disseram uma só palavra, mas o sentimento, sentimento humano ardente era mais eloquente do que as palavras.
Vimos uma velha, de lenco branco, olhando em tôrno. incertamente, como que procurando alguém naquela torrente impetuosa de seres humanos. Sem dúvida não estava habituada ao borborinho da cidade. Era apenas uma mãe russa, iguais as que havíamos encontrado, aos milhares, ao entrar nas vilas evacuadas pelos alemães em retirada. Nem bem entrávamos no limiar das suas cabanas e já as chamávamos "mamãe". Sem uma palavra elas nos metiam um pedaço de pão nos bolsos do capote e, subrepticiamente faziam o sinal em nós, quando nos íamos.
Dois soldados idosos, em uniforme da frente de combate, já batidos estavam encostados na parede de uma casa, os rostos com barba por fazer, as mochilas presas aos ombros. podia-se ver que où haviam vindo diretamente da frente ou estavam de volta. Mas não tinham pressa; hoje não tinham motivo para temer as patrulhas da polícia militar. Aqueciam-se pacificamente ao sol, olhando as pessoas que pareciam ter perdido o juizo, calmamente enrolando cigarros com o favorito tabaco e um pedaço de jornal, como se estivessem na frente de batalha. Qu emais precisa um soldado do que um pedaço de pão no embornal, um pouco de tabaco no bolso e o sol brilhando?
A velha do lenço avançou, incertamente, pela multidão e dirigiu-se aos soldados, falando-lhes com voz agitada e tentando puxá-los pelas mangas. Os dois entreolharam-se. Claro que deviam fazer o que ela pedia: era uma mãe.
Quantos filhos dera por causa daquela manhã brilhante. Os filhos que a sustentariam e a confortariam na velhice haviam-lhe sido arrebatados. Durante a guerra tôda ela reservara uma cara garrafa de vodka, não a trocando nem por um pão. Sofrera fome e frio mas aquela garrafa de vodka era sagrada. Seu filho Kolya caira em Poltava; Pedro a marinheiro, desaparecera numa luta naval; o feliz Grishka esvaira sem deixar vestígios. Mas agora o seu coração não sofria mais na solidão. Saira à rua para encontrar os filhos, convidar os primeiros soldados para celebrar com ela a vitória. Esses dois soldados deveriam conhecer o coração de uma velha mãe, a mãe que tão fre quentemente haviam exaltado nas canções de soldados.
O sol se punha graciosamente numa Moscou jubilosa. Pessoas abraçavam-se e beijavam-se na rua. Estranhos convidavam para entrar em casa. Tudo era pôsto sôbre a mesa, os bolsos, esvaziados. A vida fôra difícil, mas agora tudo estava acabado. Havíamos aguentado e vencido. As btalhas sanguinolentas haviam chegado ao fim, bem como tôdas as dificuldades e privações. O chefe agradeceria o povo pela fidelidade à pátria. O chefe não esqueceria!
Os psiquiatras conhecem muito bem os fenômenos da psicose, mas no seu aspecto relativo às massas continuam inexplicáveis. Entretanto, quem estivesse em Moscou no dia 9 de maio de 1945 e tivesse atravessado tudo que os russos haviam sofrido nos anos de guerra, sabe, exatamente, o que é a psicose da massa. Eu experimentei e vi-a apenas uma vez na vida e é pouco provável que venha exeprimentá-la de novo. Era a descarga de um acumulador do sistema nervoso, a descarga de uma força que estivera acumulando durante anos. Muitos não compreendiam, mas o sentiam.
Nos últimos anos dos estudos no Instituto Industrial, o período de exame era uma época difícil para todos os estudantes. Posteriormente, na frente de batalha, raramente vi um homem abatido antes de ir para o combate. Mas lembro-me que, enquanto esperavam fora da porta da sala de exame, os estudantes sofriam convulsões nervosas. Na frente de batalha um homem pode apenas perder a vida. Nos exames arriscamos a perder as esperanças, o que, para a alma humana é um assunto muito importante. Durante o exame, eu mesmo ficava superficialmente calmo e nunca sentia grande nervosismo, mas depois que êle terminava, deitava-me na cama, durante dias, sem mover-me, como se estivesse paralizado.
