Gregory Klimov «A máquina do terror»

Capítulo 2. SOLDADO E CIDADÃO

As salvas da vitória ecoavam por Moscou, enquanto a luta prosseguia na frente de batalha. Superficialmente, a cidade exibia poucos sinais da guerra. Qualquer pessoa que tivesse ouvido os desesperados combates aéreos sobre Moscou, teria ficado espantada por não ver destruições que pudessem ser atribuidas aos bombardeios. Na rua Gorky, sòmente uma casa fôra destruida pelas bombas. Mais de uma vez passei pelas ruinas sem notá-las, pois tapumes, pintados como gigantescos cenários de cinema, as ocultavam dos olhos dos transeuntes. Raramente se viam vestígios de bombardeio, nada existindo que indicasse ataque planejado do ar.

O mesmo se passava em Leningrado. As casas estavam esburacadas pelas granadas, quase todas as casas de madeira, dos subúrbios, haviam sido derrubdas e empregadas como combustível, pelo próprio povo, durante o bloqueio. Mas também em Leningrado não havia vestígios extensos de bombardeio.

Em Moscou, muitos havia que pensavam se não seria possível os alemães deixarem cair pelo menos uma ou duas bombas sôbre o Cremlin, apenas por brincadeira, para atirar estilhaços das vidraças sôbre os seus ocupantes. Nenhum dano poderia ser feito, já que se construira um abrigo resistentissimo, para o governo, na estação mais próxima do "metro" Kiroviskaya, ligada ao Cremlin por um túnel. O povo de Moscou acreditava, firmemente, que o abrigo fôra construido muito antes do início da guerra. Em 1942, o governo foi transferido para Kuibishev, mas os jornais orgulhosamente publicavam que o próprio Stálin permanecia em Moscou. Claro que os moscovitas acrescentavam que se construia um túnel, a tôda pressa, de Moscou até aquela cidade do Volga.

Por volta de 1944, a maioria dos departamentos do govêrno havia voltado a Moscou e a cidade se afogava numa atividade efervescente, quase que de tempos normais. Os balões de barragem, colocados para proteção de Moscou, ao anoitecer absoletos. O principal indício de que a guerra ainda estava em curso era o grande número de uniformes nas ruas. Havia mais gente em uniforme do que civis.

O comando de Moscou tinha grandes patrulhas na cidade, que não apenas examinavam, cuidadosamente, os documentos, como também verificavam se os uniformes estavam escrupulosamente limpos e as botas e botões, polidos. A patrulha postada nas rampas da estação do "metro" Baumanskaya, ficava um tanto preocupada com os uniformes dos soldados que, durante certo tempo, vinham ocupando essa estação com regularidade. Usavam as ombreiras de soldados rasos, mas o campo vermelho era cercado de uma orla dourada pouco comum, e quase todos vestiam túnicas novas de oficiais, de tecido inglês verde. Além disso possuiam botas novas de couro russo, objeto de inveja da patrulha, cinturões de oficiais com uma estrêla vermelha, gorros de pele caidos sôbre uma das orelhas. Até os gorros não eram de lã comum, mas de um cinza especial. Para culminar, muito dêsses soldados traziam pastas de documentos. No exército, a função das mãos é alizar as dobras dos culotes ou fazer continências e não carregar pastas de documentos.

No tempo, havia apenas oito estudantes ao todo, no quarto ano do Departamento Alemão da Faculdade Ocidental. Haviam sido recrutados em tôda a U.R.S.S. e a maioria dêles tendo frequentado a universidade, antes, cujo conhecimento era bastante elevado, bem como as exigências dêles requeridas pelo currículo do colégio. O trabalho era duro e intenso. Além das matérias normais do quarto ano eram obrigados a passar pelas chamadas "matérias espécies" dos cursos anteriores, como sejam "regulamento militar", "equipamento do exército", "organização do exército" e "treinamento especial do exército". A frase discreta "treinamento do exército" abrangia o serviço secreto e defesa e, naturalmente, o "exército" relacionado com o Departamento Alemão, não era o soviético, mas a fôrca alemã. Fora da sua própria província, nenhum oficial soviético conhecia tanto o Exército Vermelho, como um aluno do nosso colégio tinha que saber sôbre tôdas as formações do "exército", quer alemão, quer inglês, ou qualquer outro exército relacionado com determinado departamento.

