I
– Kli...mov!
Quando o chamado atravessou o pano espesso do capote militar, parecia provir de uma distância imensa. Sem dúvida eu estava sonhando! Estava tão quente dentro do capote, que o puxei até as orelhas. A cama de ramos de abeto tão macia e confortável. Claro que havia sonhado!
– Capitão Kli...mov!
De novo o grito perturbou o silêncio noturno. Em seguida, alguém murmurou algo ao guarda que ia e vinha entre as fileiras de barracas.
– ...Há ordem para se apresentar imediatamente ao Quartel-General da frente de combate, disse a mesma voz ao guarda.
Em seguida, novamente, ouviu-se o chamado:
– Capitão Klimov!
– Que inferno! Quartel-General! Não é brincadeira! pensei eu, atirando de lado o capote e sentindo, imediatamente, o ar húmido do pântano vizinho, de mistura com o olor distinto e onipresente dos soldados. Mosquitos invisíveis zumbiam. Com precaução, para não incomodar os companheiros, rastejei em direção ao fundo da barraca.
– Que há? perguntei, ainda sonolento. Quem está procurando? Você falou "Klimov"?
– Camarada Capitão, está aí um mensageiro do Quartel-General, informou o sentinela, através da escuridão.
– Onde está? por que êsse barulho?
– Camarada Capitão, ordens para o senhor.
Um sargento de gorro de pele, entregou-me um documento e eu, à luz de uma lanterna, li:
"Capitão G. P. Klimov deve apresentar-se ao Departamento do Pessoal do Quartel-General da frente de Leningrado, no dia 17 de julho de 1944, às oito horas".
Ao pé do papel havia uma nota escrita do meu comandante: "Ordem para apresentar-se imediatamente".
– Um, deve ser interessante! pensei. Há alguma coisa a mais? perguntei ao sargento.
– Tenho ordens para levá-lo ao Quartel-General, incontinente, foi a sua resposta, ao mesmo tempo que, com o pé, baixava a alavanca de partida da sua motocicleta.
Na barquinha esqueci, ràpidamente, o cansaço. Passámos os buracos da estrada da floresta, atravessámos uma vila deserta, semi-destruida. Projetando-se contra o céu, que clareava vagarosamente, avistei os chaminés escuros, os telhados despedaçados pelo fogo da artilharia. As rodas da motocicleta giraram na areia; depois, atravessámos uma valeta coberta de mato e, logo mais, respirei ao sentir a superfície plana da estrada de Leningrado.
A terra estava envolta na cerração da madrugada e agora as casinhas dos subúrbios de Leningrado começaram a surgir entre o verde das árvores. Na distância erguiam-se os chaminés das fábricas da cidade e dos estabelecimentos industriais.
Que se ocultava por detrás dêsse chamado urgente do Quartel-General? Lá na barraca os meus companheiros estariam despertando. Quando vissem o lugar vazio sentir-seiam satisfeitos por não terem sido êles os chamados, mas, depois, ao saberem que eu fôra conduzido, urgentemente, ao Quartel-General, esfregariam o nariz, pensativamente, e trocariam olhares incertos.
Naquela ocasião eu estava servindo numa fôrça K.U.K.S., fazendo um curso de treinamento avançado para oficiais da frente de Leningrado. A K.U.K.S. era um tipo de formação militar pouco comum, uma "loja de curiosidades" como os próprios membros a chamavam. Era formada de homens relativamente jovens, de barba e bigodes de tamanho e aspecto extraordinários. Aquelas pessoas taciturnas tinham o estranho hábito de usar gorro de pele no tempo mais quente. De fato, eram antigos oficiais e comandantes de destacamentos de guerrilheiros que estavam sendo expurgados das idéias e espírito das guerrilhas, sendo-lhes incutido a disciplina do exército.
Pouco depois da libertação de Leningrado do bloqueio alemão, em janeiro de 1944, a cidade celebrou a entrada triunfal dos guerrilheiros da província de Leningrado, mas, dentro de um mês, as Brigadas Especiais Narcomvnudel re ceberam ordens urgentes para dirigir-se à cidade a fim de desarmar os super-zelosos homens das florestas. Os guerrilheiros comportavam-se como os conquistadores de uma fortaleza inimiga e estavam usando granadas de mão e pistolas automáticas contra a milícia que tentava chamá-los à ordem. Consideravam cada miliciano um inimigo hereditário e jactavam-se, abertamente, do número de homens que haviam liquidado.
Depois que os guerrilheiros foram desarmados, foram enviados, silenciosamente, em caminhões de gados, para os campos especiais de Narcomvnudel. Os jornais haviam glorificado os "selvagens" gerrilheiros como heróis nacionais, mas quando êles surgiram das florestas, à luz do dia, imediatamente cairam sob os olhos argutos da Narcomvnudel. Os guerrilheiros que eram membros dos destacamentos regulares, formados com pessoal do Exército Vermelho, e os semiregulares sob o comando de oficiais enviados pelo comando central e obedecendo a ordens emanadas da central de rádio e fôrça aérea, eram aceitáveis. Mas quem tivesse lutado nas florestas e tivesse sido forçado a recorrer da "requisição de alimentos" direta, quando os suprimentos de vodka e toicinho chegavam ao fim – Deus os ajudassem! A N.K.V.D. passou-os por um severo expurgo antes de transferi-los para o exército regular, e os comandantes, enviados a receber treinamento especial na K.U.K.S. como o da frente da Leningrado.
Quando estava na K.U.K.S. muitas vêzes ouvi as enigmáticas perguntas:
– De onde é? Do oitavo?
– Não, do Nono, era a resposta relutante.
Depois de certo tempo, descobri que o "Oitavo" e o "Nono" eram batalhões de assalto da frente de Leningrado. "Batalhão de Assalto" era o nome oficial dos batalhões de punição, onde os oficiais serviam como soldados comuns e como tal eram enviados ao combate. Se retornassem vivos, recebiam de novo o pôsto de oficial. As perdas dos batalhões de assalto montavam, regularmente, a 90 e até 95 por cento da fôrça, em cada emprêsa.
Quando o Exército Vermelho começou a ofensiva e começou a libertar as áreas ocupadas, todos os antigos oficiais soviéticos dessas áreas foram arrolados e, como os guerrilheiros, mandados para os campos especiais da Narcomvnudel. Aquêles que a N.K.V.D. não julgava dignos de morrer nas prisões, atravessavam um expurgo preliminar e, em seguida, eram enviados para o departamento da "instituição de limpesa", a um batalhão de assalto, onde tinham muita oportunidade de purgar o crime contra a pátria com o sangue. Êles que lutem! Depois da guerra haverá tempo de sobra para serem tratados apropriadamente!
Os que sobreviviam ao ordálio de fogo, geralmente eram encaminhados diretamente do hospital – para livrar-se de um batalhão de assalto o preço era sangue derramado – para a K.U.K.S. para readaptação final. Muitos dos meus companheiros de K.U.K.S. tinham talões de pagamento que, após a anotação "soldado" ou "infante" davam o pôsto de "comissário" de regimento" ou "comandante de esquadrão" em colchetes.