Assim se passava em Moscou, naquele dia. Um processo psíquico prolongado e complexo, na alma da nação encontrava vasão, afinal. A eclosão da guerra iniciara o processo. O povo olhava-a com alívio, como uma oportunidade de libertar-se das odiosas condições do regime em vigor. A curva dessa sensação de alívio desapareceu, gradativamente, quando o povo compreendeu que as esperanças haviam falhado. Isso foi seguido de um período de comparativa estabilidade, quando o povo se tornou conscio de sòmente uma coisa: a futilidade de tôda esperança. Então começou o processo de carga dos acumuladores humano. Simultâneamente com o crescimento de uma atitude negativa para com o fator externo da guerra nova esperança surgiu, e começou a deitar raízes – a esperança de conseguir um futuro melhor, pelo próprio poder, quando o inimigo estrangeiro fôsse derrotado. Nêsse ponto, o fator externo tornou-se seu inimigo. Levados pelo ódio ao inimigo e pela esperança crescente de um futuro melhor depois da guerra, o povo atravessou dificuldades incalculáveis. Os russos esmagaram os alemães pelo desejo de vingança, vingança pelas esperanças não realizadas, aquela idéia despedaçada. Mas ainda mais forte brilhava a estrêla guia de uma nova esperança. Nunca teriam lutado pela defesa da pátria que haviam conhecido antes da guerra. A princípio não tinham desejo de lutar, esperando que os alemães os levassem à Terra Prometida, mas depois, voltaram e lutaram porque pensavam que havia visto a Terra Prometida do outro lado.
No dia 9 de maio de 1945 a carga do acumulador psíquico do povo atingira o ponto de saturação e a sobrecarga provocava faiscas. Agora vinha a descarga. Não é de admirar que Moscou vivesse como que governada por impulsos elétricos; não é de admirar que estranhos nos abraçassem e nos beijassem apenas porque estávamos em uniiorme; não é de admirar que homens chorassem abertamente nas ruas.
Nas imediações do Museu Histórico encontrei o tenente Valentina Grinchuk, com um sorriso a brincar-lhe no rosto, como se não pudesse compreender tôda aquela confusão, aquêle excitamento. Ela abrira o seu caminho através da escuridão das florestas, nos seus dias de guerrilheiro, mas aqui era uma criancinha, perdida na floresta primitiva dos elementos humanos. Nem mesmo notava os olhares admirativos que os homens lhes davam, ao voltar-se.
– Felicidades pela vitória, Valia, disse eu, como já dissera dezenas de vêzes aquêle dia.
Fitando-a nos olhos azul-violeta, peguei-lhe o queixo, como se fosse uma criança e ergui-lhe a cabeça. Seus olhos azuis fitaram-me séria e um pouco tristemente.
– Felicidades pela vitória, Valia.
Curvei-me e beijei-a nos lábios, sem encontrar resistência. Ele apenas olhou-me impotente, com olhos dilatados, fitando a distância. Sob o couro duro do cinturão senti a sua figura delicada e infantil.
(Você parece tão pequena, hoje, Valia. Que aconteceu? Você tem mais direito de ficar mais alegre hoje do que qualquer um. Abra os olhos azuis, escancarando-os, criança com ordens no peito e feridas no corpo infantil. Guarde êste dia na sua memória para tôda a vida, êste dia pelo qual você sacrificou a juventude).
Valia e eu caminhávamos em silêncio, cada um mergulhado em seus pensamentos. Se pudesse haver nêsse mundo a felicidade perfeita, então eu estava perfeitamente feliz aquêle dia. O sonho dourado da humanidade, paz no mundo todo descera à terra no ensolarado dia de 9 de maio. As fôrças do mal haviam sido desbaratadas. Os hinos magestosos das potências vitoriosas soavam em todo o mundo, proclamando a liberdade aos povos. Liberdade da ansiedade pelas próprias vidas, libertação do ódio racial do nazismo, da luta de classe do comunismo, libertação do mêdo da própria liberdade. Não eram eloquentes, na sua sublimidade, as palavras da Carta do Atlântico?