Para o estudo das matérias especiais, o material educativo geralmente consistia em lições escritas ou regulamentos de serviço do respectivo exército. Fra proibido tomar notas dos assuntos que deveriam ser mantidos em segrêdo e aquêles relativos ao passado imediato. As notas em duplicata e cuidadosamente numeradas, podiam ser obtidas contra a assinatura do aluno e depósito dos documentos pessoais. Essas notas, contudo, podiam ser usadas apenas na sala em separado, adrede preparada. O conteúdo das anotações estava sempre em dia e nunca atrasado mais do que um mês. A informação abrangia não somente a posição verdadeira, no momento, mas até assuntos que estavam sendo planejados ou em estágio preliminar. Frequentemente anexavam fotocópias de documentos originais. A qualidade da fotografia indicava se os documentos haviam sido fotografados legalmente, por assim dizer, ou se havia sido feita em condições menos convenientes e normais. Às vezes a gente logo podia afirmar que fôra tirada com uma máquina microscópica, dessas que podem ser cons truidas num botão, no fêcho de uma bolsa feminina, etc.

A história do Partido Comunista Alemão, como aprendemos, era muito diferente do que se encontra nos manuais comuns. O instrutor geralmente se referia ao Partido com a frase "nosso potencial", ou outros têrmos mais precisos, mas podia-se assistir a uma aula de duas horas sem ouvir absolutamente as palavras "partido comunista". Essas explicações teriam sido de grande interêsse, especialmente aos comunistas alemães, pois muitos creem lutar por uma Alemanha melhor. Um movimento político é, até certo ponto, sòmente uma armadilha para os crédulos. Naturalmente os chefes, que estão em contacto com o Comintern, estão melhor informados sôbre esta questão delicada.

Uma ocasião, um dos alunos perguntou ao instrutor:

– Por que não trazemos comunistas da Alemanha, agora?

– Pense bem e terá a resposta, respondeu êle. Não posso gastar o tempo dos outros estudantes com explicações tão elementares. Não queremos ninguém. São-nos mais úteis lá no exterior.

Além de ensinar em nosso colégio, o instrutor também o fazia na Escola de Serviço Secreto do Exército Vermelho, sendo sua matéria Trabalho Subterrâneo na Retaguarda.

A despeito do que êle dizia, bem examinadas as coisas, certas perguntas continuam sem respostas. Que aconteceu ao enorme Partido Comunista Alemão? A Alemanha foi a primeira potência a entrar em relações comerciais e amistosas com a Rússia Soviética. Possuia o Partido Comunista mais forte e o proletariado industrial mais definido da Europa e, para nós, russos, era o brilhante exemplo da consciência e solidariedade proletária. O comunismo aprofundara suas raízes nas almas dos alemães. Tornara-se axiomático que a Alemanha seria o próximo élo da cadeia da revolução mundial. O quépi de Thalmann era-nos tão familiar quanto a barba de Karl Marx. E agora...

Agora os alemães lutavam como demônios e nossa propaganda excluia todos os princípios de aproximação das classes e, em lugar, todos os alemães eram rotulados como facistas e tudo que nos aguardava era "matar os alemães". Hitler não poderia ter metido todos os comunistas da Alemanha em campos de concentração. Nossa propaganda não chegava ao ponto de afirmar isso. O nazismo parecia estar-se tornando cada vez mais forte entre êles; que, então acontecera à consciência comunista, à solidariedade proletária, à luta de classe?

Depois de certo tempo, o colégio foi transferido para novas acomodações num edifício em frente à Academia Stálin de Mecanização e Motorização do Exército Vermelho, à rua Lefortovo. No antigo regime, o edifício fôra uma escola "Junker" e, em seguida, escola de artilharia. O lugar não era nada confortável e cheira à barraca. Por outro lado, essa mudança solucionou um dos problemas mais importantes do nosso comando: agora todos estávamos sob um teto, só, atrás de uma cêrca. No meio havia um pátio de parada e uma casa da guarda nos fundos.

Naqueles dias outonais de 1944, frequentemente se tinha uma vista edificante: estudantes vagueando pelo pátio de baixo da guarda de outros estudantes. Os prisioneiros deixavam os cinturões e divisas e carregavam vassouras e pás. Com perfeita equanimidade varriam as fôlhas que o vento outonal arrebatava das árvores. O trabalho era tão produtivo quanto o transporte de água com um balde furado. Mas os prisioneiros não se aborreciam com isso, pois o meio-dia ainda estava longe e a vida era cacête naquele cercado.

Outros estudantes esforçavam-se em animar os prisioneiros.