Sim, havia algum material humano interessante em nossa K.U.K.S.! Na realidade era uma reserva permanente para a frente de Leningrado. Os oficiais já readaptados não podiam ficar sem fazer nada, sendo-lhes exigido que fizessem o papel de soldado, com seriedade. O então comandante de uma companhia de metralhadoras era obrigado a aprender a desmontar e montar uma metralhadora, tipo Maxim, enquanto o comandante de um batalhão de atiradores recebia instruções do funcionamento do insuperável fuzil "1891".
Havia grande porcentagem de ucranianos na K.U.K.S. Quando o Exército Vermelho se retirou da Ucrânia, muitos soldados, provindos dessa área, simplesmente atiraram as armas na valeta mais próxima e "foram para casa", mas, quando os alemães começaram a ser expulsos, novamente, êsses "filhos da terra" foram recrutados apressadamente, receberam armas e foram enviados, como estavam, mesmo sem uniforme, para a frente de batalha. Os bancos do Dnieper estavam semeados de cadáveres em roupas civis.
Os soldados comuns eram apenas revertidos ao serviço ativo, geralmente sem qualquer expurgo preliminar da N.K.V.D. O ajuste de contas entre o Estado e o indivíduo poderia ser resolvido mais tarde; no momento, havia mais necessidade de carne para canhão do que mão de obra nos campos de concentração.
Embora nunca viesse à baila, havia constantes tensão entre os ucranianos e os russos na nossa K.U.K.S. Geralmente os ucranianos mantinham-se calados, como irmãos mais jovens, com a consciência pesada. Os russos apenas deixavam escapar um bem-humorado "Ah! êsses Khokols!", expressão de desprêzo pelos ucranianos.
– Ah! êsses alemães! replicavam os ucranianos. Abusam de nossa confiança êsses malandros!
Um dia, circularam questionários entre os batalhões da K.U.K.S.; o comando estava tentando verificar quais os frequentadores do curso que eram tártaros da Criméia. Lembro-me de ter observado o rosto ansioso do tenente Chaifutinov, quando se sentou para encher as perguntas referentes a sua família. Havia boatos que, por ordem do Cremlin, tôda a população tártara da República Autônoma da Criméia deveria ser deportada; vários milhões de pessoas deveriam ser transferidas para a Sibéria, e extinta a república, em virtude da "atitude desleal para com o regime soviético durante a ocupação alemã". Esta ordem provocou conversas como estas entre os membros do nosso curso:
– Sabe o que os Kalmukus fizeram em Stalingrado? Os alemães atacaram, mas êles prepararam o caminho. Cortaram as gargantas de regimentos soviéticos inteiros durante a noite.
– Gostaria de saber porque os cossacos do Don e do Kuban nada fizeram, interrompeu alguém.
– Que mais poderiam os cossacos fazer? observou um terceiro. Não se encontra um único cossaco verdadeiro nas fôrças cossacas, hoje em dia.
Esses oficiais nada viam de surpreendente no fato de os Kalmuks terem exterminado os regimentos, mas surpresos porque os cossacos nada haviam feito, pois, no passado, os distritos dos cossacos do Don e do Kuban haviam sido famosos centros de oposição ao regime soviético. A fome artificialmente criada em 1933 havia sido compelida nêsses distritos com uma brutalidade mais do que usual. Até 1936 os cossacos haviam sido o único grupo nacional ainda não convocado para o exército regular. Portanto, parecia incrível que os Cossacos, que eram famosos pelo amor à liberdade, não se haviam revoltado contra os sovietes.
Entre os frequentadores do curso havia muitos antigos oficiais políticos do Exército Vermelho. Grande número de pessoas dessa categoria havia perdido a cabeça já nos campos especiais de Narcomvnudel, e os poucos sobreviventes dêsses campos e dos batalhões de assalto deveriam ser extraordina riamente apegados à vida. Nem bem haviam chegado na K.U.K.S. já começavam, com verdadeira esperteza comunista, a agarrar-se aos postos anteriores como pastores do rebanho humano. Apesar de tôdas as vicissitudes e expurgos que ha viam experimentado na N.K.V.D., e mesmo na K.U.K.S., conse guiam, de certo modo, a chegar às posições de comandantes de subdivisões de nosso curso. Os outros oficiais aproveita vam-se de tôda oportunidade para se dirigir a êles como "Ca marada Diretor Político" ou "Camarada Comissário", embora êsses postos houvessem sido abolidos pelo exército, por certo tempo.
A despeito, ou mesmo em virtude de a "loja de curiosidades" ser essa coleção variada de inúmeros tipos, sempre havia muitas idas e vindas. Quase diàriamente misteriosas comissões visitavam-nos em busca de várias espécies de "mercadorias". Por exemplo, uma comissão veio a procura de guerrilheiros para a Iugoslávia. As condições eram as seguintes: 25.000 rublos em dinheiro, um mês de licença, e, em seguida, um salto de paraquedas naquele país. Nossos homens não precisavam de treinamento especial para essas atividades. Houve um afluxo de candidatos, a maioria sendo antigos guerrilheiros que não conseguiam suportar a disciplina militar.
Depois houve a procura de homens com sobrenomes poloneses, para recrutas no Exército "Nacional" Polonês. Logo mais houve uma convocação de candidatos para a Escola de Inteligência do Exército Vermelho. Condições: pôsto acima de major e curso ginasial no mínimo.
Essas "atividades comerciais" eram consequência da grande falta de quadros especiais, principalmente no exército. A K.U.K.S. continha uma massa de material humano fresco e ainda não aproveitada, não disponível senão há pouco tempo, porque havia estado isolada nos bandos de guerrilheiros ou nas áreas ocupadas.
A maioria dos companheiros da K.U.K.S. eram homens quase que do outro mundo. Um jovem havia fugido, através da Europa, de um campo de prisioneiros de guerra alemão na França. Quando chegou à área russa, sob ocupação alemã, foi capturado pela segunda vez, pôsto num campo de concentração, e, de novo, fugiu. Duas vêzes havia sido encostado à parede e caira seriamente ferido, escapando por ter rastejado por entre os cadáveres dos companheiros, no túmulo comum. Durante dois anos lutara com os guerrilheiros nos pântanos e florestas nos arredores de Leningrado. Como recompensa pelo amor à pátria, teve que ser expurgado num campo Narcomvnudel, experimentara os banhos de sangue num batalhão de assalto e, afinal, encontrara o pôrto seguro da K.U.K.S.
Pràticamente, todos os membros do curso possuiam um passado semelhante. Eram os poucos sobreviventes. Claro que não gostavam muito de contar a história de suas vidas.
Nessa companhia, eu era um verdadeiro recruta, tão inocente como um recém-nascido. Havia sido enviado a K.U.K.S. depois de servir no 96.º Regimento Especial de Oficiais da Reserva. Fôra ferido num combate em Novgorod e permanecera três mêses num hospital.