Nossos líderes haviam voltado as costas à doutrina, pela qual, era impossível que os sistemas capitalistas e comunistas pudessem coexistir. Com o sangue dos seus soldados, as democracias ocidentais haviam conquistado a amizade indissolúvel do nosso povo. As relações mútuas dos povos e das nações, dos estados e dos governos haviam sido forjadas sob o fogo da guerra. Esses cataclismas históricos varrem da face da terra estados e sistemas políticos, alteram o mapa político do mundo. A guerra, que acabara de cessar, inevitavelmente deveria produzir uma alteração fundamental no sistema soviético. Com muita razão haviam o Partido e o governo dado a compreender isso ao povo, durante os últimos anos da guerra.
Fitei Valia com o canto dos olhos.
– Por que está tão silenciosa? indaguei. Com que está sonhando?
– Oh! não é nada, replicou ela. Apenas sinto-me um pouco desapontada. Enquanto a guerra estava em curso, a gente apenas combatia. Quando a gente parava para pensar nisso, sòmente se poderia esperar que ela terminasse logo. Esse fim parecia esplêndido, mas agora é tão comum. E êste dia passará e mais uma vez...
Não terminou a observação, mas eu sabia em que pensava. De súbito, senti pena. Sem dúvida ela estava pensando no teto de palha da sua vila na floresta, a roldana do poço e jovem descalça com o balde d'água nas mãos. No seu âmago estava ponderando o problema, que agora todos nós enfrentávamos. Ela temia que a esperança, que nos alimentara durante todos os anos de guerra pudesse esvair-se e que, então, mais uma vez...
Através da penumbra que caia sôbre a cidade, os balões de barragem, de alumínio, dançavam, vagarosamente, no céu, subindo pela última vez, para tomar parte na última salva da vitória. Em tôrno do Cremlin foram colocados holofotes anti-aéreos; jovens vestidas nos capotes militares côr de cinza, eficientemente controlavam o mecanismo daquêles gigantescos olhos elétricos. Hoje os seus focos percorriam o céu de Moscou pela última vez.
Despedi-me de Valia e reuni-me a outro grupo de oficiais do colégio. Vagarosamente caminhámos pela Praça Vermelha, pois logo mais os canhões estariam disparando as suas salvas e da Praça Vermelha se tinha a melhor vista. Nenhuma outra comemoração oficial atraira tanta gente junto das paredes do Cremlin. Nada se podia fazer, senão deixar-se levar pela torrente e ser levado para onde ela queria.
No meio dessa fermentação humana, o Cremlin permanecia silencioso e inanimado, como um castelo legendário imerso em sonho encantado. O bloco de granito do Musoléu de Lenine erguia-se acima das cabeças da multidão. Os líderes menores ficavam na plataforma nos dias de parada e demonstrações, sorrindo, amistosamente, de uma distância segura, por detrás das baionetas dos guardas armados da Narcomvnudel. Agora a plataforma de granito estava vazia, e as baionetas estavam ausentes. Aquêle dia a Praça Vermelha pertencia tão somente ao povo.
Centenas de milhares de cabeças. Desde madrugada a Praça Vermelha havia sido invadida pelo povo, que permanecia esperando e olhando, como se aguardando algo. Mas os poderosos alto-falantes, que circundavam a praça, estavam silenciosos. Cada vez mais a praça se enchia de pessoas. Que os atraía ali?
O Cremlin continuava calado no seu sono. Os abetos prateados permaneciam em guarda ao longo das velhas paredes. Os pináculos ponteagudos das tôrres avançavam para o céu escuro. Estrelas côr de rubi brilhavam na imensidão, nos pontos invisíveis da torre.
Quando eu era criança, contavam-me que a estrêla vermelha de cinco pontas era o símbolo do comunismo, o símbolo do sangue vertido pelo proletariado dos cinco continentes. Na verdade, muito sangue havia sido derramado por causa das estrêlas côr de rubi do Cremlin.