– Kolya, de novo aqui? Que feito heróico fêz agora? Quanto tempo pegou?

Outros detinham-se a olhar um dos filhos de generais entre os prisioneiros, pois a situação era mesmo interessante: o pai, general e o filho catando cigarros sob os olhos da guarda.

As vítimas geralmente eram os alunos do primeiro ano, a maioria dos quais ainda não se acostumara à disciplina militar. O castigo consistia principalmente em varrer as fôlhas e catar pontas de cigarros. Era êste o método empregado para expurgar-lhes quaisquer desejos de pensamento independente e habituá-los a completa submissão às ordens. Alguém havia gravado, cuidadosamente, as seguintes palavras na porta da casa da guarda: "Ensiná-lo-ei a amar a liberdade".

Esta frase estava em moda no exército, naquela época. Os generais gritavam-na aos oficiais, quando percebiam sinais de indisciplina, durante as inspecções. Os sargentos gritavam-na nos rostos dos recrutas, geralmente acompanhadas de expressões pesadas e seguidas de murros.

Para essa frase havia uma resposta misteriosa, mas eloquente: "até o primeiro combate...". Há um bom motivo para a alteração nos novos regulamentos militares, em consequência do que os oficiais marcham, não à frente da unidade, mas à retaguarda.

Muitos oficiais ficavam verdadeiramente irados com os métodos empregados para treinar soldados da reserva antes de transferí-los para a frente de batalha. Eram treinados, quase que exclusivamente, como se estivessem num campo de paradas; aprendiam a obedecer às ordens "direita volver", a fazer continências aos oficiais, segundo o regulamento, a marchar em ordem, etc. Durante o treinamento todo usavam armas de imitação e, com muita frequência, chegavam à frente sem ter dado um único tiro de fuzil ou outra arma. Os próprios resmungavam, a princípio, mas depois, acostumavam-se e a isso se submetiam. Essas coisas frequentemente tinham a origem em circunstâncias locais, mas a orientação geral vinha de cima e possuia um significado mais profundo.

Para a produção de uma guerra, não importa que um ou outro homem caia; o que importa é que se obedeça às ordens. E isto é um fator decisivo no treinamento.

O inverno passou. Gradativamente acostumei-me, de novo, ao estudo e fiz amizades. Não me lembro como fiquei conhecendo o tenente Belyavsky. Com trinta e um anos de idade, esguio e esbelto, parecia senhor de uma calma imperturbável e indiferença, mas, na realidade, era de natureza apaixonada e capaz de grandes entusiasmos. Havia estudado na Universidade de Leningrado e, em seguida, feito cursos especiais de preparatório para trabalhar no exterior. Conhecia várias línguas. Durante a guerra civil espanhola fôra enviado à Espanha e, passara por espanhol, por muito tempo. Por alguma razão misteriosa permanecera no pôsto de tenente, quase dez anos, enquanto que todos os seus antigos companheiros espanhóis haviam agora atingido postos superiores e de maior responsabilidade.

Amava profundamente o teatro e sempre tinha bilhetes para todas as estreias em Moscou, um mês antes. As vêzes eu pensava que êle sofria da moléstia espiritual que afeta tantas pessoas em Leningrado, e que se voltava ao teatro para esquecimento temporário, porque havia atravessado o pior período do bloqueio dessa cidade, nunca se conseguindo obter da sua parte qualquer palavra a êsse respeito.

O colégio inteiro conhecia Valentina Grinchuk, geral e afetuosamente chamada pela abreviação Valia. Quando lutava com os guerrilheiros, fôra ferida sèrimente, tendo sido trazida por via aérea e enviada a um hospital nos arredores de Moscou. Uma vez convalescida, fôra mandada ao nosso colégio para estudar. Parecia uma criança e sua cabeça não passava da minha cintura. Em tôdas as cantinas do distrito militar de Moscou não havia botas que lhe servissem, de modo que tiveram que mandar fazer-lhe especialmente. Entretanto, poucos estudantes poderiam usar tantas condecorações, verdadeiras ordens de batalhas, como essa criança, que por contrastarem tanto com o seu rosto claro, infantil e inocente, faziam a gente olhar quando passava. Até os oficiais de pôsto superior involuntàriamente a saudavam, primeiro.