Foi durante minha estada no hospital, o antigo Palácio dos Engenheiros de Leningrado, que toda a cidade se alvoroçou com as notícias inesperadas. Por ordem do Conselho da Cidade de Leningrado, tôdas as ruas e praças importantes e históricas deveriam voltar a ter os antigos nomes pré-revolucionários. Assim, o Prospekt de 25 de Outubro mais uma vez foi denominado Prospekt Nevsky; o Campo de Marte ficou livre do seu complicado nome revolucionário, tornando-se novamente Campo de Marte. As mudanças tiraram nossa respiração. Se as coisas continuassem nêsse pé, as fazendas coletivas seriam extintas...
O Quartel-General da frente de Leningrado estava se diado no antigo edifício do Quartel-General, de forma de ferradura, em frente do Palácio do Inverno. O caminho para o Departamento do Pessoal passava pelas famosas e históricas Arcadas do Quartel-General. Fôra através delas que os marinheiros revoltados e os guardas vermelhos de Petrogrado haviam invadido o Palácio de Inverno em 1917.
Nos largos parapeitos da sala de recepção encontrei vários oficiais sentados, balançando as pernas suspensas.
Dos oficiais na sala de recepção, dois sabiam finlandês, um, rumeno, e os outros tinham conhecimento de escola de alemão e inglês. Eu sabia muito bem o que quer dizer "conhecimento de escola", mas quando menos oportunidade tem a gente, maior é o desejo de chegar ao misterioso lugar onde se exige o conhecimento linguístico. Tudo que, de certa forma, se associava ao pensamento de "exterior", automàticamente estimulava a curiosidade e a imaginação.
Não pude deixar de sorrir. Pelo menos ali não estaríamos em contacto com as cinco partes da culatra do fuzil "1891"! Estendi-me confortàvelmente num banco afastado e tentei continuar o meu sono rudemente interrompido. Quando chamaram o meu nome entrei, juntando os calcanhares com tôda a precisão exigida pelo regulamento do exército de Hitler e apresentei-me em alemão, com uma voz tão explosiva que o major, sentado à mesa, recuou alarmado. Fitou-me, atônito, possivelmente pensando se deveria perguntar-me como se dizia "mesa" ou "janela". Em seguida fêz-me uma pergunta em russo. Respondi em alemão. De novo êle falou em russo e, mais uma vez, respondi em alemão. Afinal, êle teve que rir. Quando me convidou a sentar-me, perguntou:
– Onde aprendeu isso, Capitão?
Tirei os documentos relativos a minha vida civil, antes de ser convocado – por milagre ainda os tinha intactos – e coloquei-os sôbre a mesa.
– Ótimo! observou. De fato tomei-o por um alemão, a princípio. Vou apresentá-lo ao coronel, imediatamente.
Conduzindo-me ao aposento vizinho, apresentou-me ao chefe do Departamento do Pessoal.
– Camarada Coronel, disse êle, penso que temos um genuino candidato, esta vez! Não precisa preocupar-se com a língua, pois me atrapalhou. Pensei que fôsse ilusionista.
Colocando meus papéis sôbre a mesa, retirou-se.
O coronel seguiu o seu conselho e não se incomodou com os exames da língua. Imediatamente começou a falar no aspecto moral. A confiança moral e política de um oficial é o fator mais importante e está êle sujeito a exames severos a êsse respeito.
– Como vê, Capitão Klimov, iniciou, estamos pensando em mandá-lo para uma alta escola privilegiada e de responsabilidade do Exército Vermelho. Compreenderá melhor quando eu descrever a posicão. Moscou exige um número fixo de candidatos todos os mêses. São mandados para Moscou e lá todos os que não conseguem passar nos são devolvidos. Todos os reprovados são enviados para uma companhia punitiva, observou, casualmente. com um olhar significativo. Todos os dias Moscou nos bombardeia com pedidos: mande-nos homens". Mas nós não os temos. Esse é um aspecto do problema. Agora, o segundo. Você está na K.U.K.S e há uma porção de homens de passado duvidoso na K.U.K.S. Não peço a sua fôlha de serviço. Mas uma coisa é certa: é preciso que não tenha a menor mancha. Do contrário se verá num lugar diverso do que pretendemos enviá-lo. E nós temos que mandá-lo! Compreende?
Gostei da franqueza pouco comum do coronel. Afirmeilhe que estava muito imaculado.
– Não me importa que seia ou não imaculado, replicou êle. Na sua K.U.K.S. há alguns companheiros extraordinários. Ontem mesmo um dos antigos coronéis jurou-me que era tenente de infantaria. Queríamos mandá-lo para a escola do corpo de inteligência. mas êle firmou o pé como um burro e disse que não sabia escrever.
Não fiquei nem um pouco surpreso. Homens que haviam ocupado postos de responsabilidade e atravessado os exames preliminares para entrar na K.U.K.S. perdiam todo deseio pelos postos e pela responsabilidade e possuiam sòmente um desejo – uma vida calma.
– Você pode aronitetar algo semelhante a isso, prosseguiu o coronel. Portanto, renito que isto é um assunto sério. Se achamos necessário mandá-lo, nós o mandaremos! E nada de espertezas ou informaremos que se recusa a cumprir ordens militares. E você sabe o que isso quer dizer. Côrte Marcial de guerra! explicou enfàticamente.
Êle conhecia hastante bem que os membros dos cursos da K.U.K.S. e antigos homens do batalhão de assalto não deviam ser intimidados com ameaças de companhias punitivas. Apenas a côrte marcial, seguida de condenação à morte, causaria impressão nêsses casos.
Lançando-me um olhar de crítica, apanhou o telefone para entrar em contacto com o Q.G. da minha K.U.K.S.
– Vamos mandar Klimov embora. Prepare os documentos. Deve partir para Moscou no trem das doze, comunicou ao chefe do pessoal. Mais uma coisa: porque deixam os seus homens sairem como vagabundo? Prepare-o imediatamente. Não deve envergonhar a nossa frente de batalha quando chegar em Moscou.
Minutos após, no aposento vizinho, recebi um pacote lacrado e selado que continha os meus documentos pessoais e passes de viagem para Moscou.
De volta à sala de recepção, fui cercado pela turma excitada de candidatos.
– Bem, como foi? Afundou? As perguntas foram difíceis?
Encolhi os ombros e mostrei-lhes a ordem para Moscou.
– Então é de fato Moscou! exclamaram. Bem, felicidades, acrescentaram, apertando-me a mão.
Fora, da penumbra fria das arcadas entrei na Praça ilu minada do Palácio de Inverno. Não podia crer que não estivesse sonhando! Dentro de três horas eu estaria no trem de Moscou! Essa sorte, essa incrível sorte, fazia-me sentir algo estranho. Conhecia inúmeros oficiais, homens cujos lares estavam em Leningrado, que haviam servido na frente de Leningrado durante três anos sem uma simples licença para a cidade. Mesmo na K.U.K.S. os oficiais que vinham de Leningrado não tinham permissão para ir até a cidade. Quando íamos às casas de banho ou fazíamos visitas turisticas, marchávamos em formação. Para os moscovitas, uma rápida visita oficial à cidade natal era sonho irrealizável. Seria possível que eu ia para casa?