A terra começou a tremer sob nossos pés. Além dos contornos escuros do Cremlin o céu enrubeceu com as explosões. O clarão dos canhões, centenas dêles, iluminou as paredes reforçadas, os pináculos das torres, o cubo negro do mausoléu, o mar de cabeças humanas voltadas para cima. Centenas de linhas de fogo percorriam o céu, acima da cidade vitoriosa, afastando a escuridão da noite. O fogo subia cada vez mais alto, permanecendo imóvel no zênite, por um momento, para, em seguida, descer em forma de estrelas pequeninas, coloridas e cintilantes. As estrêlas tremiam, caindo vagarosamente, para, depois, descer cada vez mais depressa, morrendo no vôo. Nem bem o último clarão desapareceu e o ar já estremecia com o trovão de uma salva. A primeira salva da vitória final! Os últimos segundos de uma época gloriosa. Abram os olhos, abram os corações, fixem êsses segundos para sempre. A terra roncou, de novo, o fogo purpurino da salva da vitória iluminou os muros do Cremlin, o céu, e a alma do povo. Mais uma vez os fogos subiram ao céu, mais uma vez as estrelinhas brilharam como raios de esperança, e desapareceram. Era a vitória capturada por uma ponta de luz. A gente via a vitória, sentia o hálito no rosto.
Das névoas do passado surgiu na minha memória outra Praça Vermelha.
A manhã de 7 de novembro de 1941 era sombria e côr de chumbo. A neve ocultava a face de Moscou. O Cremlin sentia-se asfixiado. O inimigo estava às portas! Moscou estava ameaçada! As cremalheiras e os pináculos dos muros de Moscou erguiam-se sombriamente no crepusculo de inverno. As cúpolas das igrejas do Cremlin estavam ocultas sob as camadas de neve. A Praça Vermelha estava fria e nua, naquele dia.
Com equipamento de campanha completo, as tropas marchavam pelo mausoléu de granito. Um homem, em capote militar, de pé na plataforma, estendeu a mão às tropas, como se fosse um mendigo. Com o braço distendido, o homem saudou as divisões que deviam marchar da Praça Vermelha rumo ao combate às portas de Moscou.
Ainda ouço as palavras da marcha militar daqueles dias:
"Por Moscou, pela cidade querida..."
Cumprimos nossa promessa de fidelidade, chefe! Agora é a sua vez.
Mas agora, naquele dia de maio, o Cremlin estava silencioso. As estrelas vermelhas das tôrres brilhavam como sangue. Ninguém sabia o que os homens do Cremlin estavam pensando. De mãos dadas com o povo haviam conquistado a vitória. Estaria êle apertando as mãos no pescoço do povo, amanhã?
Não muito longe de nós, dois operários idosos mal paravam de pé. Usavam gorros de copa quebrada, camisas brancas, abertas no colarinho. Como percebessem ser-lhes difícil permanecer de pé, apoiavam-se um no outro. Talvez tivessem bebido cerveja com o estômago vazio.
Durante longo tempo perambulamos pela praça, sem des tino. As pessoas entreolhavam-se, olhavam em tôrno e continuavam a esperar, presas de evidente espanto. Afinal, quando os ponteiros do relógio da tôrre do Portão Spassakaya aproximou-se de uma hora, todos começaram a mover-se rumo à estação do subterrâneo. Os trens chegavam a 1 hora e precisavam ir para casa a fim de não se atrasarem, no dia seguinte.
– Que pena que o dia passasse tão ràpidamente, disse meu companheiro. Sem dúvida estava faltando alguma coisa.
Entramos no subterrâneo. Em frente de nós sentou-se uma mulher idosa, vestida em uniforme, parecendo ter vindo diretamente da frente de batalha. Os olhos estavam cerrados de cansaço e ela oscilava aos movimentos do trem. Na próxima parada entrou um tenente. Como todos os lugares já estivessem ocupados, olhou as ombreiras de todos os militares sentados. Em Moscou, o regulamento é estritamente observado e os inferiores devem ceder lugar ao oficial superior Os olhos do tenente pousaram na mulher adormecida em uniforme da frente de combate. Avançando, ordenou bruscacamente:
– Levante-se!
Ela abriu os olhos, espantados, pulando automàticamente. O tenente, rudemente, empurrou-a de lado e sentou-se em seu lugar.
Eis aí a recompensa do vitorioso, comentou meu companheiro. Levantar e ceder lugar a outra pessoa.