Antes da guerra, havia sido uma jovem de quatorze anos, correndo pés descalços, pela vila da floresta, afim de ir buscar um balde d'água no poço. Nunca ouvira falar em Hitler ou na Alemanha. Então, numa bela manhã de junho, a guerra violou a paz do seu coração infantil. Os alemães ocuparam a sua vila e, na primeira embriaguez da vitória fácil, fizeram o que quiseram no novo "espaço ocidental". Com o instinto de criança ela começou a odiar aquêles homens estranhos de uniforme cinza esverdeado.

Por acaso ela entrou em contacto com os membros de uma unidade regular de guerrilheiros, que fôra destacada do Exército Vermelho, para operar à retaguarda dos alemães. A princípio, empregaram-na como informante. Nunca ocorreu aos alemães que essa franzina menina de cabelos lisos, que não aparentava mais do que doze anos, pudesse estar ligada ao perigoso movimento dos guerrilheiros. Pouco depois, ela ficou órfã e reuniu-se aos guerrilheiros, como metralhador, sabotadora, franco-atiradora, oferecendo-se para perigosas missões, como ligação, executando temíveis atos de espionagem. Muitos alemães que a julgavam apenas uma criança tiveram que pagar a negligência com a vida. Ela não possuia um conhecimento real da vida e, talvez por essa razão, enfrentasse a morte sem receio, a alma presa ao combate.

Apenas uma coisa lhe faltava nunca sorria. Não conhecia o riso, a felicidade, a alegria. A guerra lhe roubara a oportunidade de conhecer o alegre aspecto da vida.

Agora era uma atraente jovem de dezoito anos, frequentando uma escola privilegiada de Moscou. Seus contemporâneos ainda frequentavam a escola, mas esta criança usava a insígnia de primeiro tenente, passara anos no combate, a túnica de oficial estava repleta de condecorações de serviço ativo e fitas prateadas e douradas de ferimentos.

Um oficial aviador, estudante do segundo ano, uma vez convidou Valia para ir a um concêrto, no que ela rapidamente concordou. Ninguém sabe exatamente o que sucedeu aquela noite. Apenas se soube que êle tentou tratar Valia da mesma maneira pelo que pensava que as jovens que haviam lutado na frente estavam acostumadas a ser tratadas. Oficiais que não haviam estado na frente de batalha também sempre cometiam o mesmo êrro. Quando Valia, àsperamente, lhe disse aonde ir, êle gritou-lhe, irado:

– Todos sabem como conseguiu essas ordens! Vocês tôdas são...

Pouco depois foi descoberto na rua, com a cabeça ferida por um golpe de coronha de revólver.

Quando o chefe do colégio, o General Biyasi mandou chamá-la, pedindo explicações, ela responde brevemente:

– Ele deve julgar-se feliz por ter saído com vida.

O general não soube o que dizer e apenas mandou que Vali lhe entregasse a pistola. Mas depois disso até os críticos mais presunçosos das mulheres combatentes trataram-na com respeito.

II

Fevereiro de 1945. A contra-ofensiva alemã em Ardennes banhou-se no próprio sangue. Os exércitos aliados peparavam-se para atravessar o Reno e penetrar a notória Linha Siegfried. Após prolongados preparativos, nossas tropas, no Oder, iniciaram a ofensiva, quebraram a resistência da frente oriental e alargaram a cabeça de ponte, prontas para dar o último golpe no coração da Alemanha. A guerra estava no fim.

Embora pareça estranho, as condições em Moscou haviam melhorado um pouco, em comparação com os anos anteriores; possívelmente as dificuldades haviam sido estabilizadas e o povo se acostumado a elas ou talvez os sucessos na frente de batalha e a esperança de um rápido final da guerra tornassem mais fácil suportar as dificuldades. No exército e em todo o país a moral soergueu-se. Sucedera um milagre: em vez de ficar exausto pelos longos anos de guerra, o exército estava técnica e moralmente mais forte. No final estava usando grande quantidade de aviões, tanks, armas automáticas, munições e equipamento; em outras palavras, agora possuia tudo o que faltava, desastrosamente, no início. Isso era difícil de compreender e muitos de nós quebrávamos a cabeça com o problema.

Seria ingenuidade supor que êste milagre fôsse resultado somente dos nossos esforços militares e que a transformação moral havia ocorrido na alma da nação durante a guerra; nem poderia ser simplesmente atribuido isso apenas ao auxílio aliado. Ao findar a guerra a indústria de guerra soviética tinha um potencial inferior ao do início. O fator moral desempenhou grande parte, especialmente quando se recorda que, no comêço, êle falhou completamente às expectativas do Cremlin; mas depois, em resultado de hábil propaganda interna e dos êrros do inimigo, êle chegou a uma estabilização. O auxílio fornecido pelos aliados era enorme, pois aliviou o fardo dos soldados russos e do povo russo, compensou muitos defeitos do aparato militar do Cremlin e abreviou a duração da guerra. Mas nenhum dêsses fatores determinaram o fim da guerra.