Olhei em tôrno. Sim, estava em Leningrado, mas, no bolso, havia um documento que abria caminho para Moscou. Parando no meio da vazia Praça do Palácio de Inverno, retirei-o e li-o. Deliberadamente evitei dar passagem às patrulhas de quépis verdes, que se podiam ver todas as partes das calçadas e nos cruzamentos de ruas. Leningrado estava na zona da frente e as patrulhas dos regimentos da Narcomvnudel eram em abundância na cidade. Os quépis verdes eram os piores inimigos de todos os soldados. Não fazia muito tempo que tivera que passar dois dias e duas noites numa cela fria, no Q.G., sem comida e sem cigarros, até que um oficial armado de pistola-metralhadora viesse da K.U.K.S. para levarme. O meu crime fôra o de ter saído da casa de banhos e ficado na rua. Enquanto nosso comandante tomava banho de vapor, banhei-me ràpidamente e escapei para respirar o ar fresco da primavera. Logo que me pilhei fora, fui preso como desertor pelos "cabeças verdes". Mas hoje eu podia fazer-lhes fusquinhas. Hoje eu ia para Moscou.
No Quartel-General da K.U.K.S. aguardava-me uma recepção principesca. Dentro de meia hora estava completamente remodelado da cabeça aos pés: quépi novo, uniforme novo e até uma sacola nova, cheia de latas e cigarros. Ao meio dia em ponto apresentei a ordem de viagem no guichê da estação de Outubro.
– Cinquenta e seis rublos, disse o empregado.
Apressadamente rebusquei os bolsos. Que inferno, claro que precisava de dinheiro! Era a única coisa que me faltava. Eu até já me esquecera do que isso era, na vida militar. Meu pagamento era automàticamente enviado para casa. Seria uma situação terrível? Nada disso! No socialismo tudo é muito simples, a vida é absurdamente fácil. Saí correndo para a praça da estação, abri o pacote e assobiei. Nem bem havia aberto o pacote e os fregueses já vinham correndo. Cinco minutos depois, com menos latas de comida, mas com os bolsos cheios de rublos, voltei ao guichê. E dez minutos depois o trem levava-me a Moscou.
Pela janela do vagão, contemplava os telhados cobertos de palha das aldeias, os campos empobrecidos e os lagos reluzentes, as estações bombardeadas e, apesar disso, sentia o coração leve. A despeito de tôda a resistência alemã, nosso exército estava avançando. A balança da história, embora lentamente, inclinava-se para o nosso lado.
Nós, que estávamos servindo na vizinhança imediata da frente sabíamos muito bem quanto sacrifício era exigido numa ofensiva, quanto sacrifício havia por detrás da informação lacônica do Serviço de Informações: "Na frente de Narva nenhuma alteração". Sabíamos que divisões inteiras estavam sendo chacinadas até o último homem na tentativa infrutífera de romper a frente de Narva. As unidades estonianas, que lutavam contra o exército alemão, mantinham essas posições na fronteira da sua terra natal e as mantinham até o último alento; eram até mais aguerridos do que os alemães, mas o Serviço de informação dizia: "Nenhuma alteração". Somente resultados visíveis importavam, não as vidas humanas. E assim é onde quer que haja guerra.
Conta-se que Stálin, ao saber que os aliados haviam desembarcado na França, bateu os pés, enraivecido. Não sei se isso é verdade, mas sei que os soldados se encheram de alegria.
Os políticos dividiam a Europa, nós, soldados, dividíamos nosso pão e nosso sangue.
Agora eu estava de volta a Moscou. Meus pensamentos voltaram-se para o dia em que partira.
Parecia ter sido há muito tempo. Depois de um belo dia no interior, Genia e eu regressávamos, numa fria tarde de outono, de subúrbio elétrico para Moscou. Tirei do bolso a ordem do comandante militar da cidade, para apresentar-me, e comentei.
– Amanhã cedo irei buscar a ordem de isenção, e, em seguida, virei procurá-la. Então veremos...
– Mas suponha que êles o segurem! exclamou ela, a voz trêmula de excitação, os olhos negros fitando-me ansiosamente, de modo a fazer-me terrivelmente agradecido pelas palavras e olhar.
– Não fale bobagem! Não é a primeira vez, respondi.
Na manhã seguinte dirigi-me, de jaqueta militar, calças azuis metidas nas botas militares e meu gorro fora do comum, ao Comissariado Militar. Segundo as normas de guerra, estava vestido como um cavalheiro. Era comum estar-se vestido dessa forma, em Moscou, naquela época de guerra, e evitava muitos resmungos hostis. No bolso tinha o livro de Conan Doyle "O signo de quatro", que eu lia no subterrâneo afim de praticar o inglês.
Depois de entregar os papéis na Segunda Secção do Comissariado Militar, sentei-me num canto e tirei o livro para matar o tempo. A sala estava cheia de uma extraordinária variedade de homens: rostos alvacentos, faces barbudas, roupas sujas, muito leves para a estação do ano. Dois milicianos encostavam-se, preguiçosamente, na porta. Puz-me a ler, enquanto esperava a devolução do papel de isenção, carimbado: "registrado".
Passado algum tempo, o chefe da secção surgiu com uma lista, lendo uma série de nomes, inclusivé o meu. Eu não tinha a menor idéia do que era essa lista. Logo que êle se retirou, os milicianos deram a ordem: "Formem-se na rua".
Todos nós, inclusivé eu, com o dedo índice ainda entre as duas páginas do livro, fomos conduzidos para o páteo. Que brincadeira era aquela? Não podiam fazer-me isso! Eu era isento! Tentei escapar de lado, mas vi-me em frente do cano de um revólver. A direita: outro revólver.
– Nada de reclamações! gritaram os milicianos. Enquanto estiverem sob nossa responsabilidade são prisioneiros. Quando forem entregues no lugar de destino então serão livres, novamente...
Dessa maneira marchámos através de Moscou, guardados por milicianos com revólveres engatilhados.
Pensam que foi engano? Nada disso. Havia grande falta de reservas para a frente de combate. Entretanto, na retaguarda a falta também era grande. A retaguarda concedia isenção do serviço militar, mas a frente levava os homens, juntamente com as isenções. Por detrás de tudo isso estava o "Plano".
Segundo o Plano o Comissariado Militar tinha que enviar cinquenta homens ao centro de reunião, aquêle dia. Que mais poderiam fazer senão apanhar quem quer que fôsse? Então recrutaram os condenados a sentenças curtas, na prisão, e mandaram-nos escoltados ao Comissariado Militar dali para o ponto de reunião. Se ainda faltassem homens para o Plano, incluiam alguns homens "isentos".
Foi assim que um trabalhador científico, isento, do Instituto de Energia de Molotov, que havia recebido a Ordem de Lenine, se tornou soldado. Não importava Lenine, nem Molotov. Isso era muito mais excitante do que Conan Doyle. Pena que não tive oportunidade de dizer adeus a Genia.