III
Os dias de maio em Moscou raramente são acompanhados de tempo horroroso como tivemos no dia 24 de maio de 1945. Desde madrugada um véu tênue de chuva caira sôbre a cidade. Em vão contemplavamos o céu na esperança que as nuvens se abrissem. Era como se os poderes celestes deliberadamente pretendessem arruinar o nosso espírito festivo, pois era o dia destinado para uma grande comemoração: por ordem do dia especial do comandante-chefe, deveria haver uma grande parada da vitória na Praça Vermelha. Haveria revista do que havia de melhor. A parada fôra preparada cuidadosamente e há tempo. Os soldados e oficiais, que haviam-se destinguido na guerra haviam sido chamados a Moscou no mês de abril. A escolha caira, principalmente, naqueles que possuiam mais distinções, ordens e medalhas para colocar no peito. Chegando a Moscou, foram designados para unidades especiais, recebendo uniformes novos como depois os vimos nos filmes. Os preparativos especiais da parada prosseguiram durante um mês inteiro, ou mais. O povo de Moscou perdia-se em conjecturas, desejando saber por que aquelas companhias escolhidas e batalhões de homens, com decorações da cabeça aos pés, marchavam completamente uniformizados, pelas ruas de Moscou, enquanto batalhas desesperadas ainda se desenrolavam na frente de batalha.
Os estudantes, que haviam sido escolhidos para participar da parada, usaram mais de um par de solas como resultado dos exercícios diários, de quatro horas, no campo de parada. Como exercícios militares não eram considerados de muita importância no colégio, éramos treinados muito pouco, e, normalmente, eram mesmo esquecidos. Agora éramos obrigados a adquirir o conhecimento de infantaria que nos faltava. Preparando-nos para o desfile, políamos nossos botões e fivelas até brilharem, experimentando os novos uniformes repetidas vêzes.
Agora caía essa chuvinha miuda e constante. Sabíamos que se o tempo fôsse desfavorável, a demonstração civil seria mantida. Os soldados estão habituados a ficar molhados até os ossos.
Na Praça Vermelha, bandeiras vermelhas, gigantescas, pendiam, em dobras, nos edifícios da Comissão Executiva de Tôda a União e no Museu Histórico. Em plena luz do dia, a praça parecia muito diferente do que à noite, sob os clarões das salvas. Sombria e nua, como se a estrada não terminasse, mas tivesse ali o seu início, uma estrada cinzenta para um futuro cinzento.
Olhar a direita! Lá, na plataforma do mausoléu, estava o chefe, nossa tristeza e nossa glória. Em homenagem à vitória, hoje abandonara a modéstia do seu habitual uniforme de parada e estava vestido num uniforme brilhante de generalíssimo. Quando Joseph Vissarionovich assinou a ordem conferindo o pôsto de generalíssimo da União Soviética ao Camarada Stálin, êle devia ter sorrido forçadamente, pensendo nos seus colegas, Franco e Chiang-Kai-Shek.
A parada iniciou-se com o escolhido regimento do Comissariado do Povo da Defesa e da guarnição de Moscou. Seguiu-se o regimento do Primeiro Exército Ucraniano, que sempre fôra lançado no mais árduo campo de combate, e que havia invadido Berlim.
Os regimentos da vitória e da glória passaram marchando: guarnições dos tanks, de macacão azul e capacête de couro, unidades da cavalaria dos cossacos, em compridos capotes do Cáucaso e gorros vermelhos e azuis; aviadores com as faixas douradas, homens de vários tipos, várias línguas. Agora todos tinham uma coisa em comum: no peito de cada um ardia a chama da intrepidez e do heroismo, as ordens e medalhas da grande guerra patriótica, as provas dos fieis serviços de guerra à pátria.
À frente de cada regimento marchavam os principais generais das diversas frentes de batalha! Uniformes azul-cinzento, cintos prateados e botas de verniz. Ouro nos botões, nos quépis, nas ordens. As estrelas brilhavam e as medalhas cintilavam. Estavam transformados, pois antes eram modestos generais proletários.
Amplificadas pelas baterias de alto-falantes, as saudações dos chefes do partido e do governo ecoavam sôbre a Praça Vermelha até o exército vitorioso.