No dia em que o Pacto de Amizade havia sido assinado com a Alemanha, ordens telegrafadas de Moscou ordenaram que se pusesse em prática um plano secreto de todas as fábricas e indústrias soviéticas. Durante os três mêses em que trabalhei nas oficinas da Rostselmash, tôdas que, em tempos normais produziam para fins pacíficos, estive metido com a produção de material militar. Não só isso, mas desde o primeiro dia da existência da fábrica, os assim chamados "departamentos especiais" haviam estado a trabalhar, ininterruptamente na produção de armas militares.

No decurso do meu trabalho, frequentemente tive que visitar os depósitos de mercadorias na estação de Rostov e não podia deixar de ver os infindáveis trens carregados com armamentos que estavam sendo produzidos pelas indústrias de Rostov, dedicadas à produção de tempos normais. Devo esclarecer que não me refiro às fábricas normais de armamentos, que possuem sua própria linha de estrada de ferro e cuja produção não vinha a público.

Como eu, os outros estudantes do Instituto Industrial tinham que fazer o treinamento da prática, sendo enviados a centenas das fábricas maiores da União Soviética. Todos descreveram o mesmo quadro em todos os lugares. Os preparativos abertos para a guerra eram óbvios, mesmo em setembro de 1939. A única incerteza era contra quem seria lançada a guerra. Havia muitos que preferiam afirmar que o Cremlin havia resolvido unir-se à Alemanha na divisão do mundo. Os acontecimentos na Finlândia, nos Estados Bálticos e na Bessarábia, que logo seguiram o Pacto, pareciam confirmar êsse ponto de vista. De qualquer modo, o Cremlin já havia resolvido que chegara o tempo para uma solução ativa dos problemas da politica externa, de modo que preparava tôda a sua maquinária de guerra para a luta. A amizade com a Alemanha foi feita para servir o mesmo fim. Submarinos comprados da Alemanha chegaram em Kronstad, onde a letra "U" foi substituida pela letra soviética "shch", pelo que os marinheiros soviéticos os chamavam de "pique", pois a letra "shch" era a primeira da palavra russa "Shchuka". Esses submarinos serviram de prótotipos para os estaleiros soviéticos fabricarem "piques" às dúzias. Mais tarde, ordenou-se a fabricação de navios de guerra na Alemanha, mas os armamentos deveriam ser feitos pelas indústrias Kirov, em Leningrado, onde deveriam ser montados, porém êles não chegaram a tempo.

Num certo momento dêsse "período de amizade" – os historiadores poderão estabelecer a data exata – ocorreram mudanças inesperadas nas relações entre as "partes contratantes". O apetite de ambos os sócios havia aumentado imensamente. Aparentemente, Hitler, embriagado com o sucesso, agora sentia-se seguro de que poderia comer sòzinho o bolo, sem o auxílio do seu amigo. Qualquer oficial do Estado Maior Soviético riria imediatamente se alguém lhes dissesse que o ataque alemão à Rússia Soviética apanhou o Cremlin de surpresa, e com justiça, pois nenhum outro regime no mundo é tão bem informado da situação dos países vizinhos do que o Cremlin.

O mito do "ataque perfídio" inesperado foi divulgado a fim de justificar o casamento desigual do Cremlin ao mundo. Semanas antes do início da guerra na frente germano-soviética, inúmeros cidadãos da União Soviética ouviram a rádio inglêsa informar a transferência de 170 divisões alemães para a fronteira oriental do Reich. Teriam as inocentes crianças do Cremlin algodão nos ouvidos?

Quem quer que não tivesse ouvido as transmissões de rádio poderia tirar as próprias conclusões do desmentido oficial da agência Tass: "A imprensa estrangeira, recentemente, tem apresentado informações provocativas de concentração de fôrças alemãs na fronteira soviética. Fontes bem informadas autorizaram a agência Tass a declarar que essas informações não têm o menor fundamento". O povo soviético conhecia a Tass muito bem para saber que a verdade era justamente o contrário do que afirmava.