Logo aprendi a marchar tão bravamente como os outros. Fomos enviados para a frente de combate e cantei a canção popular russa, com o máximo de minha voz:
"Rouxinol, rouxinol, avezinha, por que não me canta uma canção alegre..."
Tôdas as canções do período de ante-guerra, sôbre o "Chefe", o "proletariado" e outras coisas semelhantes, haviam desaparecido do exército como que por um poderoso passe de magia. E mseu lugar, as verdadeiras marchas russas conquistaram o coração dos soldados. Até os companheiros mais desafinados cantavam em voz alta, simplesmente porque podiam cantar a respeito de cavalos, as velhas mamães e as jovens beldades. O mágico do Cremlin compreendeu que essas coisas estavam mais achegadas ao coração do soldado do que a barba de Karl Marx.
Agora eu retornava a Moscou. Lembrei-me de quando me recordara de Moscou, a última vez. Uma linda manhã de primavera, quando caminhava por uma clareira silenciosa na densa floresta da Península Kareliana, deparou-se-me uma profunda cratera de granada, coberta de verde vivo. No fundo, a água esverdeada parecia um vidro transparente. Água da floresta, tão clara como cristal, que, frequentemente, apanhávamos com os capacêtes para beber. Mas ali, com a cabeça submersa, os braços estendidos num último espasmo, jazia o corpo de um soldado inimigo.
Quando eu descia, metendo os calcanhares no solo, torrões rolaram para dentro da água. Ondas pequeninas enrugaram a superficie e fizeram u cabelo do morto agitar-se gentumente com a caricia morna. Oprimido pela ultima uniao da vida e da morte, desist. Arinai, a curiosidade venceu o respeito pela morte. Cuidadosamente apri o bolso de cima do homem e recrei um maço de papeis.
Os habituais documentos inuitares, com a águia e a suástica, cartas de casa e o retrato de uma atrativa e loura jovem em vestido de verão. O retrato estava cuidadosamente emorulhado em papel. Atrás estava escrito: "Ao meu amado, da sua amada", a data e o nome de uma cidade distante, no sul do Reich. Contemplei o cabelo do morto, na água esverdeada e, em seguida, novamente o rosto da jovem no banco do Reno. Onde ela se encontrava as flores estavam entreabertas e a vinha era verde nas encostas. Numa noite quente essa jovem havia acariciado, gentilmente, o cabelo do seu amado; agora, êle estava sendo acariciado pela água fria de uma floresta, em algum lugar da Rússia.
Tirei meu caderno de notas e, sentando-me à beira da cratera, comecei a escrever um recado melancólico a Genia:
"Talvez amanhã eu também esteja deitado em algum lugar, com o rosto voltado, e ninguém me acariciará ternamente, nem mesmo a água esverdeada de uma cratera de granada".
As mulheres gostam de um pouco de romantismo e eu, também, não sou leito inteiramente de ferro.
Naquela ocasião, em que não alimentava esperança de ver Genia, novamente, durante longo tempo, havia escrito, simplesmente, como todos os soldados fazem às suas namoradas. As cartas são quase que a única alegria e confôrto do soldado.
Ao sair da estação Komsomolsk, em Moscou, mergulhei no Subterrâneo, assobiando uma canção da frente de batalha. Eu já dera ao Estado uma eternidade, de modo que não poderia ser considerado crime o fato de eu, agora, devotar alguns minutos a mim mesmo. Além disso, Genia nunca me perdoaria se preferisse qualquer unidade militar a ela.
Encontrei a porta trancada, meti um bilhetinho pela soleira, joguei a mochila às costas e ordenei-me:
– Esquerda volver! Passo apressado!
Uma vez resolvido o meu negócio particular, voltei-me para os negócios de Estado.
II
Meia hora depois, cheguei ao lugar de destino. Enquanto percorria um corredor comprido, fui-me espantando. Era verdade que havia muitos homens uniformizados, correndo como formigas forçadas a abandonar o formigueiro, mas o lugar fazia mais recordar uma universidade por ocasião das provas finais do que uma unidade do exército.
Alguns colocavam os livros no parapeito das janelas para iniciar uma discussão acalorada, outros repetiam, apressadamente as lições, escreviam anotações e, apressadamente levavam-nas a algum lugar. Ninguém se incomodava com continências, ombros direitos ou postos. Todos tinham outras preocupações. A maioria tinha expressão muito diferente daquela dos oficiais do exército, cujos rostos, bem como as almas, estão marcados com o carimbo dos exercícios de campanha.
Próximo de mim, dois oficiais conversam numa língua incompreensível. Vi dragonas de tôdas as espécies, desde a fôrça aérea até a infantaria, até mesmo os casacos pretos da armada, mas o mais surpreendente de tudo era o grande número de mulheres e moças em uniforme. Até então, poucas mulheres haviam sido aceitas para fins de propaganda em certas escolas militares. Aqui, a situação era muito diferente.
Senti-me um pouco inibido e decidi aventurar-me um pouco. Numa das janelas avistei um primeiro-tenente, de capote côr de areia e de culotes do mesmo tecido. Devia ser de Leningrado! Eu vestia exatamente a mesma espécie de uniforme e nunca vira um dêles fora do setor de Leningrado.
– Diga-me, tenente, dirigi-me ao oficial de uniforme côr de areia, também é de Leningrado?
– Sim, do setor careliano, respondeu-me prontamente, pois, aparentemente, sentia-se perdido naquela confusão, da mesma forma que eu, e estava satisfeito por encontrar um companheiro amigável.
– Bem, como vão as coisas?
– Até agora, mais ou menos. Acho que caí de pé, respondeu, mas, a despeito da resposta confiante, havia, na sua voz, um leve traço de desilusão.
– Mas que espetáculo é êsse? Uma pensão de moças respeitáveis? perguntei-lhe. Acabei de chegar e não estou compreendendo nada.
– Nem o próprio diabo compreenderia! Por exemplo, fui designado para a Hungria. A Hungria que vá para o inferno!
Eu fiquei ainda mais espantado.
– Agora, se eu pudesse ir para o Departamento Inglês, suspirou êle, mas isso é impossível, a menos que tenha conhecimento. A gente precisa ser, pelo menos, filho de general. Vê como andam por aqui? Cada um tem uma carta de apresentação no bolso!
Apontou para uma porta, na qual havia escrito "Chefe do Departamento de Treinamento", diante da qual se formava uma multidão de oficiais em botas elegantes, de melhor couro, e em uniformes elegantíssimos. Certamente não pareciam ser oficiais da frente de batalha.
– Então qual é o melhor modo de dominar a situação? indaguei.
– Quantas línguas sabe?
– Um pouco de alemão, um pouco de inglês, razoável quantidade de russo...
– Deixe de tolices e diga-lhes que sabe apenas inglês. O Departamento de Inglês é o melhor de todos, aconselhou-me o futuro húngaro.