Uma após outra, as bandeiras capturadas das divisões alemãs, os estandartes das tropas de assalto da S.S., foram lançadas ao pé do mausoléu. Símbolos da glória desaparecida, que antes haviam flutuado orgulhosamente na Europa, jaziam num monte informe, desolado, ao pé do muro do Cremlin.
A despeito da chuva, a despeito dos uniformes ensopados, sentíamos o coração alegre e feliz. Era o último ato solene da da cadeia. Mas hoje o velho sargento não sabia se tinha orgulho das ordens ou dos bigodes.
Muitas transformações haviam ocorrido nos anos da guerra. Antes, outros da Cruz de S. Jorge haviam atirado fora as medalhas ou enterrado bem no fundo da terra. Mas hoje o velho sargento marchava pela Praça Vermelha, pelas paredes do Cremlin, com quatro cruzes de S. Jorge no peito, ao lado das ordens soviéticas. Depois disso, que alguém me diga não ter havido revolução no regime soviético, que as fazendas coletivas não seriam abolidas, amanhã! E não estavam, de novo, abertas as igrejas, não tocavam os sinos dos campanários?
Antes da guerra, centenas de milhares de sacerdotes haviam sido liquidados como propagadores do "ópio para o povo". Dos poucos que haviam permanecido livres, o povo Soviético sabia apenas uma coisa, com certeza: eram agentes da Narcomvnudel. Semanalmente, a coberto pela escuridão, escorregavam pelas portas da Narcomvnudel com as informações sobre os seus rebanhos.
Mas agora proclamava-se a liberdade religiosa. Em Mos cou abrira-se um colégio preparatório de sacerdotes e organizara-se uma Comissão Especial dos Negócios Religiosos, sob as ordens do Conselho dos Comissários do Povo da U.R.S.S., chefiado pelo Camarada Karpov. A igreja fôra atrelada ao serviço do Estado. Agora ela era mais prudente e obedeceria.
Apenas uma coisa nos surpreendia em tôda essa comédia. As igrejas recentemente abertas estavam repletas de gente. Os casamentos religiosos tornaram-se muito em moda, especialmente no interior. A despeito de tudo, não fôra possível arrancar a religião da alma do povo. Até eu mesmo sentia cócegas em entrar numa igreja aberta, mas, como estudante de um colégio do Cremlin, conhecia muito bem certas coisas. Não poderia arrostar a possibilidade de, mais tarde, o diretor do colégio mostrar-me uma fotografia minha, na igreja, com a observação:
– Parece que se esqueceu que os estudantes dêste colégio estão terminantemente proibidos de se deixarem fotografar em lugar que não seja o estúdio especial do colégio.
Era esse o passo falso que, frequentemente, servia de base para a expulsão do colégio.
Agora, de tempo em tempo, os sinos de igreja, milagrosamente salvos da destruição, soavam por Moscou. Apressadamente foram trazidos sacerdotes da Sibéria, diretamente das grande luta. Muito haviámos sacrificado por êsse dia: cidades florescentes e vilas, milhões e milhões de vidas humanas. As feridas sangrentas que aqueles que andavam em busca do "espaço vital" nos haviam inflingido ainda permaneciam por muito tempo. Durante muitos anos o arado do agricultor revolveria ossos estrangeiros no solo russo e, durante muitos anos lagartas queimadas de tanks seriam encontradas no meio dos campos de plantação.
Mas tudo isso havia ficado atrás. Havíamos emergido da luta como heróis e vitoriosos. Através do trabalho árduo haveríamos de curar as feridas e começar uma vida pacífica e feliz. Começaríamos nova vida e todos estaríamos melhor do que antes da guerra. Muita coisa esquecemos na consciência da vitória, enquanto encarávamos, com esperança, o futuro.
Um sargento idoso, atarracado, marchava com passo pesado. Era mesmo um homem forte como a rocha. Bigodes espessos, como os exibidos nos retratos do antigo campo de cossacos de Zaporozhe; rosto queimado, traços delineados. No peito luziam fileiras de condecorações e distinções.
A vida tôda havia brandido o martelo e a foice, mas nunca pudera trazer a sua representação num campo vermelho, com todos os enfeites das adulações comunistas. Não obstante, hoje, estufa o peito, com as várias ordens ostentando êsses símbolos.