No começo da primavera de 1941 o Cremlin sabia que a guerra seria inevitável nos próximos mêses. Houve uma sessão extraordinária do Politburo para baixar os decretos básicos sôbre a estrategia a ser adotada no caso de uma "mudança de situação", isto é, no caso de guerra. Organizou-se uma Junta de Defesa, nessa ocasião, embora sua existência se tornasse pública sòmente depois da eclosão da guerra.

O Cremlin conhecia perfeitamente a relação do poderio, muito mais do que o Supremo Comando Alemão. A despeito de tôda a enorme preparação para a guerra sabia que a Rússia estava em desvantagem, nêsse aspecto. A única esperança de salvação repousava em fatigar o inimigo por meio de uma guerra prolongada, na total exploração do vasto território do país e das reservas humanas e materiais e, portanto, na aplicação da estrategia de Kutuzov adaptada às exigências da guerra moderna. Foi mais ou menos nessa época que o Cremlin se decidiu pela entrada falsa no jogo. Essa forma de defesa estratégica deveria custar caro ao país; era completamente contrária à propaganda de ante-guerra do Cremlin, que sempre falava numa "guerra sangrenta no território inimigo". Naturalmente êsses novos planos não poderiam vir a público, constituindo o segrêdo mais profundo do Cremlin desde os primeiros dias do Politburo.

Mesmo nêsse estágio as linhas de retirada foram previstas e determinanadas aproximadamente, as perdas presumíveis e as reservas disponíveis foram pesadas; até Stalingrado foi aceita como o ponto mais distante da retirada. De sangue frio estabeleceram planos de operações que envolviam milhões de vidas humanas e os resultados do trabalho, suor e sangue de uma geração inteira. Os membros do Politburo podiam sentir as cordas em tôrno dos pescoços e era uma questão de salvar a própria pele. O preço...

Ainda nêsse estágio a guerra foi dividida em fases, sendo calculado o que deveria ser mantido em reserva para a "terceira fase", ou melhor, tudo que não parecia ser necessário para a "terceira fase" foi condenado a ser sacrificado na "segunda frase".

Quando a guerra eclodiu, os homens foram enviados à frente de combate com uniformes e armas velhas e imprestáveis. Contudo, milhões de jogos completos de equipamento moderno, armamentos e armas automáticas jaziam, empacotadas para resistir os danos do tempo, em depósitos lacrados: estavam destinadas para a "terceira fase". Quando os alemães avançaram mais ràpidamente do que os planos do Cremlin haviam previsto, os estoques foram destruidos ou cairam nas mãos do inimigo, mas, de modo algum, foram distribuidos às fôrças antes da previsão.

Na "segunda fase" muita coisa não andou de acordo com os planos do Cremlin. Na maior parte erraram na estimativa da condição moral do povo. O povo russo tornou muito claro que não tinha o menor desejo de defender o Politburo. A moral das tropas era muito mais baixa do que se esperava, portanto a perda do material humano era muito mais elevada. A fim de dominar a situação, o Cremlin foi obrigado a apelar para medidas extraordinárias e declarar a guerra como guerra patriótica pela sobrevivência da pátria. A perda de território estava mais ou menos de acordo com o "plano", mas a realização do "plano territorial" custou mais vidas humanas do que se esperava. As perdas de material corresponderam aos cálculos; as forças enviadas para a defesa recebiam sòmente equipamento e armas antiquadas, dispondo de aviões e tanks dos tipos mais velhos. O mesmo se deu com o material humano. Homens de sessenta anos e mulheres foram sacrificadas na "fase de defesa", enquanto as reservas da "terceira fase" ou a "fase da ofensiva" aguardavam no Extremo Oriente o dia em que seriam lançadas.

No momento crítico novo e favorável fator veio em auxílio. As democracias ocidentais, que no período da amizade Stálin-Hitler haviam sido atacadas como inimigos ferrenhos, agora eram aliados da União Soviética.

Foi então que começou o grande jôgo. O Cremlin mostrou que, se não era inteligente, ao menos era astuto. O seu fim era poupar as próprias reservas e obter todo o auxílio possível das democracias ocidentais, e então, no fim, mostraria o seu triunfo, as reservas prontas para a "terceira fase", e o urso russo não só permaneceria vivo, mas avançaria firme para a vitória.

Quanto mais o Exército Vermelho avançava para o ocidente, na terceira fase, maior era a quantidade de equipamento de primeira qualidade de produção soviética que chegava à frente de combate. Não era segrêdo aos oficiais do estado maior que em 1945 grandes quantidades de armas tinham a marca de produção de antes da guerra.