Através de várias conversas, comecei a compreender que esta misteriosa instituição educacional relacionava-se com o treinamento de pessoal para o exterior. Nenhum noviço parecia saber o seu nome, mas, após conversar com um oficial aviador, um estudante na escola de aviação, que aparentemente através de relações influentes, tentava ser transferido do terceiro curso da escola para o primeiro curso desta mis teriosa escola, convenci-me de que o lugar deveria oferecer vantagens consideráveis.
Nos dias que se sucederam, enchi um monte de questionários que tentavam estabelecer o meu passado: se eu possuia algum conhecido ou relações no estrangeiro; se eu tinha relações "nas áreas ocupadas temporàriamente pelos ladrões de terra hitleristas"; se eu já pertencera ou planejava ter simpatias com grupos hostis ao Partido; se eu alguma vez já duvidara da retidão da linha do Partido. As perguntas, que mostravam interêsse nos aspectos negativos da minha vida excediam as relativas às minhas qualidades positivas. Eu já trouxera todos êsses questionários comigo, num envelope lacrado, de Leningrado; agora tinha que enchê-los de novo.
Durante vários dias fui examinado em alemão e inglês. Os que eram reprovados nas provas de língua eram excluidos das outras e retornavam às unidades a que pertenciam. Entretanto, os apadrinhados constituiam exceção: todos eram matriculados no primeiro curso e não se sujeitavam a tão estritas exigências. Os demais eram examinados severamente; se possuissem bom conhecimento, matriculavam-se num dos cursos elevados e, do contrário, eram devolvidos às unidades.
Depois dos questionários e das provas de língua, vieram os exames sôbre o Marxismo leninista. Durante os meus vinte e seis anos de vida, passara na meia dúzia de exames normais e três estatais dêsse ramo de conhecimento. Em seguida tivemos exames insignificantes de filosofia e materialismo dialético, de história geral e militar, língua russa e geografia econômica.
Tudo isso deixou-me indiferente. Não se sabia quando a guerra iria terminar, mas uma coisa era certa – já havia passado da fase crítica e se aproximava o fim. Meu único desejo era abandonar o uniforme o mais cedo possível depois que ela acabasse. Contra meu desejo, êsse estabelecimento educacional poderia prolongar o tempo de serviço no exército, se não mesmo prolongá-lo até a eternidade. Para a maioria dos jovens, essa escola significava um meio de aprender uma profissão que lhes proporcionaria o sustento, após a guerra. Esse aspecto pouco me interessava. Mas o exército era o exército; aqui as ordens eram supremas e só nos restava obedecer-lhes.
Todos os meus planos haviam desmoronado, como um castelo de cartas, quando fôra convocado para o exército. Quando voltei a Moscou, assumira, inconscientemente, que agora a vida retornaria ao antigo curso. Mas a vida não para e eu, também havia mudado, depois da experiência na linha de frente. Agora, nas minhas perambulações sem destino, ao redor das paredes do Cremlin, sentia apenas um desejo vago e um enorme vácuo. Apenas uma coisa parecia estar evidente a guerra deveria terminar, pois, enquanto ela durasse, não haveria lugar nem para a vida privada, nem para interêsses particulares.
Depois que fui aprovado nos questionários e exames, fui chamado a apresentar-me ao chefe do Departamento Educacional, o coronel Gorokhov. Atrás de uma grande mesa estava sentado um homenzinho com as insignias de oficial da cavalaria e um crâneo tão liso como uma bola de bilhar. No rosto astuto e malicioso luziam os olhos incolores e inexpressivos.
– Sente-se, Camarada Capitão, disse êle, cortêsmente, indicando uma cadeira ao lado da mesa.
Era uma recepção muito diferente da disciplina normal do exército, assemelhando-se mais à atmosfera de uma aula universitária com professores distraidos. O coronel passou os dedos finos pelos numerosos documentos relacionados com a minha posição moral e política, atestados de participação em batalhas, meus questionários e notas de exame.
– Então você é engenheiro! Bem, muito bem comentou em voz amigável. De um modo geral, não recebemos muito bem os engenheiros. Já temos alguns. São muito independentes e pouco disciplinados. Que acha da sua futura carreira?
– Como os interêsses do Estado exigir, respondi com prudência, mas sem a menor hesitação, pois não queria ser apanhado por essas perguntas.
– Sabe que espécie de estabelecimento educacional é êste?
Quando respondi vagamente, começou a dizer-me, vagarosamente, entre frequentes pausas.
– É o Colégio Diplomático-Militar do Quartel-General do Exército Vermelho dos Camponeses e Operários. Deve estar ciente de que, segundo a lei, os homens com o curso de escola militar são obrigados a prestar serviço permanente no exército. O Estado gasta enorme soma na sua educação e não pode permitir que se faça o que quiser, depois. O Estado já dispendeu considerável importância com você, pessoalmente.
O coronel lançou um olhar ao meu diploma de formado pelo Instituto Industrial.
– Eu teria pesar em sacrificar mais tempo e dinheiro em você, continuou, com um ar de uma econômica dona de casa. Portanto, deve ficar bem claro que, se fôr aceito no colégio, deve despojar-se de todos os hábitos civis e esquecer a desmobilização. Há alguns que pensam que, ao terminar a guerra, podem escapar. Não pense nisso! Você nos interessa porque, a julgar pelos documentos e provas, tem base sólida de conhe cimento, como precisamos. Você não dará menos trabalho do que os outros. Por êsse motivo, e apenas por êsse motivo, estamos interessados no caso.
Depois dessa introdução êle prosseguiu nos pormenores.
– Que o féz estudar línguas estrangeiras, depois que ter minou o Instituto Industrial?
– Achei que o conhecimento de línguas estrangeiras era essencial para um engenheiro.
– Ótimo! Mas por que – e êle lançou outro olhar nos meus papéis – estudou no Primeiro Instituto de Moscou de Línguas Estrangeiras e Departamento Pedagógico? Não gostava da sua carreira?
– Como foi que aprendeu essas línguas? continuou o coronel. Com certeza teve governante?
Era como se eu estivesse sendo submetido a um interrogatório da Narcomvnudel! Na minha infância, ter governante significava pertencer à família dos "velhos tempos". Agora essa palavra não tinha mais êsse significado comprometedor, pois nos parques de Moscou, bandos de crianças do alto círculo do Cremlin podiam ser vistos acompanhados de governantes que se expressavam em francês ou inglês. Depois de terem derrubado os predecessores, os novos dominadores haviam ràpidamente adotado os seus hábitos.
– Aprendi línguas juntamente com outras matérias. Fiz os exames finais e o exame oficial como aluno interno no Instituto de Moscou, de uma só vez, respondi.
– Ah! Então estudou em dois institutos, simultaneamente. Deve ser muito estudioso! deduziu o coronel, coçando a cabeça calva, pensativamente, como se nova idéia lhe ocorresse.
Eu nem sei bem o que me fêz estudar línguas estrangeiras. Todo estudante tem macaquinho no sótão. Aconteceu-me descobrir que, na biblioteca de Moscou, havia uma quantidade de livros avulsos e não catalogados, em língua estrangeira. Não havia alguém que os pusesse em ordem e os submetesse à censura, pois até que não fossem censurados, não poderiam ser usados. Prontamente obtive permissão para trabalhar nêsse material e um mundo, completamente novo, fechado aos outros, abriu-se diante de mim.