Na frente de batalha, o sargento tivera menos preocupação com a sua cabeça do que com os bigodes luxuriantes. Nos anos de coletivização, encourtara-os sobremodos, a fim de não ser confundido com um "kulak". Naqueles dias as coisas eram bem piores do que na frente de combate. Naqueles dias, ninguém sabia se ou quando o destino bateria a sua porta, mas agora parecia soprar um novo vento. Era até possível deixar crescer os bigodes, de novo.
Durante a guerra, muitos jovens soldados e oficiais haviam deixado crescer a barba e o bigode. Antes da guerra essas liberdades eram arriscadas. Barba pequena era considerada como a de um trotskysta; barba espessa, indicava um "kulak"; barba comprida, um padre. Em seguida, havia barbas de comerciantes, barbas de arcebispos e barbas de general. O mes mo se passava com relação aos bigodes. Um bigode pequeno era considerado como o de um "guarda branco"; bigode maior sugeria um policial do Czar. Em virtude dessas distinções sociais superficiais podia a gente ver-se por detrás das barras trabalho forçado para o altar. Antes de desaparecerem as calosidades das mãos, já estavamerguendo preces pela vitória e rogando ao céu a saúde do chefe. O povo ouvia, com prazer ostensivo, os sinos. Mas ninguém tinha qualquer dúvida que os novos sacerdotes estavam em contacto íntimo com a Narcomvnudel.
A Narcomvnudel nunca se esquece dos antigos clientes. Quando estes cumpriram oito ou dez anos de pena no campo de punição, ao serem soltos, a maioria dos prisioneiros é convidada a servir como informantes. "Justifique a confiança que depositamos em você, ao devolver-lhe a liberdade" é a maneira com que agem. Nos países reacionários, quando o prisioneiro terminou sua condenação, é entregue ao seu próprio destino. Mas nós mostramos maior preocupação por êle. A liberdade é-lhe concedida como um ato de graça, pelo que deve êle estar agradecido, trabalhando para justificar a "confiança".
Numerosas condecorações brilhavam na Praça Vermelha. Durante a guerra, foram criadas muitas ordens. Até elas haviam evoluido para trás. As medalhas da Glória, instituidas em 1944 e a medalha pela "Participação na Grande Guerra Patriótica de 1941-5" eram empréstimo direto das faixas negras e côr de laranja da Cruz de S. Jorge, do Czar. Novas ordens, a Ushakov e a Nakhimov, foram instituidas para almirantes e capitães da marinha, bem como medalhas, semelhantemente denominadas, para marinheiros. Os generais do exército eram adornados com as ordens de Suvorov e Kutuzov; os oficiais superiores, com as ordens Alexandre Nevsky e Bogdan Khmielnitzky. Mas a mais largamente distribuida de tôdas era a Ordem da Guerra Patriótica. Não qualquer guerra, mas a Guerra Patriótica! Para os marechais havia uma especial Ordem da Vitória, feita de ouro, platina e diamantes, no valor de 200.000 rublos em ouro.
Embora continuassem de cinco pontas, as estrelas dessas ordens eram muito semelhantes às conferidas por Catarina II. E, de novo, havia regimentos de guardas, distinções de guardas. Mas antes da guerra? Deus protejesse quem deixasse escapar a palavra "Guardas"!
A saudação impesoal "Bom dia, Camarada Coronel" havai sido substituida pelo oficial "Zdravia Zhelayu" (Desejo-lhe saúde). E as ombreiras douradas? Nos dias passados, a pior acusação que um oficial da Narcomvnudel poderia fazer contra alguém era chamá-lo de "portador de ombreiras douradas". Os generais, que marchavam no desfile, como os retratos dos antigos generais czaristas, usavam cintos moqueados de prata. A Internacional fôra substituida pelo novo Hino da União Soviética. Até o dístico "Proletários de todos os países, uni-vos!" havia desaparecido da página fronteira do Pravda.
Segundo um recente decreto do Supremo Soviet da U.R.S.S., ao aposentar-se, os generais deveriam receber um trato de terra vitalício, e empréstimos sem juros para construir casa de campo. Tínhamos, pois, a aristocracia do socialismo! O único obstáculo a essas regalias era a circunstância de que inúmeros generais soviéticos haviam terminado a carreira na Narcomvnudel.