Mas, como desde os primeiros dias o Cremlin havia poupado a mão de obra menos do que o material, no final da guerra havia uma aguda falta de soldados. Além do mais, as indústrias, não consideradas como de "importância de guerra" não mais podiam realizar suas tarefas, de modo que, na "terceira fase", havia uma desastrosa falta de transportes e outros detalhes de "importância não de guerra", enquanto tanks e aviões de fabricação soviética eram abundantes. A maioria dos caminhões de transporte militar e semelhantes eram de fabricação americana. A situação era ainda pior no tocante à alimentação. A falta de alimento era terrível, mas, afinal de contas, isso não era nada fora de comum nas condições soviéticas. Era muito mais importante manter a rápida fabricação de indústria de guerra.

Era essa a explicação teórica dos sucessos da guerra apresentada pelos círculos militares de Moscou.

A conferência de Yalta veio e passou. Depois de terem resolvido os problemas militares, os Três Grandes voltaram-se para o problema de restaurar a ordem no mundo de após guerra.

Em conexão com a conferência de Yalta, os "altos círculos" do Cremlin falavam abertamente de duas tentativas em entrar em negociações de paz entre Hitler e os soviets. A primeira tentativa de sondagem do terreno para uma paz em separado na fronteira oriental foi feita por Hitler quando o Exército Vermelho firmou posição na margem direita do Dnieper. O Cremlin estava muito disposto a conversar e estipulou que a observância da fronteira soviética de 1941 era o requisito mais importante. Isso demonstra como o Cremlin pouca esperanças tinha de grandes sucessos. A única preocupação era salvar o flanco ferido de novas preocupações. Mas Hitler ainda duvidava que a roda da história começara a girar contra êle e exigia a Ucrânia, na margem direita do Dnieper como preço. Nêsse momento os dois oponentes totalitários mostram as cartas na mesa; ao menos eram mais francos do que o eram com os seus opositores democráticos.

A segunda tentativa em concluir paz em separado foi feita por Hitler, quando o laço já apertava o pescoço da Alemanha, imediatamente após a conferência de Yalta. Na véspera da partida de Stálin para Yalta, não hesitou em entrar em negociações preliminares com Hitler. Quem lhe ofereceria mais, Hitler ou as democracias? Esta vez exigiu-se de Hitler um pagaemnto caríssimo pelas exigências imoderadas das primeiras negociações. Agora o Cremlin não mais insistia apenas na retenção das fronteiras de ante-guerra, mas exigia-se movimento livre nos Balcãs, posse dos Estreitos e enormes concessões no Oriente Próximo. Esta vez foi Hitler quem ofereceu as antigas fronteiras suas. Agora o sonho do domínio mundial se aninhara em outro cérebro. A política de manter os trunfos escondidos nas mangas era justificada; trouxera não apenas a salvação mas também a possibilidade de continuar o jogo.

Hitler rejeitou, totalmente, as condições do Cremlin, pois aceitá-las seria uma derrota moral, preferindo sofrer a derrota moral e física e arrastar a nação inteira, o seu Reich, para o buraco, juntamente com êle.

A conferência de Yalta pareceu ter conseguido a completa unanimidade dos componentes e, então Stálin abandonou todos os pensamentos de paz em separado com a Alemanha, concentrando tôda a atenção na partida diplomática com as democracias ocidentais. No castelo de Livadia sentiu-se mais confiante do que em Teheran, mas mesmo agora preferiu não exigir muita coisa, mas sim aplicar a tática de extorquir auxílio e concessões em troca de promessas e garantias que não tinha a intenção de manter. Ainda era muito cedo para exibir sua força, que havia apenas começado a desenvolver-se, e da qual o próprio Cremlin não tinha idéia da imensidão. Era melhor ganhar tempo e, nêsse interim, obter o máximo pelas negociações.