Meus conhecimentos linguísticos estavam longe de ser brilhantes, mas, nas condições soviéticas, mesmo o conhecimento restrito de línguas estrangeiras era excepcional. Tão pouca oportunidade de usar tal conhecimento tem o cidadão soviético que a ninguém ocorre desperdiçar tempo com êsse estudo.
– Isso pode até chamar a atenção da Narcomvnudel, era a voz corrente.
– Bem, vamos ao negócio. (O coronel bateu com o lapis nos meus papéis). Podemos encher carros inteiros com especialistas em alemão. Temos mais do que o necessário, em inglês, mas como vejo que é estudioso e não é uma criança, farei uma proposta muito melhor.
Fazendo uma pausa significativa, observou cuidadosamente minha reação.
– Vou designá-lo para um departamento excecionalmente importante. Posso garantir que, se fôr aprovado, trabalhará em São Francisco ou Washington. Que me diz disso?
Não tremi um só dos cílios. Que pretendia? Nem inglês, nem alemão... Trabalho em Washington... Já sei, como acensorista de alguma embaixada! Já ouvira boatos a êsse respeito.
– Vou designá-lo para a Faculdade Oriental, acrescentou, em tom de condescendência, enquanto eu ficava ora quente, ora frio. O Departamento Japonês, disse, em tom de conclusão. E você encontrará emprêgo do inglês mais do que em qualquer outro lugar.
Senti um calafrio percorrer-me a espinha e dominou-me uma sensação de desconfôrto.
– Camarada Coronel, não há nada um pouco menos complicado, murmurei fracamente. Acabei de reconvalecerme de ferimento na cabeça...
– Isto não é uma loja. A escolha é limitada, respondeu com o rosto completamente transformado, duro e frio, pois, sem dúvida, arrependia-se do tempo gasto comigo. Duas alternativas: o Departamento Japonês ou a volta à sua unidade. Está resolvido. Dou-lhe duas horas para decidir-se.
O coronel em Leningrado ameaçara-me com o Conselho de Guerra se eu fôsse devolvido e aqui enfrentava eu o trabalho forçado, perpétuo, com a língua japonêsa.
– Parece-me, caro Klimov, que está em apuro, pensei.
Ao sair da sala, fui cercado por um grupo vivo dos novos conhecidos, todos ansiosos em conhecer o resultado de uma entrevista tão longa.
Como foi? Para onde o designaram? o Departamento Ocidental? perguntaram.
– Para as "geishas"! respondi, com desprezo.
Durante algum tempo fitaram-me em silêncio, para depois ouvir-se um côro de gargalhadas. Pensavam ser piada, mas eu não encarava assim.
– Sabe quantos sinais há no alfabeto japonês? perguntou-me um, com simpatia. Seis mil e quatrocentos. Um japonês educado conhece a metade.
– Houve três casos de suicídio, o ano passado, contou outro, com animação, e todos do Departamento Japonês.
Alguém apanhou-me pelo braço.
– Venha ver o Departamento Japonês, convidou-me.
Quando a porta se abriu, vi uma criatura desalinhada, sentada sôbre as pernas, numa cama, de calças e óculos de tartaruga. Sem se perturbar conosco, continuou nas suas ocupações, murmurando exorcismo, ao mesmo tempo que descrevia, com os dedos, figuras misteriosas no ar. No aposento havia vários outros indivíduos semelhantes. Todos estavam em várias fases do transe budista; a pele nua deixava-se entrever através das roupas de baixo.
– São seus futuros colegas, informou-me o companheiro. Aqui esta a fonte de tôda sabedoria. E todos são epiléticos, portanto, cuidado!
Um tenente magro e desleixado, de pele azulada – o único homem da sala que ainda usava divisas – estava sentado a uma mesa, fazendo figuras artísticas no papel. Começara em baixo, no canto direito, prosseguindo para cima, da direita para a esquerda. Lá fora, do outro lado da janela, estava o quente verão moscovita; jovens esperançosas atropelavam-se pelos corredores, mas êstes pobres miseráveis estavam metidos ali, com as môscas nas paredes, tornando-se riridículos na tentativa de quebrar o granito da sabedoria oriental.
Nos dias seguintes, perambulei pelo colégio como um amante desenganado. Haviam-me prometido uma fabulosa beldade, mas, atrás do véu, encontrei um sapo. Decidi-me, com firmeza, a abandonar o Departamento Japonês na primeira oportunidade, mas, como não via possibilidade de assim fazer, no momento, comecei a ajeitar-me no colégio.
Há pouco tempo havia êle retornado da evacuação, sendo instalado, provisòriamente, nos vários edifícios de quatro andares da Praça Tagan. As várias faculdades estavam espalhadas nos arredores de Moscou. Nosso edifício ficava numa travessa silenciosa, acima da amurada de granito do rio Moscou. As janelas, que davam para o rio, permitiam avistar a Ponte de Pedra e os muros do Cremlin, mais distantes.
À noite, frequentemente, gozávamos do belo e fascinante espetáculo das salvas, da vitória troando pela cidade. O quadro da cidade iluminada pelo fogo era de beleza excecional. As baterias eram agrupadas em tôrno do Cremlin, em círculos concêntricos. Dizia-se que Stálin, muitas vêzes, subia a uma das tôrres do Cremlin para assistir ao espetáculo. Nosso Colégio Diplomático-Militar fôra fundado durante a guerra, quando as relações internacionais exigiam a extensão das alianças diplomático-militares com os países estrangeiros. Pelas repetidas mudanças no currículo do colégio, era possível delinear o curso da política externa soviética, com antecedência de muitos anos.
O colégio era organizado nos moldes da Escola de Diplomacia, Escola do Serviço Secreto Militar, Instituto da Cultura Oriental e em várias outras instituições educacionais superiores militares e civis. Para se ter uma idéia das dificuldades na seleção de candidatos, basta apenas mencionar que a Escola de Diplomacia aceitava sòmente homens com educação secundária completa e, além disso, que tivessem pertencido ao Partido, pelos menos cinco anos.
A Faculdade Oriental do colégio abrangia não somente o Departamento Japonês, chinês, mas também o departamento árabe, persa, indu e afgão. Além do departamento inglês, alemão e francês, a Faculdade Ocidental possuia o departamento norueguês, sueco, finlandês, holandês e italiano. Também havia uma Faculdade Naval, possuindo departamento para o svários poderes navais. A Faculdade da Força Aérea havia sido temporàriamente transformada em Faculdade de Grupos de Paraquedistas, com ênfase especial sôbre os países com que as fôrças soviéticas, brevemente, pudessem entrar em contacto. Como o próprio colégio fôra fundado apenas recentemente, os estudantes, que frequentavam o primeiro ano, chegavam a milhares; os do segundo, a centenas, e os do terceiro, apenas a algumas dezenas. O último, o quarto ano, estava em fase de organização. No caso da Faculdade Oriental havia um quinto ano adicional. Para a admissão aos cursos mais altos, as exigências eram severíssimas, enquanto o número de candidatos era muito pequeno e os homens apropriados tinham que ser procurados em tôda a União Soviética. Estrangeiros não podiam frequentar o colégio, mas, de outro lado, os cidadãos russos, com conhecimento de línguas estrangeiras eram uma raridade. Aproximadamente, metade dos estudantes do primeiro curso era constituida de filhos de generais ou altos funcionários do Partido ou do Serviço Público; era pràticamente impossível que um homem de origem "comum" fôsse aceito nêsse curso. Contudo, os "heróis da União Soviética", jovens oficiais que se haviam distinguido na guerra e celebridades geralmente eram exceção à regra.