O povo simplesmente ficava tonto com tôdas essas inovações.
O exército vitorioso marchava em passo de parada pela Praça Vermelha. O éco das batidas dos pés repercutia no meu coração. Para mim, aquêle dia, o exército não significava apenas o serviço militar: no exército eu encontrara a minha pátria. Antes da guerra, eu vivera num mundo ilusório de conceitos novos comunismo, socialismo, fazendas soviéticas, fazendas coletivas. Os jornais haviar-se dado números astronômicos, belas palavras e dísticos, conversas sobre tratores e fábricas, novas casas e trabalhos de construção. Não obstante, como todos, na minha própria vida experimentara dificuldades e privações inumanas, embora eu as justificasse frente as necessidades do "grande ressurgimento.
Mas quando a guerra eclodiu, enxerguei tôda a miserável impotência do mundo em que o homem soviético vivia hipnotizado pela propaganda. Entretanto, quando ela prosseguiu, reconheci algo maior, reconheci a nação. Pela primeira vez senti ser parte da nação e não mera unidade numa classificação marxista. Não fui o único a compreender isso; milhões compartilharam dêsse sentimento. Não era o resultado das novas manobras políticas do Cremlin, repentinamente voltadas para o aspecto nacional e patriótico. Essa manobra era uma simples consequência, uma saída forçada da situação que havia criado.
A guerra agitou as profundezas do país, trazendo à superfície coisas que até então haviam estado ocultas. Os enfeites artificiais foram colocados no fundo e o verdadeiro poder, o homem, restaurado ao primeiro plano. O homem como êle realmente é. O homem nasce no sangue e na agonia e no sangue e na agonia os homens aprendem a conhecer-se.
À luz da vida real, entre os homens vivos, tôdas as teorias do materialismo dialético desapareceram e foram postas à margem. Compreendi que tudo pelo qual havíamos feito sacrifícios incríveis, por mais de vinte anos, era, se não o produto da fantasia delirante de um experimentador, de qualquer modo apenas uma experiência que exigia grande avanço. Agora, quando marchava pela Praça Vermelha ainda não via a saida, mas estava totalmente convencido da falsidade daquilo pelo qual havíamos vivido antes da guerra.
A parada da vitória estrondava pela Praça Vermelha. Soldados de macacão azul esticavam as cabeças das torres abertas dos tanks pesados. Orgulhosos das ombreiras douradas e das fitas de S. Jorge, agitavam as bandeiras vermelhas, saudando as paredes do Cremlin e o seu chefe.
Generalíssimo, hoje o saudamos e felicitâmo-lo pela vitória! Como nos sauda e nos felicita.
Entretanto, lembre-se: pensa no verão de 1941? Recorda-se como, de repente, mudou de cantoria? "Caros irmãos, irmãs, cidadãos e cidadãs..." disse você. Não podíamos acreditar nos ouvidos. Durante vinte e cinco anos você colocou irmão contra irmã, irmã contra irmão. Até aquêle verão de 1941 a palavra "cidadão" era comumente usada apenas pelo investigador, sentado por detrás da mesa, na Narcomvnudel, usando-a come se estivesse se dirigindo a um elemento inimigo estranho. Onde tinham ido os seus comunistas, os seus comissários, os funcionários políticos e outros "camaradas"? Você tinha razão em chamar-nos "cidadãos e cidadãs". Não éramos seus camaradas! Quando sentiu a corda em tôrno do pescoço pediu auxílio ao povo. E nós viemos. Morremos, mas lutamos. Sentíamos fome, mas trabalhámos. E vencemos. Sim, nós vencemos, e não o Generalíssimo Stálin e o seu partido comunista.
Mas hoje, em homenagem à vitória, dou três vivas estrondosos. Que as paredes do Cremlin tremam!
Assim chegou a vitória. E, sempre que meus pensamentos se voltam para o dia – V, recordo a agitação no coração, a sensação surgida na garganta. O vitorioso ergueu a cabeça e cantou a sua canção da vitória. E êle exultou com o caminho que surgia a sua frente, o caminho para o futuro.