As potências ocidentais demonstraram ser muito complacentes, pois estavam bastante convencidas de que o Cremlin não estava suficiente forte para dominar a Europa e que o golpe de graça seria dado por êles, enquanto que o urso soviético permaneceria preso na fronteira da Polônia. Fizeram muitas concessões, na crença de que o Cremlin não estava em condições de se aproveitar delas. Apenas o prudente e esclarecido Churchil percebeu o perigo, de onde resultou a sua proposta em abrir uma segunda frente nos Balcãs para proteger a Europa do perigo vermelho avançar do oriente. A execução dêsse plano teria custado aos aliados muito mais do que a invasão do Atlântico, de modo que os opositores venceram, decidindo-se dar ao urso soviético a oportunidade de queimar as patas tirando as castanhas, mas meteu-as na própria bôca, enquanto prosseguia na queixa da sua fraqueza a fim de obter a entrega de novos recursos. Perfeitamente convencidos de que êle sangrava à beira da morte, os aliados ocidentais prontamente atiraram-lhe alguns milhares, na forma de entregas a "empréstimo e arrendamento" que o urso, prudentemente, trancou no seu depósito.

Então as "partes contratantes" apertaram-se as mãos e assinaram o comunicado, que, pelo menos uma delas não acreditava no momento, não tendo a intenção de observar os têrmos. O comunicado foi publicado e tôda a humanidade, com exceção dos signatários, nele acreditou, com êle regozijando. O futuro descortinava-se diante de nós como um ensolarado dia de maio ou como o céu azul acima da praia de Yalta. Na verdade, a única coisa que o russo comum sabia da política atual era que um quilo de pão de Moscou custava cinquenta rublos.

Em meados de fevereiro de 1945 fiz os exames finais do curso. Como eu havia estudado várias matérias nas outras escolas, fiquei livre dez dias antes que os meus colegas. Depois de muitas dificuldades consegui uma licença de uma semana. Obtive uma "autorização" oficial do colégio e um passe de viagem, de modo que podia visitar minha cidade natal no sul da Rússia.

A viagem não foi muito alegre. A cidade deu-me a mesma impressão que se tem de um jardim de outono após uma noite tempestuosa: galhos nus, folhas caidas no solo, ramos quebrados. No meu coração havia desolação e vazio.

Antes da guerra Novocherkass fôra famosa pela sua juventude entusiástica. Havia cinco institutos educacionais superiores para o seu milhão de pessoas e os estudantes dominavam a cidade. Mas agora eu caminhava pela rua principal da estação, ao meio dia, e encontrava sòmente algumas mulheres velhas. Era o quadro típico da retaguarda soviética. Caminhei sob as colunas frias da minha "alma mater". As imagens que a minha memória conjurava do passado eram mais belas que a realidade presente. Mas havia a realidade mudado muito, ou as minhas perambulações pelo mundo faziam-se aplicar outra medida?

Nas esquinas, mulheres em andrajos, sentadas, vendiam doces de frutas, feitos em casa. Como em 1923! Apenas agora eu tinha que dar ao meu priminho uma nota de trinta rublos para comprar a mesma quantidade de sementes que, como cinco kopeks se comprava naquele tempo. As necessidades, a pobreza, eram tão impotentes, tão sem o menor raio de luz que mesmo as modestas condições de antes da guerra pareciam idade do ouro. O que achávamos ser miséria agora se transformava em prosperidade.

Quando saí da estação de Moscou e mergulhei no seio da atividade e da agitação da grande metrópole, senti-me aliviado como uma pessoa de volta para casa, de um cemitério. Em Moscou havia o renascimento da vida esperançosa, mas em todo o interior do vasto país os homens sentiam apenas a mão pesada da fome, presos de apenas amargo desespêro. Agora, depois que o jugo alemão fora abalado, algo muito pior o substituira: o temor do ajuste de contas. Os homens não sabiam que crimes haviam cometido; sabiam apenas que não poderiam escapar do ajuste. Enormes áreas da União Soviética e mais da metade da população estiveram debaixo da ocupação alemã e, agora, sôbre tôdas essas pessoas pendia o espectro de um julgamento por "traição à pátria".

Em fins de fevereiro, todos os formados do nosso curso foram enviados para a frente e removidos para o exército ativo; antes de fazer o exame oficial deveriam ter um período de experiência no serviço ativo. Fui designado para o comando do Primeiro Exército Byelorusso.

Durante aquêles dias, as divisões do Primeiro Bielorusso e o Primeiro Exército Ucraniano lutavam desesperadamente para vencer os últimos empreendimentos da técnica de fortificação germânica. Depois de romper a Muralha Oriental, iniciou-se a luta para alargar a cabeça de ponte do Oder. Inspiradas pelos sucessos, as tropas soviéticas ardiam em penetrar no coração da Alemanha de Hitler, em Berlim.

Em fins de abril, justamente quando os combates de rua em Berlim haviam atingido o máximo, fui chamado, inesperadamente, a Moscou.


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