O colégio inteiro conhecia a jovem tadjique, chamada Mamalakat. Durante os "trinta", seu retrato fôra distribuido por tôda a União Soviética. No Tadjiquistão a pequena Malakat havia alcançado um prêmio de colheita de algodão. Por êsse tempo, uma reunião de trabalhadores stkhanovistas, das fazendas coletivas, se efetivava em Moscou, de modo que Malakat foi trazida à cidade e condecorada com a Ordem de Lenine. O próprio Stálin deu-lhe um relógio-pulseira de ouro e foi fotografado a seu lado, em atitude paternal.
Correram os anos. Há muito que Malakat deixara de colher algodão, mais ainda se banhava na fama e nos favores Ido chefe. Quando os estudantes do colégio comentavam os pormenores da sua carreira, surgiam sorrisos maliciosos. De volta ao luxuoso apartamento do Hotel Moscou, após a reunião, ficará tão emocionada com a fama e com o presente de Stálin, que entrara no banheiro sem tirar o relógio e êste, ao parar, fêz com que ela movimentasse o hotel inteiro com os seus lamentos. Agora tinha vinte anos de idade. Desde essa época havia agraciado quatro institutos diversos, em seguida, com sua presença, atacando cada um em tempo stakhanovista, para então, no momento, entrar no nosso colégio. Era-lhe uma necessidade mudar as matérias e o local de estudo depois dos exames. Mas, se os Ordens de Lenine e os relógios de Stálin não podem aumentar a atividade cerebral, ao menos abrem inúmeras portas aos seus detentores. Falava-se que Manlakat, de novo, preparava-se para mudar de cena de operação. Entre os estudantes do colégio inúmeros havia que viviam de giorias passadas.
Ainda que pareça estranho, os judeus eram rigorosamente excluidos do nosso colégio. Pela primeira vez encontrei confirmação oficial de certos boatos que circulavam, persistentemente, no país. Com relação ao problema das nacionalidades, o Cremlin adotara um rumo bastante inesperado. Até pouco tempo, os judeus haviam desempenhado, e ainda desempenham, papel importante na diplomacia soviética e, geralmente, no serviço do exterior. Contudo, agora, as portas do colégio de diplomacia estavam-lhe cerradas e isso porque, talvez, Stálin não se esquecesse de que nos julgamentos de Moscou, de 1935-38, grande parte dos acusados era de judeus.
Agôsto e setembro passaram e começámos, a instrução regular. Eu ainda não me conformara com a idéia de ter sido condenado a uma carreira diplomática no Japão. Quando tocava nêsse assunto a conhecidos, riam como se fosse uma piada.
Um dia, ao atravessar o pátio do colégio, colidi com uma senhora uniformizada. O primeiro movimento de um militar é olhar as divisas. Surpreso por ver uma mulher com o pôsto de major, fitei-a no rosto e não pude deixar de exclamar alegre com o encontro inesperado:
– Olga Ivanova!
Olga Ivanova Mosklskaya era doutor em filologia, tendo sido professôra e deã da Faculdade de Alemão no Primeiro Instituto Pedagógico de Línguas Estrangeiras. Eu a conhecera ali nos dias de paz, onde se impressionara com o meu interêsse pelos estudos de línguas. Era pessoa de grande cultura e de encanto pessoal fora do comum.
– Camarada Klimov! exclamou ela, tão surpresa quanto eu, examinando-me ràpidamente da cabeça aos pés. Em uniforme? Que faz aqui?
– Oh! Nem pergunte, Olga Ivanova! repliquei, de crista caída.
– Está bem... Escolheu alemão, de novo?
– Não, Olga Ivanova; pior ainda... japonês! respondi, taciturnamente.
– Que! Japonês! Impossível! Está brincando?
– Não estou não.
– Ah! continuou ela, meneando a cabeça. Venha a mi nha sala para conversarmos um pouco.
Na porta da sala havia a inscrição "Chefe da Faculdade Ocidental" e o seu nome; portanto ocupava ela importante posição no colégio.
– Quem foi o idiota que o meteu no Departamento Japonês? indagou.
Imediatamente percebi que ela estava bem a par das condições do colégio.
– Não foi um idiota, foi o coronel Gorohkov, retorqui. - Concordaria em ser transferido para o Departamento Alemão? quis ela saber em tom incisivo e comercial e, ao ouvir o meu sim acrescentou: estou ocupada na seleção de candidatos para o último ano e tenho gasto fosfato em descobrir pessoas competentes. Se não se opõe, pedirei ao general, hoje mesmo, a sua transferência. Que acha?
– Pelo amor de Deus, não deixe o coronel Gorohkov pensar que foi meu pedido... Senão não sei o que acontecerá, terminei, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão.
– Essa dor de cabeça é minha, não sua. Até logo! despediu-me rindo, quando saí da sala.
No dia seguinte, o chefe do curso de preparatório japonês mandou chamar-me. Como me visse pela primeira vez na vida, perguntou-me, com desconfiança:
– Então você é Klimov?
– Sim, Camarada Major, respondi.
– Recebi ordem do general para transferir um certo Klimov, explicou, enquanto observava o documento, para... o quarto ano da Faculdade Ocidental.
Primeiro deu-me um olhar cético para depois entregar-me o papel.
Esse olhar era bem compreensível. As condições no colégio eram decididamente anormais. Os estudantes do curso preparatório viviam num estado de bemaventurança. Os que frequentavam o primeiro ano, especialmente os das "nacionalidades" importantes, inflamavam-se de vaidade. Os alunos do segundo ano eram considerados como feitos na vida. A respeito dos membros do terceiro ano murmurava-se, em segrêdo, que deveriam ter manipulado cordéis fora do comum. Quanto ao quarto e último ano, pouco se sabia, mas era considerado a morada dos deuses.
– Que sabe a êste respeito? continuou com suspeita.
– Oh! Nada, Camarada Major.
– Muito bem! Eis a ordem – já que não temos outro Capitão Klimov, no momento – e pode ir para o Ocidental. Mas penso que há qualquer engano, e logo nos veremos, acrescentou.
– Muito bem, Camarada Major! respondi, juntando os calcanhares.
Pois então eu estava no último ano do Departamento Alemão. Finalmente a fortuna se dignara a sorrir-me.